Com as crescentes e cada vez mais frequentes ondas de calor e chuvas extremas no país, o movimento As Águas Vão Rolar encaminhou uma carta assinada por mais de 80 coletivos, OSCs e blocos do carnaval da cidade de São Paulo ao poder público municipal. A carta reivindica medidas preventivas e de redução de riscos a serem incorporadas em eventos culturais onde haja aglomeração de pessoas, como o Carnaval. Uma das principais demandas é a distribuição gratuita de água.
Para o carnaval deste ano, são esperadas no Brasil temperaturas acima da média e poucas chuvas, ainda que, dado o histórico da região, elas possam ser expressivas. O movimento defende as reivindicações a partir das previsões do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e da agência norte-americana NOAA (sigla em inglês para Administração Oceânica e Atmosférica Nacional).
As medidas de prevenção visam proteger a saúde e a vida das milhares de pessoas que vão participar ou trabalhar no evento e devem ser incorporadas permanentemente e não apenas em situações de emergência, como afirma a carta:
“Ainda que a Prefeitura de São Paulo tenha a Operação Altas Temperaturas e possua um plano de contingência que estabelece uma série de medidas e ações para atender a população em caso de temperaturas ou sensação térmica maior que 32°C por 5 dias seguidos, é necessário que essa operação não tenha caráter somente emergencial, mas que promova medidas e ações de prevenção, especialmente para o período do Carnaval de rua de 2025.”
Dentre as demandas elencadas pela carta destinada a Comissão Especial de Organização do Carnaval de Rua 2025 e a Secretaria de Governo Municipal, estão:
- Distribuição Gratuita de Água: garantir fornecimento de água potável em locais de grande aglomeração, em conformidade com a Portaria nº 35/2023 do Ministério da Justiça.
- Preços Acessíveis para Água: solicitar à AMBEV S.A – JK BEER CENTER, patrocinadora do Carnaval de São Paulo, a adoção de preços mais baixos para água em comparação com bebidas alcoólicas.
- Flexibilidade nos Horários: permitir alterações nos horários de concentração, desfile e dispersão dos blocos em caso de calor intenso ou chuvas fortes, priorizando a saúde pública.
- Limpeza e Gestão de Resíduos: assegurar apoio em infraestrutura de banheiros e limpeza pública durante os blocos, além de reforçar o cumprimento da Lei Estadual nº 17.806/2023 para destinação adequada dos resíduos gerados e responsabilização das empresas patrocinadoras.
- Gabinete de Crise: criar um gabinete que monitore em tempo real as condições climáticas e responda rapidamente a emergências durante o Carnaval.
Até o momento, o movimento obteve resposta do poder público por meio da imprensa, não tendo sido atendido o pedido de uma audiência. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) declarou ao G1 que os horários de blocos não serão alterados em decorrência de chuva ou calor extremo. A São Paulo Turismo (SPturis) informou que está em diálogo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo SABESP para viabilizar distribuição de água aos foliões e que possui com um plano de emergência para situações de chuva extrema.
É esperado recorde de 767 blocos para o Carnaval de rua de 2025 da cidade de São Paulo, dos quais mais de 70 blocos já assinaram a carta do movimento As Águas Vão Rolar, que conta também com apoio do Greenpeace Brasil, Pimp My Carroça, A Cidade Precisa de Você, Rede Vozes Negras pelo Clima e Instituto Lamparina, entre outros. Mais de 800 desfiles estão previstos entre os dias 22 e 23 de fevereiro e 8 e 9 de março.
Sobre a relação da prefeitura de São Paulo com os blocos de carnaval, Lira Alli, da organização Arrastão dos Blocos, afirma: “Existe uma postura da prefeitura de São Paulo que não reconhece os blocos como os grandes fazedores da festa e coloca um protagonismo muito grande na relação entre a prefeitura e a AMBEV, que é a empresa patrocinadora [do Carnaval de São Paulo]. Não respeita o papel dos fazedores de cultura na construção da festa. O prefeito não dialoga diretamente com os blocos, não participa das audiências para as quais ele é convocado; ele só responde quando a imprensa entra em ação. Ele só responde a imprensa, não responde os blocos”. A articuladora ainda vê que a relação tem piorado cada vez mais, com regras mais proibitivas a cada ano e limites de horário sem sentido sendo estabelecidos.
