Arte: Katarina Scervino/Nonada Jornalismo

De norte a sul, fazedores da cultura apontam irregularidades na Lei Paulo Gustavo; saiba o que fazer nesses casos

A execução da Lei Paulo Gustavo tem gerado reclamações de produtores culturais em municípios de várias regiões do país. Os relatos, publicados em redes sociais, portais locais, e recebidos pelo Nonada Jornalismo, concentram-se em insatisfações sobre a demora na publicação do edital, atrasos nos pagamentos ao contemplados, questionamentos sobre a lisura do processo, falta de expertise de pareceristas na seleção, mudanças de categoria de projetos concorrentes e premiação de empresas sem histórico de atuação na cultura. A totalidade de reclamações recebidas são referentes à aplicação a nível municipal. Em dezembro, contatamos as prefeituras mencionadas, porém até o dia de publicação desta reportagem nenhuma secretaria havia respondido os questionamentos. 

Um total de 5.465 municípios recebeu os recursos, o que corresponde a 98% das cidades do país, após a assinatura do Plano de Ação e do Termo de Adesão do Ministério da Cultura. Em agosto de 2013, todos os municípios aptos receberam recursos do R$ 1,8 bilhão oriundos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Os recursos estão sendo distribuídos por meio de editais públicos de premiação por trajetória e seleção de projetos culturais. A Lei Paulo Gustavo foi proposta em 2021 e aprovada em 2022, como recurso emergencial ao setor cultural em recuperação devido à pandemia de covid-19, mas ainda há estados e municípios que não destinaram os recursos aos artistas.

As denúncias começaram a aparecer no final do ano passado. Em dezembro, um grupo de fazedores de cultura de Nazaré, Bahia, questionou o fato de não ter sido disponibilizado comprovante de inscrição aos proponentes, além de mudança de categoria de projetos. Outra reclamação dos profissionais é a premiação de funcionários da prefeitura, contemplados no edital da Lei. Na mesma cidade, questionaram o expertise dos pareceristas, mesmos da comissão avaliadora, que segundo os trabalhadores da cultura, não emitiram parecer escrito justificando as notas dos projetos não contemplados.  

Em Teresina (PI), um grupo de 50 fazedores de cultura denunciou a aprovação de uma empresa de espetinhos, sem histórico de atuação no campo cultural, além de uma série de denúncias. O grupo elaborou um relatório de 300 páginas, entregue ao Ministério Público, Controladoria Geral da União e Ministério da Cultura, em que aponta denúncias como fraude de cotas e adulteração de portfólios. Dentre as principais irregularidades, citam também, a aprovação de empresas com CNPJ aberto há menos de um ano sendo aprovadas, uma vez que o presente edital solicita o mínimo de 2 anos de residência no município, além da falta de CNAE cultural, e, assim como em Nazaré, questionam as capacidades técnicas dos pareceristas. O MPF informou ao Nonada que avalia se irá aceitar a denúncia e dar início às investigações.

As licitações irregulares para seleção das entidades realizadoras dos editais também têm sido alvo de denúncia. Em setembro do ano passado, a Prefeitura de Sena Madureira, no Acre, foi acusada de conceder a operacionalização da Lei Paulo Gustavo ao restaurante Spetus Bar, através de um contrato da Fundação Garibaldi Brasil (FGB) no valor de R$ 200 mil. Após as manifestações de artistas e produtores culturais de Rio Branco, a vereadora Elzinha Mendonça (PSB) questionou ao TCE que a atividade principal da empresa não corresponde ao que o contrato requer. Segundo o Portal G1, o TCE confirmou o recebimento da denúncia. 

De acordo com os artistas, a empresa apontada nem mesmo funcionava no endereço indicado. Além disso, o contrato pedia uma dispensa de licitação, com urgência, que não encontrava justificativa diante do valor da contratação. Uma reclamação comum às cidades mapeadas pelo Nonada, foi a falta de escuta aos questionamentos de representantes do setor cultural. Como em outros municípios, a aplicação de LPG ficou a cargo de uma Fundação. 

A denúncia de CNAES não correspondentes à cultura se repete em outras cidades, como Parnamirim, no Rio Grande do Norte. Em dezembro, os produtores culturais apontaram uma suspeita na lista de selecionados ao notarem que uma loja de acessórios havia sido contemplada, segundo o portal Saiba Mais. Questionaram também o envolvimento de ex-cargos comissionados da própria prefeitura nos projetos selecionados, levantando também sobre uma falta de histórico cultural.  Neste caso, a denúncia se debruçava sobre um longa-metragem aprovado para receber R$ 200 mil, cujo tema era uma empresa de comércio varejista. Há também questionamentos sobre a aprovação de empresas desconhecidas pelo setor cultural e proponentes de outras áreas, como o caso de um pastor aprovado na categoria Curso de Formação. 

