Prateado, o Expresso Gil abre suas portas numa estação com cheiro fresco do coentro e com o calor do dendê. No vagão de tamanho infinito, entra Thiago, rumo à estação final do percurso-vida, para muito além do ano 2000, lugar de um brilho que não tem fim, lugar onde ele pode encontrar um futuro.
O assassinato de Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, pela polícia militar do Rio de Janeiro, é um dos muitos trechos brutais da narrativa desse país fundado sobre a violência que, mais uma vez, nos leva a um ponto no qual já estivemos e do qual não conseguimos sair -o apagar forçado dos sonhos, a destituição do direito básico da existência. Thiago, que sonhava ser jogador de futebol, morreu e segue morrendo, principalmente, no choro das crianças como ele, incrédulas ao enterrar um amigo. O Brasil tem esse código-fonte brutalizante: o de apagar seu futuro, matando suas crianças.
O futuro para o qual o expresso de Gilberto Gil se direciona ainda está distante, mas é uma alternativa de criarmos uma possibilidade nas fronteiras brasileiras da realidade. Pensar um futuro para Thiago em um território não programado para matar crianças como ele, um lugar que permita não apenas o sonhar, mas o realizar desses sonhos, é uma possibilidade de, ao menos, tornar o presente suportável e menos doloroso. Embarcar em um trem rumo a um futuro em que as crianças negras, ao olharem para os seus próprios pés, não vislumbrem uma cova para si próprias, é um ato político e também estético.
Matando pássaros ontem, com as pedras de hoje
Imaginar um futuro com e para pessoas negras é um movimento que, em 1994, recebeu o nome de “afrofuturismo”, pela mão do escritor Mark Dery, no ensaio Black to the Future. Como um movimento cultural, político e filosófico, o afrofuturismo propõe uma reflexão sobre o espaço habitado por pessoas negras e desconstrói imaginários, estereótipos e narrativas, tendo por base a certeza que a possibilidade de continuidade da existência é uma variável dada.
Cunhado às vesperas de um século em que tudo parecia possível, o termo ajudou a organizar movimentos que já vinham sendo feitos anteriormente por artistas negros, especialmente na música e na literatura. Artistas preocupados em construir um imaginário de possibilidades futuras para uma diáspora negra, fatal e incontornavelmente vinculada ao seu passado. Se Dery, um homem branco, questiona na década de 1990 o porquê de pessoas negras não serem presença recorrente nas narrativas especulativas, anos antes, na década de 1960, o jazz cósmico de Sun-Ra já reivindicava o espaço sideral como um lugar de possibilidades para as pessoas negras, um refúgio seguro para além das fronteiras de uma realidade de violência e preconceito.
Vestindo roupas cintilantes que remetiam ao Antigo Egito, o instrumentista vislumbrava o futuro com os pés fincados no conhecimento e na filosofia do continente africano. É com Sun Ra que o afrofuturismo desponta na contracultura e são nas encruzilhadas intergalácticas das décadas de 1960 e 1970 que o jazz do artista estadunidense encontraria eco na música tropicalista de Gilberto Gil, que também viu a possibilidade de exaltar suas origens, sua pele e sua história, reivindicando com isso um novo futuro.
No álbum Gilberto Gil, de 1969, o cantor baiano vai além dos astronautas brancos que, naquele mesmo ano, deixavam pegadas na lua: ele imagina corpos sintéticos em Cérebro eletrônico, corpos que não aceitam o “impulso primitivo da morte”; é um “astronauta libertado” em Dois Mil e Um — “Dei um grito no escuro / Sou parceiro do futuro / Na reluzente galáxia”—; tem o corpo transmutado num corpo mutante em Futurível — “Você foi chamado, vai ser transmutado em energia / Seu segundo estágio de humanoide hoje se inicia / Fique calmo, vamos começar a transmissão / Meu sistema vai mudar sua dimensão”.
Ele vê o reflexo de um astronauta risonho numa “terra bola azulada” em Vitrines — “No cosmos de tudo e nada/ De éter de eternidade / De qualquer forma vitrine / Tudo que seja ou que esteja / Dentro e fora da cabine / Éter, cosmo, nave, nauta”. No álbum, o cantor baiano relaciona, de forma direta, a possibilidade de uma existência espacial e de uma experiência de futuro com anos-luz de duração, um verdadeiro tropicalismo intergalático.
