Projeto Bi-bi no Instituto Padre Haroldo, em Campinas (SP) (Foto: Amora Produções Culturais)

Como projetos independentes contribuem com a democratização da leitura em comunidades do interior e das periferias

Foi depois de ter adquirido um sítio no interior de Vitória da Conquista (BA) que a poeta e escritora Juliana Brito uniu sua vocação para a literatura à receptividade da comunidade do distrito de Cabeceira do Jibóia, fazendo nascer a Biblioteca Comunitária Donaraça – assim mesmo, com o r que leva a língua ao céu da boca e a faz tremer. Desde que fundou a biblioteca no início da pandemia de coronavírus, Juliana tem redescoberto repetidamente as potencialidades do mundo do espontâneo e do deslumbramento promovidas pela leitura, que, para ela, fala principalmente de encontro. E é nesses encontros com os leitores do povoado que a transformação ganha forma.

Já em seu nome, o espaço constitui aquilo que a difere de uma biblioteca institucional: a concepção a partir das necessidades locais e pontuais de uma comunidade. O nome é uma homenagem à Dona Iraci, trabalhadora rural do povoado baiano que foi batizada de Iraça por seu avô, ou melhor, por seu pai véi. “Eu pensei: ‘se é uma biblioteca comunitária para acolher e ser acolhido, vamos homenagear Dona Iraci’”. O início do projeto, tímido, que circulava entre amigos e conhecidos, logo avançou conforme o interesse dos demais deixou de se limitar à curiosidade passageira e se transformou em vontade de acrescentar e pertencer.

Com o objetivo de driblar a realidade de distanciamento imposta pela pandemia e também as distâncias da zona rural, Juliana, junto de sua família, dos amigos e das filhas de Dona Iraci, recheou capangas com livros e cruzou as estradas e os caminhos do distrito, batendo de porta em porta para entregar, nos lares de quem recebesse, a pequena sacola. Com o passar do tempo, pais e mães se juntaram aos filhos na leitura das obras que eram trocadas primeiro toda semana, depois, a cada duas, e assim variava de acordo com a quantidade de livros demandada em cada casa.

 Autores como Itamar Vieira Júnior, Ailton Krenak, Carolina Maria de Jesus são alguns dos que figuram na lista de obras distribuídas pela Donaraça. “Como é que a gente vence isso de as pessoas não poderem estar toda hora, na hora que elas querem, ir lá [na biblioteca] buscar o livro? Então essa foi a nossa forma de fazer com que esse livro chegasse até elas”, explica a educadora.  Há quatro anos em exercício, a Biblioteca já ofereceu diversas oficinas, além de estimular debates em torno do fazer literário no cotidiano das mulheres e coordenar encontros de escritores. 

Iniciativas como a criada por Juliana fazem a diferença em um país onde metade da população não é leitora habitual de livros, como aponta a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada em novembro de 2024. Num Brasil que lê cada vez menos, projetos de incentivo à leitura são indispensáveis. E mais indispensáveis ainda são aqueles que alcançam as margens das grandes metrópoles e os lugares recônditos do território rural, contribuindo com a descentralização da leitura dos centros urbanos. 

Ao contrário do que diz a letra de Roberto Mendes, a intenção de Juliana e da biblioteca não é unicamente ensinar seus camaradas. “A gente não está aqui para ensinar nada para ninguém. Como é que eu vou trabalhar essa coisa da educação, por exemplo, sem dizer ‘olha, eu não quero ensinar nada para ninguém, eu estou aqui para aprender’”, explica. E muito se aprende: seja nas conversas batizadas com café e biscoitos durante a entrega das capangas às famílias, seja nos encontros realizados na biblioteca. 

O coração no ritmo da Terra

Na Escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, Porto Alegre (RS), as obras de Ailton Krenak e de outros autores indígenas e negros, como Dalva Maria Soares e José Falero, também ecoam como forma de promover a leitura a partir de um ponto de vista decolonial. O Coletivo Luisa Marques, formado por alunas do ensino fundamental e cuja atuação completou cinco anos, realiza projetos que conversam com a realidade da comunidade por meio do acesso a essas obras.

A Mochiloteca, que se baseia nos poemas de Sérgio Vaz de incluir a leitura na dieta, leva livros de casa em casa e realiza leitura de poemas ao vivo. O AmarElo, criado no pós-pandemia, é um convite para falar sobre os sentimentos como forma de prevenção à depressão e ao suicídio. A Feira Literária da Escola Saint Hilaire (FLISH), que acontece há dez anos, teve como temática de sua última edição o pensamento de Krenak trazido no livro Futuro Ancestral: “Colocar o coração no ritmo da Terra”. 