Em Belém (PA), as insatisfações multiplicaram-se nas redes sociais da FumBel, responsável pela aplicação da Paulo Gustavo. Os produtores culturais observaram uma falta de consistência na avaliação dos projetos, apontando justificativas que não poderiam excluir os projetos da seleção. Trabalhadores reclamaram também da confusão, já que a fundação divulgou as notas dos projetos sem as classificações equivalentes, não indicando quais projetos haviam sido selecionados. 

Diversos grupos apresentaram recurso, porém mesmo nesta etapa, não conseguiram visualizar o recebimento do recurso, sem devolutivas e recursos. “Na primeira lista de selecionado meu projeto estava como selecionado, e agora nessa tal nota preliminar simplesmente meu projeto aparece sem nota e somente como desclassificado”, diz um dos artistas. Além disso, profissionais com atuação no setor pontuaram como se não tivessem trajetória, e outros foram mudados de categoria de forma arbitrária. 

A seleção da Lei em São Gonçalo, Rio de Janeiro foi questionada pelo Fórum de Cultura da Cidade no início deste ano, após projetos com falta de documentação obrigatórias, como RG, serem aprovados. Outra reclamação comum é a falta de trajetória profissional apontados pelos fazedores culturais. A denúncia principal do grupo é que a própria empresa responsável pela avaliação dos projetos, Instituto Joãozinho Trinta, contratada sem licitação, nem mesmo existe na sede oficial. Em janeiro, o caso foi encaminhado para o Ministério Público Federal. 

No sul, a principal reclamação foi a demora no lançamento dos editais e divulgação dos resultados. Mesmo com o recurso disponível desde agosto de 2023, Eldorado do Sul lançou concurso apenas em janeiro de 2024. Através de diversas postagens em redes sociais, e-mails, telefones, a classe artística da cidade gaúcha precisou cobrar insistentemente a secretaria de cultura para a execução da lei que tem caráter emergencial. Além da demora, trabalhadores destes municípios relataram um adiamento de datas. Já em Esteio, a demora foi na divulgação dos selecionados, que sofreu com um constante adiamento dos prazos, e um desencontro de respostas dada aos artistas, deixando-os  sem nenhuma previsão do processo inúmeras vezes. 

Recomendações aos agentes culturais

O Nonada Jornalismo entrevistou o advogado André Brayner, diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, sobre a aplicação da lei a nível municipal. Brayner lembra que os recursos, aprovados pela Câmara em 2022, ainda têm um sentido emergencial. “Tanto a Aldir Blanc 1, quanto a Paulo Gustavo, têm a função de reaquecer e reinserir os trabalhadores que tiveram suas atividades prejudicadas”. Para ele, é importante que o gestor cultural entenda as legislações de fomento e as modificações recentes, que alteram as fases de licitação e introduzem novos instrumentos jurídicos. 

Ele também reforça a necessidade de participação da sociedade civil nos processos decisórios, como Comitês, Fóruns de Linguagem e Conferências. Para orientar os fazedores de cultura que suspeitam de irregularidades, o advogado lembra que a leitura atenta aos editais é essencial, pois cada um tem regras específicas. “Caso o agente queira prosseguir com a denúncia, explica que o Ministério Público é, em primeiro lugar, o espaço adequado, ou então o tribunal de contas quando houver suspeita de má administração do recurso público.”

De norte a sul, repetem-se as insatisfações com empresas aprovadas que são incompatíveis com o mundo da cultura. O advogado explica que isso, por si só, não significaria um impedimento para participação nos editais. “Não é possível dizer que só pode participar desse recurso quem já faz sempre. Pelo menos não no Plano Aldir Blanc 2, porque a democratização aos bens e serviços culturais também significa a ampliação dos processos de inclusão”. 

Embora não seja um critério eliminatório, ele explica que se deve ter atenção, porque os editais não são brechas para empresas de outras áreas obterem recursos na cultura. “Infelizmente, isso acontece, devido à relação de empresas com prefeituras, e formação de lobbies que a gente precisa observar.” Para André, uma forma de minimizar esses casos é uma atenção na etapa de elaboração dos editais, pois é neste momento que os critérios de seleção são elaborados. “Precisa ter nos editais que a pessoa pontue pelo histórico de atuação na cultura e ela precisa pontuar bem por isso, de modo a priorizar quem já atua no campo, que já exerceram projetos similares na área”. 

