*Esta reportagem integra o projeto Jornalistas pelo Clima, realizado por Repórteres Sem Fronteiras, Nonada e Matinal Jornalismo
A casa número 1376 da Rua Diretor Augusto Pestana, no bairro Humaitá, em Porto Alegre, foi erguida em meados da década de 1950. Integra um conjunto habitacional projetado para atender antigos servidores da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Caso de Paulo Roberto Loureiro Pereira, 76, e sua esposa Silvia Maria Mauer, 77.
O casal precisou sair às pressas quando a água inundou a capital gaúcha em maio do ano passado. Hoje, a residência localizada na Vila dos Ferroviários está inabitada — e inabitável. O verde desbotado das paredes, as frestas entre os caibros, o telhado de barro gasto e ligeiramente torto são marcas visíveis da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul.
Moradora de Alvorada, na Região Metropolitana, a filha do casal acolheu os pais por três meses — tempo até que pudessem voltar e ver o que restou. “Parecia que tinha tido uma guerra dentro de casa. O freezer caído, cheio de carne estragada. Os móveis tombados. Eu perdi a minha história toda.”
Hoje, estão de volta à vizinhança onde viveram por mais de quatro décadas — desta vez, como inquilinos. Desembolsam R$ 1.000 por mês com o valor da aposentadoria, já insuficiente para manter as contas em dia. “Faz quatro meses que eu não consigo arcar com o aluguel. Cubro a luz, a água, compro meus medicamentos. O resto vai para comida”, conta Silvia.
Diabética e com problemas vasculares, ela também desenvolveu ansiedade climática, um misto de medo pelo que já se impôs e apreensão pelo que ainda pode acontecer. “Gasto uns R$ 200 todo mês com remédio. O governo fornece alguns, mas tem outros que eu tenho que comprar.”
Os dois se enquadram no critério da Compra Assistida, programa do governo federal voltado a famílias que perderam suas casas nas enchentes e não têm condições de reconstruí-las. Pela iniciativa, o poder público financia a compra de um novo imóvel, escolhido pelo próprio beneficiário, com valor de até R$ 200 mil.
Até agora, 10,9 mil moradias já foram autorizadas ou contratadas. Mas Silvia e Paulo seguem à espera. Não sabem quando — ou se — terão a casa substituída por outra. A adesão ao programa, dizem, não foi uma escolha, mas a única saída diante da falta de recursos para recomeçar.

Memórias da tragédia seguem presentes
“Disseram que não chegaria até aqui. Meu marido se criou neste lugar e nunca tinha visto nada parecido. Depois soubemos que um reservatório havia estourado. A água veio de repente, aos borbotões”, relembra Silvia Maria, com olhar voltado para o quintal que já não reconhece.
Muito antes das chuvas, Paulo forrou as paredes de casa com caixas de leite. Era um pequeno reparo de rotina, feito por precaução. Nada, porém, o prepararia para o que veio depois.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, o Humaitá foi o quarto bairro de Porto Alegre mais afetado pela enchente. Ao todo, 12.617 pessoas e 1.377 edificações foram atingidas. Na Vila dos Ferroviários, todas as 186 residências ficaram embaixo d’água.
Silvia resistiu o quanto pôde. “Fiquei em casa, esperando até o momento que não tinha mais o que esperar. A única coisa que consegui salvar foram meus documentos.” O neto, vindo de Viamão, chegou de Uber e a encontrou com a água já na cintura. “Foi tudo muito rápido. Em menos de duas horas, o lugar inteiro estava tomado.”
O clima e a população idosa pelo mundo
Relatos assim mostram que os efeitos da crise climática não atingem todos da mesma forma. Não apenas por fatores sociais e econômicos, mas porque existe uma interação entre envelhecimento e desigualdades acumuladas.
São diferenças persistentes de renda, raça e gênero. É morar em área mais suscetível a alagamentos. É ter estudado menos e ter acesso irregular a serviços de saúde. É a inserção no trabalho, muitas vezes informal. Tudo isso se soma. E chega à velhice como capital de proteção maior ou menor.
“Esse acúmulo se torna mais evidente a partir dos 80 anos, quando crescem a dependência de cuidados, a fragilidade física e o isolamento social”, explica o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Johannes Doll, especialista em Gerontologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. “É nesse estágio que as crises climáticas encontram pessoas com pouco amparo e quase nenhuma margem de defesa.”
No Rio Grande do Sul, a projeção demográfica aponta para um cenário de envelhecimento acelerado: até 2070, quase 40% da população será composta por pessoas idosas, segundo projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base nos dados do Censo 2022.
Mas a mudança não se restringe ao estado. Em todo o país, a proporção de jovens vem diminuindo desde os anos 1980, enquanto os eventos extremos se tornam mais frequentes. O problema é que a capacidade de resposta segue limitada.