Uma viagem ao planeta Carnaval
O trajeto afrofuturista é elíptico, e tem na valorização da ancestralidade o seu fio condutor. A ideia é a de que o passado das pessoas negras, bem como seu conhecimento e suas estratégias de sobrevivência, não são apenas a antessala do presente, elas são também um próprio manual para desbravar e entender o futuro. Nesse processo, transforma-se o passado da população negra: não apenas uma massa em estado de sobrevivência, mas, sim, um coletivo formado por agentes de uma potencialidade capaz de transformar, inclusive, o futuro.
Foi esse movimento que motivou Gilberto Gil a lançar dois álbuns muito celebrados de sua discografia: Expresso 2222 (1972) e Refazenda (1977). Ambos tematizam o retorno, um trajeto de volta para casa, de reencontro com aqueles que vieram antes, e, consequentemente, um trajeto de volta a si próprio, culminando numa nova perspectiva de futuro e numa curiosidade excitada por esse futuro. Expresso 2222 exclama isso na música-título — “Começou a circular o Expresso 2222 / Da Central do Brasil/ Que parte direto de Bonsucesso / Pra depois do ano 2000 / Dizem que tem muita gente de agora / Pra 2001 e 2 e tempo afora / Até onde essa estrada do tempo vai dar”
Em Vamos passear no astral — “Vamos passear no astral / Com o intelecto pirado / Caetanaves do ano passado vão pintar / Pra levar todo mundo pelo espaço / Pra levar todo mundo pro planeta Carnaval / Pelo menos, menina, por um dia / Vamos passear no astral”— vemos que o futuro não só é um momento de certeza, mas também de alegria.
O desejo de futuro que permeia o álbum é fruto de um processo de retorno, evidente em Back in Bahia — “Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui / Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim / Puxando o cabelo, nervoso / Naquela ausência / De calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir / Tanta saudade / Preservada num velho baú de prata dentro de mim” —, que por sua vez é a motivação central da produção do álbum. Lançado em 1972, o disco marca o retorno de Gil ao Brasil depois do exílio em Londres. A saudade do seu país e o desejo de reconhecê-lo culmina na nostalgia de um futuro de possibilidade e liberdade, no qual ele ousa pensar nos tempos de nuvens repressivas da ditadura militar.
O mesmo acontece na gênese de Refavela (1977), reflexo de quando ele pousou em Lagos, capital da Nigéria, onde participaria do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac). Naquele mesmo ano, Gil se deparou com um universo de diferentes vivências, sonoridades e hábitos culturais da diáspora. O cantor voltou ao Brasil com uma ânsia de revolver as raízes de África fincadas no país e, para isso, muniu-se, tanto dos ritmos brasileiros, caribenhos e africanos, como também da vontade de construir uma amálgama negra, um futuro de celebração distante do fundo de dor do oceano Atlântico, um afrofuturo de encontros, como o Festac.
Partindo da favela, espaço que é simbólico, por um lado, da violência institucional, e de outro, da capacidade de integração das figuras marginalizadas que a compõem, Gil enlaça a ancestralidade para redescobrir sua identidade. O que pode acontecer num amanhã em que pessoas negras se reconhecem e se veem como potenciais agentes de continuidade?
Símbolo disso é a música Babá alapalá, na qual os orixás servem como guias na busca por ancestrais, uma busca feita através da oralidade, que ecoa de geração para geração, em uma dúvida que funciona como algoritmo ancestral perene: avançar para o futuro, perguntando sobre o passado.
Griô intergalático
Gilberto Gil é uma figura cuja própria existência já se propõe afrofuturista. Referência ancestral que dimensiona o espaço-tempo, esse griô intergalático nos ensina, em versos que ecoam no espaço sideral da música popular brasileira, a nos projetar para o amanhã e a valorizar a possibilidade de um futuro. Gilberto Gil, que ao assumir o posto de ministro da Cultura, construiu pontos de cultura em regiões periféricas, verdadeiras pontes de lançamento para um espaço de novas possibilidades, ensina com vitalidade que há motivos para buscar o futuro.
O expresso pilotado por Gil leva a um lugar onde a ancestralidade é respeitada e não executada com tiros no rosto, um lugar onde Mãe Bernadete e Mestre Moa devolvem aos seus filhos e filhas muitas possibilidades de futuro, todas recolhidas no fundo do Atlântico e dos caveirões da PM. A expressão de Gil ecoa na voz presente de Xênia França e Ellen Oléria — existe algo mais poderoso que mulheres negras re-imaginando o futuro? —, na voz agora ausente da menina Eloáh, outra vítima de um Estado assassino, e também nas muitas vozes que se atravessam no passado e no presente, sempre enfáticas ao relembrar que pessoas negras têm direito a viver o futuro.
*Este ensaio foi originalmente publicado na revista Nonada – edição Cultura e Justiça Climática. Acesse aqui.