O advogado orienta que, em situações como CNPJs incompatíveis, como uma empresa de Marketing, ou de Segurança, que recebeu 1,5 milhão para fazer um produto audiovisual, devem ser encaminhados para o Ministério Público ou Tribunal de Contas, dependendo da situação. “A gente precisa ter cuidado e segurança no que vamos denunciar. Eventualmente, até consultar um colega ou que atue na área para compreender o que pode ou não”, avalia. 

Sobre os pareceristas sem experitise no setor cultural, André ressalta que, muitas vezes, esses profissionais são selecionados para avaliar áreas das quais não têm conhecimento, mesmo que atuem em algum setor da cultura. “No campo do patrimônio, se você seleciona alguém com experiência em patrimônio material, não necessariamente vai entender nuances do cultural imaterial – o que às vezes vai fazer diferença na seleção. Isso é um desafio técnico para o aperfeiçoamento dos editais, e que não é só no campo da cultura, é um desafio com a máquina administrativa.”

Quanto aos direitos dos trabalhadores da cultura, o advogado recomenda atenção, sinalizando que mudança arbitrária de categoria não pode ocorrer. “Se o candidato não foi selecionado para a categoria que participou, ele deve ser excluído do certame”, explica. 

 Para os gestores culturais, o advogado acredita que o contexto de novos marcos legais, como Decreto de fomento, Decreto do Plano Nacional Aldir Blanc e o próprio Decreto da Paulo Gustavo, têm gerado muitas dúvidas, mesmo com o esforço do Ministério da Cultura para realizar lives e sessões tira-dúvidas. “Nesse momento que vivemos, em que entrou em vigor a 1433, nova lei de licitações, os gestores estão preocupados em entender a nova licitação, que é aplicado de forma excepcional, apenas para contratação de serviços, e não para o fomento”, exemplifica. 

Foto: Hozana Lima/Agência Brasil

Para suspeita de irregularidades na seleção dos proponentes, o advogado recomenda a consulta do edital para verificar as especificações sobre participação de servidores municipais ou estaduais em editais de cultura. Membro do Conselho, se não estiver participando da elaboração dos editais, não pode ser impedido de participar do processo de um projeto. Se for parecerista, deve se afastar. 

De acordo com ele, a demora na execução da lei, e a discrepância no calendário dos municípios – enquanto alguns já divulgaram resultados, outros nem mesmo lançaram o edital -, se devem à sistemática adotada pelo MinC. André avalia que a estratégia do MinC de descentralizar rapidamente os recursos gerou prós e contras. O ponto positivo foi a alta adesão, e o ponto negativo a falta de preparo para executar os planos. “O recurso chegou nos municípios sem eles terem ainda equipe, precisando, muitas vezes, contratar mais pessoas. Se soma a isso novas legislações, que as próprias secretarias não dominam e estão aprendendo – e o MinC tem se esforçado em fazer lives, tira-dúvidas, mas são muitos entraves nesses processos.”

 Ao aceitaram os recursos da Lei Paulo Gustavo, o plano de ação que o município deveria apresentar deveria refletir o planejamento, porque ele já receberia o recurso com a estrutura pensada. Porém, o advogado explica que aconteceu o contrário: recebeu o recurso e com ele, em conta, o município iniciou o processo de executar, conversar com os agentes culturais – fórum e conselho – para pensar a distribuição. 

“Com esses atrasos, os agentes precisam estar atentos aos rendimentos dos recursos não executados [em contas bancárias] e excesso dos rendimentos não dependem da pré -aprovação do Minc, desde que sejam utilizados para a finalidade da lei.” O advogado sinaliza que o recurso pode ser utilizado no próprio edital a que se refere, como para ampliação de vagas, desde que haja previsão no edital, ou para o lançamento de novos concursos. “Os  rendimentos devem ser utilizados nas ações culturais”, orienta André.

*Transparência: O Nonada Jornalismo é concorrente em editais estaduais da Lei Paulo Gustavo no Rio Grande do Sul. Os resultados não haviam sido divulgados até o fechamento desta reportagem. Atualizado em 19/02: O Nonada Jornalismo foi contemplado no edital Arranjos Colaborativos.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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