Um levantamento da Secretaria de Articulação e Monitoramento da Casa Civil identificou 1.942 municípios suscetíveis a desastres associados a deslizamentos de terras, alagamentos, enxurradas e inundações. Isso equivale a quase 35% das cidades brasileiras.
São ameaças que se espalham pelo planeta. No Japão, país com a maior expectativa de vida do mundo, a hipertermia mata centenas de idosos todos os anos. Neste verão, mais de 100 mil pessoas foram hospitalizadas por insolação grave.
A Coreia do Sul e a China também enfrentaram temperaturas recorde, enquanto a Europa perdeu uma área do tamanho do Chipre devido a incêndios florestais. Retrato de um planeta em que a ação humana empurra o clima a extremos cada vez mais intensos.

População idosa relegada ao improviso
Por aqui, o cuidado com a população idosa segue relegado ao improviso. Entre maio e junho de 2024, o Observatório do Desenvolvimento Social realizou um censo sobre os abrigos provisórios no RS. Foram registradas 7.457 pessoas idosas, de um total de 69.415 acolhidos em 981 abrigos.
O percentual, em torno de 11%, causa estranhamento diante do retrato populacional do estado: quase 2,2 milhões de gaúchos têm 60 anos ou mais, o que equivale a um em cada cinco habitantes.
Mesmo nos locais que atendiam idosos, as condições eram precárias, conta a psicóloga Grace Gomes. “Muitos passaram dias deitados em colchões no chão, com dificuldade para se mover, sentindo dores, cercados por barulho — a correria das crianças, o latido dos cachorros”, relata ela, que atuou principalmente na Paróquia São José da Vila Nova “Era um ambiente pouco pensado para o corpo e o ritmo deles.”
Há uma razão para que essa inadequação seja tão recorrente. “Quando falamos dos cuidados com pessoas idosas e na formação de profissionais, especialmente cuidadores, quase sempre pensamos em ambientes domésticos, como casas e apartamentos”, observa o ex-vereador Adeli Sell (PT), que por anos defendeu na Câmara Municipal pautas ligadas à mobilidade e ao envelhecimento. “O problema é que essa geração não foi preparada para enfrentar situações como essa. Nem aqueles que deveriam protegê-las: filhos, netos, cuidadores, autoridades.”
Descaso oficial
A reportagem procurou a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) para saber quantos abrigos voltados exclusivamente ao público seguem em funcionamento. Também questionou quais medidas de acompanhamento foram adotadas após o fim da fase emergencial e que estratégias estão previstas para garantir uma resposta mais rápida e adequada em futuros desastres. Não houve retorno às perguntas enviadas. O pedido de entrevista também foi negado.
Em nota, a assessoria limitou-se a informar que, “neste momento, não poderemos participar de entrevistas, em virtude de estarmos em processo de parceirização, além de ausências de estrutura para execução de nosso trabalho.”
Embora tenha demonstrado disposição para dialogar, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul se mostrou vacilante. Conforme a tenente Sabrina Ribas, coordenadora de Comunicação Social do órgão estadual, o papel da instituição é “muito mais de articulação do que de atendimento direto”, cabendo aos municípios a gestão de riscos. “Nosso papel é apoiar, coordenar, articular”, explica. Quando o desastre supera a capacidade local, o Estado entra “para suplementar” — expressão que, no jargão técnico, significa chegar depois.
O decreto que estrutura a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil diz outra coisa. O órgão tem atuação prevista em todas as fases da gestão de riscos — prevenção, mitigação, preparação, resposta e reconstrução. Também é sua responsabilidade mapear pontos críticos e propor ações de contingência, com o apoio de universidades, institutos de pesquisa e órgãos meteorológicos.
Na prática, o trabalho da Coordenadoria se concentra na etapa de resposta, quando o desastre já se consumou. O discurso de que sua função é apenas de “articulação” revela uma inversão de papéis: o Estado, que deveria liderar o planejamento preventivo, transfere à ponta a tarefa de proteger quem mais precisa.
A própria servidora reconhece que “as estruturas municipais são deficitárias”. Faltam equipes, recursos e capacitação técnica para planejar ações de prevenção e resposta. O resultado é uma engrenagem que descentraliza deveres e centraliza fragilidades. O Estado cobra dos municípios aquilo que sabe que eles não podem cumprir.
Ações pontuais de acolhimento
A presidente do Conselho Estadual da Pessoa Idosa (CEI), Ivanir Maria Argenta dos Santos, afirma que o projeto Cuidar Tchê 60+ destinou R$ 6 milhões ao atendimento de pessoas atingidas pelas enchentes. A iniciativa distribuiu kits de itens essenciais, avaliados em R$ 3 mil, para pessoas idosas em situação de vulnerabilidade social.
