Foto: Filipe Araújo/MinC

Conferência Nacional de Cultura inicia celebrando culturas populares de todo país e marca retomada democrática

Brasília — “Eu vos anuncio o funeral da década das ausências”, declamou o poeta Antônio Marinho no evento abertura da 4ª Conferência Nacional de Cultura (CNC), em Brasília. A fala do artista pernambucano referencia um tempo de desmontes vivido pelo setor cultural e que parece começar a ter fim após a retomada de mecanismo das políticas públicas culturais históricas no setor, como a volta das  conferências de cultura. 

Após um hiato de 11 anos, o Ministério da Cultura realiza de 4 e 8 de março a 4ª CNC. O evento reúne mais de 4 mil participantes de todo Brasil no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, para debater políticas culturais e políticas culturais e definir orientações para o setor. O encontro tem como tema “Democracia e Direito à Cultura” e coroa um processo de participação e escuta realizado a níveis municipal e estadual em todo país e tem como objetivo principal elaborar diretrizes para o novo Plano Nacional de Cultura (PNC)

Caravanas de fazedores de cultura de todo o Brasil chegaram para o evento. São pessoas como o Vovô do Ilê, diretor do Bloco Ilê Aiyê, que comenta a importância do evento em entrevista ao Nonada Jornalismo: “A Conferência precisa acontecer com mais frequência no Brasil, esse país negro. Nós, do  Ilê Aiyê, estamos muito felizes de estar aqui, mas queríamos muito mais. Estamos fazendo cinquenta anos de blocos afros, e seria muito bom se o Ilê Aiyê estivesse aqui se apresentando para mostrar para todo mundo esse resgate da autoestima do povo negro.”

Vovô do Ilê foi o único artista nominalmente citado pela ministra na fala de abertura (Foto: Anna Ortega/Nonada)

Em coletiva realizada com jornalistas na manhã de segunda, a ministra Margareth Menezes relatou sobre o esforço da nacionalização das políticas no país. Considerada a maior Conferência já realizada na história, dado o número de delegados e representações de todos os estados, a ministra reforçou o trabalho, não apenas de reconstrução do MinC, mas de encontro com um novo formato. “Dessa vez, estamos ouvindo todos os estados e municípios. Estamos em estado de conferência, com o coração aberto para acolher as ideias e chegarmos a uma direção para o nosso PNC”, falou Margareth. “Nessa conferência tem uma nova geração participando e novas cidades que nunca tiveram a oportunidade de estar aqui.” 

Para ela, o momento é de reunir as contribuições das últimas conferências, com destaque para a 3ª, em que já se debateu a necessidade das políticas culturais estarem asseguradas por lei, independente de governos. “Para a cultura ser considerada política de Estado, é preciso que a sociedade também entenda o que é esse grande tesouro que a cultura nacional representa para nós mesmos, e como tirar proveitos positivos das transformações que a cultura pode fazer em uma cidade, na vida de uma pessoa, no país”, avalia. 

Para a ministra, a prioridade é atender todo Brasil. “O MinC não faz a cultura virar política de estado sozinho. É em conjunto, porque a cultura é coletiva. Com ou sem ministério da cultura, ela existe. Mas com o Ministério, a gente elabora as políticas, consolida, dá uma direção e consegue compreender o que é necessário a partir dessas escutas como estamos fazendo aqui na CNC.”

A relação entre meio ambiente e cultura também foi debatida. O Secretário Márcio Tavares destacou que, durante a COP 30, no ano que vem, a cultura virá com força. Segundo ele, desde o início da gestão, houve um aumento de 200% no fomento direto à região norte. O custo Amazônia, debate que reivindica um financiamento específico para artistas da região e que leve em consideração características locais, como deslocamentos de barco, foi um tópico citado pelo secretário. 

Encontro Setorial das Culturas Indígenas (Foto: Paulo Caveira/MinC)

Na parte da tarde, enquanto apresentações artísticas aconteciam, 16 grupos se reuniram em salas para os Encontros Nacionais Setoriais, focados em temáticas como patrimônio imaterial, culturas indígenas, circo, livro e literatura, entre outros. Ao entrar nos debates, era possível ver a formação de rodas, em que delegados eleitos nas conferências estaduais e municipais, observadores e convidados discutiam tópicos através de perguntas disparadoras. 