“Aqui, no nosso bairro, a escola é um ponto de cultura. Não tem outro espaço cultural. Então, todas as ações que são pensadas por esse coletivo também são pensadas para além do muro da escola”, comenta Maria Gabriela Pires de Souza, professora da instituição. A realização da feira, que pretende destacar os mundos da leitura e discutir ideias de transformação, também é pensada para incluir e aproximar a comunidade dos debates promovidos na instituição. Na edição de 2024, foram dez dias de programação pensadas tanto para os alunos do ensino fundamental quanto para os estudantes do EJA, do turno noturno, além de serem abertas ao público. 

Meninas dos Coletivo Luisa Marques promovem projetos que aliam literatura a questões sociais (Foto: divulgação)

A estudante Joana Dorneles de Souza, formanda do 9º ano, deixa a escola – que não oferece ensino médio – levando consigo memórias afetivas dos anos como integrante do Coletivo que “mudaram sua vida para sempre”. Apaixonada por desenhar, Joana ilustrou o livro De onde é esse sangue, Joana?, que fala sobre menstruação, escrito pelo próprio Coletivo. O Voar juntas, também escrito pelas meninas, traz uma fábula que conscientiza sobre abuso sexual. “A gente trabalha esses livros de uma maneira lúdica com as crianças para abordar esses temas que são difíceis, mas que precisam ser falados”, explica. “A literatura, para nós do coletivo, é essa ponte que conecta a gente com as pessoas que estamos escutando. O que queremos é levar elas para dentro da história”, diz Joana.

A temática utilizada na feira literária vem de um projeto anterior, chamado Verde, que visa aproximar crianças e jovens da natureza. No Parque Saint Hilaire, próximo à escola, os estudantes se reúnem para aulas ao ar livre em que a leitura em voz alta e em conjunto agrega no conhecimento. “​​Fazer essa conexão com a natureza mostra a importância de a gente cuidar do nosso planeta. Muitas crianças não têm essa dimensão de como é estar nesses espaços”, comenta a estudante. Para Joana, em tempos de infâncias e juventudes ocupadas pelas telas, é importante parar, refletir e reconhecer que é preciso colocar o coração no ritmo da Terra.

Itinerância das palavras 

Na periferia de Campinas (SP), o Grupo Primavera, organização da sociedade civil que trabalha com projetos educacionais para crianças, viu a perspectiva dos pequenos sobre a leitura se transformar com a chegada do projeto Bi Bi Móvel, uma biblioteca itinerante coordenada pela Amora Produções Culturais. 

O projeto, financiado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura e que nasceu com o objetivo de aproximar escolas e comunidades do ambiente literário, atua a partir da entrega de livros (selecionados a partir da lista do clube dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU) nos locais visitados e também com contação de histórias, oficinas ministradas para estudantes e professores, além atividades como dança e teatro. 

Crianças aproveitam inauguram da nova biblioteca construída pelo projeto Bi-Bi em Campinas (SP) (Foto: Amora Produções Culturais)

A produtora cultural Luciana Tondo, co-fundadora da Amora e uma das idealizadoras do projeto, explica que muitas escolas não possuem uma biblioteca, tornando necessário a construção desse espaço do zero. “Muitas vezes, o incentivo não vem de casa, cada vez menos as pessoas consomem [livros]. Se não vem da escola, como é que elas iam ter esse contato?”, indaga. Nesses casos, o projeto cria e implementa o espaço literário, desde pintura e criação de imobiliário à doação do acervo literário. “A gente pensou em formas de promover experiências de literatura. É mais do que entregar um livro, é como eles poderiam estar de fato imersos nesse universo da literatura e sendo instigados para para ler e consumir livros”, conta.

“Às vezes, a gente pensa em biblioteca e vem muito aquele lugar frio, cheio de armário, com tudo muito quadradinho e que tem que ficar em silêncio. Agora a gente está lidando com escolas que passaram pela enchente no RS, então também perderam seu acervo, perderam tudo, estão sem biblioteca. E a gente nessa trajetória vai entendendo o projeto, conversando, pesquisando a realidade, trocando com os professores”, comenta Luciana, ressaltando que as bibliotecas construídas pelo Bi-Bi são feitos com o intuito de humanizar. O projeto visa estar em lugares cujas demandas são mais urgentes.

Yasmin, estudante do 4º ano, de 10 anos, foi uma das crianças do Grupo Primavera que participaram das oficinas da biblioteca itinerante. O interesse pela dança e pelo desenho fez com que a atividade promovesse em seu imaginário uma aproximação entre suas paixões individuais com a leitura, incentivando-a a ler mais. “No livro Sonhos de Ágatha, ela mostra que podemos ser o que quisermos, basta sonhar. Eu sonho em ser atriz ou modelo. As profissões que eu sonho precisa ler, até porque a leitura é ótima para o nosso aprendizado, pois através da leitura, conhecemos novos lugares, novas palavras e muito mais”, comenta a estudante, categórica. 

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Estudante de Jornalismo na UFRGS. Repórter em formação. Gosta de escrever sobre o Outro. Na mesa de cabeceira há sempre um romance. Cearense no Sul.
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