“É muito surreal que em tempos de emergência climática não se tenha uma política para diminuir o preço da água que vai ser vendida”, comenta Lira sobre a ausência de políticas de redução no preço da água que poderiam ter sido desenvolvidas pela prefeitura em parceria com a AMBEV. “A água vai ser vendida pelo mesmo valor que a cerveja e o refrigerante.”
Para além das demandas da carta, Lira Alli explica que os blocos já tomam as próprias iniciativas individuais, como trabalhos desenvolvidos ao longo do ano em áreas verdes da cidade e a contratação de catadores que realizam a separação do material reciclável e não apenas a coleta do lixo.
“Poder pular Carnaval é um direito do povo brasileiro. É um direito cultural, de expressão, à cidade. O Carnaval possibilita o acesso a esses direitos. Tornar o Carnaval possível nesse cenário que a gente tá vivendo, das emergências climáticas, é fundamental. Quando a gente percorre as ruas, dentro de um bloquinho, a gente consegue ver uma cidade que na correria do trabalho do dia a dia a gente não percebe. A gente vê o rio, as árvores, se relaciona com a vizinhança. O Carnaval, nesse contexto, acaba sendo um momento de profunda experiência de outra forma de viver, inclusive de uma forma mais sustentável”, discorre Lira sobre a importância da realização dos blocos de carnaval no contexto das mudanças climáticas.
Lira acredita que a carta assinada pelos blocos do carnaval de São Paulo pode mobilizar o envolvimento do carnaval de outras cidades com o debate urgente acerca das mudanças climáticas e medidas a serem tomadas. “Carnaval de rua é articulado nacionalmente, e o que acontece em um lugar acontece em outro. Mas, infelizmente, parece que esse debate das mudanças climáticas é um debate ainda mais avançado. Em muitas cidades a gente tá tendo que garantir o direito a pular Carnaval ainda. A gente tá em um momento muito difícil, em que existe uma onda conservadora anti-carnaval em muitos lugares do país. Inclusive em São Paulo, que tem que terminar o Carnaval às 18hrs, o que obriga as pessoas a fazerem o Carnaval no horário mais quente do dia.”
Direito à folia
As alterações no clima são percebidas a cada dia de modo mais evidente em todos os aspectos da vida em sociedade. O Carnaval, maior festa popular do Brasil, não passaria ileso por essas mudanças, e a temática já está sendo abordada pelas marchinhas de Carnaval. Em 2024, as mudanças climáticas foram tema do bloco carnavalesco Virtual, no Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, o tradicional Bloco da Laje lançou no dia 30 de janeiro de 2025 um álbum intitulado Depois da Chuva, em alusão às inundações que assolaram o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024. Na canção “O Segredo da Deusa”, a importância da natureza e o negacionismo científico aparecem como tema.
A crise também afeta o modo de brincar dos foliões e sua relação com as cidades. No sábado de 15 de fevereiro, a temperatura na cidade do Rio de Janeiro chegou aos 35ºC e mobilizou foliões do bloco Lolo de Ouro a buscarem refúgio no espelho d’água do Museu do Amanhã. Nos dias que seguiram, a temperatura na cidade alcançou os 40ºC.
Em nota, após cercear o espaço dado o incidente com os foliões, o Museu do Amanhã alertou que a água que circunda o espaço é imprópria para banho. Ela serve para reduzir a temperatura do local e atua na climatização do museu, mas contém impurezas e produtos químicos que podem prejudicar a saúde humana.
O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), declarou que blocos não serão cancelados em razão do calor extremo, e orientou que os foliões bebam mais água. O COR-Rio (Centro de Operações e Resiliência) monitora o calor na cidade em uma escala de 1 a 5. Caso atinja Calor 4, 58 pontos de resfriamento são abertos para hidratação de funcionários que trabalham expostos ao sol.