O momento marcou o início da elaboração das propostas que serão levadas adiante para as etapas seguintes, como Plenárias e Grupos de Trabalhos. No encontro setorial dos povos indígenas, Daniel Munduruku destacou a produção literária contemporânea: “Acredito os escritores mais criativos que existem hoje na literatura brasileira sejam os escritores indígenas, porque eles mostram uma outra leitura do mundo”, avalia. Já no setorial de patrimônio imaterial, os participantes debateram de que forma a maior participação social pode ser implementada no segmento. 

A presidenta da Funarte Maria Marighella destaca a importância das edições anteriores da Conferência. “Hoje é um dia de celebração da participação em um contexto de retomada democrática”, disse. “O ano passado foi de retomada das principais políticas, e não só voltando, mas avançando a partir do acúmulo feito nas últimas conferências.” 

As Conferências de Cultura são a base da consolidação de políticas públicas da cultura no Brasil. Em 2005, durante o primeiro governo Lula, sob comando de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Cultura. O MinC estima que o processo envolveu a participação direta de cerca de 60.000 pessoas, em mais de 700 municípios, em 25 estados da federação e no Distrito Federal. 

Ao fim da primeira edição, foram aprovadas 53 diretrizes de política pública para o país – momento considerado histórico pelo nível de participação social. A conferência serviu como impulso para a elaboração do primeiro Plano Nacional de Cultura (PNC), órgão colegiado do MinC, que até hoje orienta as políticas culturais do país. Através de metas, diretrizes e princípios, o PNC foi criado em 2010 para orientar o desenvolvimento de programas culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. A perspectiva é a Conferência termine com 30 propostas eleitas para nortear o novo PNC.

Guardiões da cultura mostram os caminhos 
(Foto: Giba/MInC/reprodução)

Por todo lugar do Centro de Conferências é possível ver referências e reverências à cultura popular. As coloridas e cintilantes fitas dos brincantes do Baque Rural, de Pernambuco, recebem os participantes logo na entrada. Já o palco central recebeu roda de capoeira  Angola e Regional, artistas do circo e cortejo de Boi do Seu Teodoro com mestre do Maranhão com Mestre Ribinha. A sensação era de que as sonoridades brasileiras estavam contempladas, e que a cultura popular era quem abria os caminhos para o primeiro dia da Conferência.

Para  a ministra, a cultura popular é onde se guarda a memória do país. “A nossa identidade nacional é naturalmente diversa”, analisa. “Entendemos a importância da cultura popular, porque é nela que estão os registros das nossas identidades culturais e influências de tantas etnias. São como células rítmicas, de pensamento, que se misturam no ambiente cultural brasileira.” 

O secretário Márcio Tavares explicou que o MinC criou uma diretoria específica das culturas populares, e manifestou o compromisso do Ministério com a Lei dos Mestres e Mestras, em trâmite no congresso desde 2014. “Esse é um espaço de articulação no plano específico para as culturas populares e que tem uma agenda, com a Lei de Mestres e Mestras da cultura para poder viabilizar o apoio e reconhecimento através de um dispositivo legal. Queremos aprovar.” 

Um dos diversos grupos de cultura popular presentes no encontro (Foto: Anna Ortega/Nonada)

Mestres da culturas estão em lugar de destaque também no pensamento logístico do evento. Através de desenhos espalhados pelo espaço, representações de parte de nossos Patrimônios Imateriais e das Culturas Populares, os Guardiões da Cultura, estão guiando – de fato, indicados caminhos, setas e mapas, para orientar os participantes. Há Caboclos de Lança, Baiana do Acarajé,  Mestre Sala e Porta Bandeira, Sambadeiras,  Cordelistas, – Mamulengo,  Coureiros e Coureiras do Tambor de Crioula, – Kazumbá, Vaqueiro,  Pai Francisco e Mãe Catirina são guardiãs da memória e carregam consigo os símbolos e conhecimentos transmitidos ao longo da construção do Brasil enquanto nação. Cada um representa uma manifestação, seja através de danças, músicas, trajes típicos, artesanato e inúmeras outras formas artísticas. 

Direito à memória 

O pedido de não esquecimento foi também uma marca do primeiro dia. Na cerimônia de abertura, o presidente Lula discursou sobre a importância de lembrarmos que há pouco tempo atrás o MinC não existia e os artistas eram atacados. “Esse país teve um governo que teve a ousadia de acabar com o Ministério da Cultura, [considerando] que não era um Ministério importante para o Brasil e para o povo brasileiro”, lembrou Lula. “Eles chegaram a dizer e coordenaram de forma muito feroz ataques contra artistas. A gente não pode esquecer que tivemos um secretário da cultura que chamava artistas de ‘criaturas imundas’”. No discurso, Lula elogiou o trabalho da Ministra e disse que ela não está apenas honrando o legado de Gilberto, mas fazendo história. 

A artista e Conselheira Nacional de Cultura Daiara Tukano fez uma fala certeira. “Nosso colegiado nacional do CNPC carece de mais compadecimento. Ainda mais depois de toda força desmobilizadora e autoritária do governo anterior. Merecemos mais poder, e temos muito para avançar”. 

Lula discursou na abertura e desabafou sobre o governo de Bolsonaro (Foto: Filipe Araújo/MInC)

Daiara lembrou que no dia do início da CNC, os povos indígenas do Brasil lamentavam o assassinato de dois líderes indígenas, Merong Kamakã Mongoió e Geraldo Tapeba, coordenador de escolas em Fortaleza. “A 4ª CNC é um lugar de escuta e pactuação das demandas de reconstrução de um cenário onde muitas vezes faltam ouvidos públicos atentos para a voz da sociedade civil – mesmo que essa seja gritante. Aqui estamos nós para que vocês nos escutem e entendam: não queremos conselhos de faz de conta, fundos de cultura vazios”, pediu a Conselheira Nacional de Cultura.

“Queremos mesas diretoras de todos os conselhos com o poder popular, inclusive nas presidências e deliberações. Queremos fiscalização, busca ativa, e eficiência nas políticas públicas de cultura. Queremos segurança trabalhista, afinal somos trabalhadores da cultura. Queremos nossos direitos e queremos participar dessa construção.” A fala foi aplaudida de pé e ovacionada pelo auditório com mais de 2.800 pessoas, erguendo bandeiras dos seus estados e de seus coletivos. 

A cerimônia contou com a presença da primeira-dama, Janja da Silva, e dos ministros da Saúde, Nísia Trindade; da Igualdade Racial, Anielle Franco; da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos; das Minas e Energia, Alexandre Silveira e da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo. Também participaram parlamentares, gestores e conselheiros culturais, representantes das culturas indígenas e afro-brasileiras, influencers e artistas. Entre eles, Ivan Baron, Antônio Grassi, Bárbara Paz, Cristina Pereira, Fabrício Boliveira, Klebber Toledo, Mônica Martelli e Lenine.

Também na abertura, Fafá de Belém entoou o hino nacional, emocionando o auditório lotado. O simbolismo do momento está na própria história da cantora, que cantava durante os protestos das Diretas Já no Pará. “Alguns aqui são muito jovens e nem imaginam o que foi a reconquista da democracia”, falou a cantora mais tarde no show de encerramento do primeiro dia. 

Público presente na abertura oficial da Conferência (Foto: Filipe Araújo/MinC)

Antes de subir no palco do festival, o cantor Johnny Hooker falou ao Nonada sobre políticas públicas para artistas LBTQIA+, um dos muitos temas transversais que perpassam a Conferência: “Eu acho que é fundamental, porque de qual outra maneira que essas vozes vão ser ouvidas num país que ainda é extremamente homofóbico?  Se você não tem essas políticas públicas para incentivar esses artistas, muitas vezes eles vão sofrer muitos boicotes, eu sei, porque eu já sofri muitos boicotes por ser abertamente LGBT. Então é importante que o Estado também faça a sua parte de inclusão e diversidade”.

Já no fim da noite, o transporte que levava os participantes do evento de volta para os hotéis seguia no ritmo da Conferência. O corredor do ônibus se transformou em uma Roda de Coco cantada pela mestra de cultura Mãe Beth de Oxum, patrimônio vivo do estado Pernambuco, e embalou os presentes em cantigas com versos como: “Quando dou nome a coisa, ela some”. Encontros que só uma Conferência Nacional de Cultura pode proporcionar. 

*A repórter viajou a Brasília a convite do Ministério da Cultura

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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