Os valores foram repassados pelo Fundo Estadual da Pessoa Idosa (Funepi), vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social. No entanto, segundo Ivanir, nenhum recurso foi aplicado em ações de caráter continuado.
O Auxílio Reconstrução também serviu como resposta pontual à crise. O benefício, de R$ 5.100 pagos em parcela única pelo governo federal, foi concedido a famílias que precisaram deixar suas casas — temporária ou definitivamente — em municípios em situação de calamidade ou emergência. “Mal deu pra comprar um balcãozinho, um armário aéreo e mais um de apoio”, lamenta Silvia Maria Mauer.
Conforme estudo do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o infortúnio que escancarou a falta de coordenação entre Estado, municípios e União não foi uma fatalidade. Foi resultado de um desmonte institucional que vem se aprofundando há décadas.
Segundo os autores, a estrutura de gestão de riscos e planejamento urbano no RS foi desmantelada ao longo dos anos. Cortes orçamentários, extinção de órgãos e o enfraquecimento de instituições como a Metroplan e o Ministério das Cidades agravaram o processo. Hoje, a rede pública já não consegue se antecipar às tragédias nem amparar as populações mais vulneráveis.
No caso dos idosos, essa lacuna se traduz em abandono. A enchente levou casas, isolou cuidadores e enfraqueceu redes de apoio. Sem planos de contingência nem abrigos preparados, milhares de pessoas com mais de 60 anos dependeram de vizinhos, parentes e voluntários.
“Não temos quaisquer políticas de atenção à pessoa idosa, nem na capital nem no estado”, critica Sell. Segundo ele, o espaço urbano é hostil para quem envelhece — não apenas pelas barreiras físicas, como calçadas irregulares e transporte precário, mas por conta de uma cultura que ainda não aprendeu a conviver bem com o avanço da idade.

Vínculos comunitários como resposta
Diante de um poder público disperso em outras frentes, a mobilização popular assumiu a primeira linha de resposta. Desde os primeiros dias de maio, o Quilombo dos Machado, na Grande Sarandi, transformou-se em um núcleo de ajuda e articulação coletiva. Ali, centenas de pessoas desabrigadas encontraram marmitas, cestas básicas, colchões, produtos de limpeza e água potável para contornar a omissão das autoridades.
Aos 72 anos, Lúcia Muria personifica a autossuficiência forçada. Mais de um ano após a enchente histórica, ela ainda aguarda melhorias habitacionais. Em 2024, a água voltou a invadir a Vila Respeito — o mesmo lugar onde, em 2013, ela já havia perdido a casa. Matriarca de 24 netos e bisnetos, dona Lúcia precisou acolher o filho, a nora e as netas que ficaram sem teto. Hoje, continua em uma área onde cada chuva reacende o medo de perder o chão da própria história.
A despeito das dificuldades, a vida segue em movimento graças à rede formada entre vizinhos. Silvia Maria Mauer participa do Projeto das Marias, iniciativa da Associação Beneficente Cultural Esportiva dos Ferroviários (ABCEFer) que mantém atividades como costura, pintura e uma horta comunitária. O projeto é coordenado por Daiane Germany, filha de ferroviário, que, junto a outras mulheres, tenta reconstruir o território a partir do que restou.
Durante a enchente, Daiane atuou no abrigo improvisado na escola em frente à associação. “A maioria das pessoas que chegaram eram idosas, algumas em cadeira de rodas”, lembra. “Tinha gente que usava insulina, remédios controlados — e a gente estava sem luz, sem ter como armazenar nada.”
Desde então, ela segue tentando reatar laços e reerguer espaços coletivos. O calendário de oficinas e cuidados comunitários parece ser o que mantém as pessoas unidas. Silvia é frequentadora assídua. Para ela, os encontros com semelhantes ajudam a restabelecer uma rotina e, em alguma medida, o sentido dos dias.
Ainda assim, a refugiada climática não se ilude com o alcance da solidariedade. “Quando tem uma mãe com quatro, cinco filhos, é claro que ela vai ser ajudada primeiro. É justo. Crianças pequenas precisam comer, precisam de abrigo”, diz. “Mas a gente também precisa. Eles precisam olhar para nós. Parece que o velho é invisível.”
A observação se repete algumas vezes ao longo da conversa. É dita com um sorriso resignado, como quem tenta se convencer de que ainda há tempo de ser vista. “Quando a gente é jovem, fala em futuro. O meu chegou — e eu não esperava que fosse assim.”
Como qualificar o resgate de idosos em tempos de calamidade?
No livro Perdi tudo, e agora?, a arquiteta Elanara Stein Leitão propõe medidas urgentes do poder público para proteger pessoas idosas em desastres — e servir de base para um protocolo que ainda não existe.
Cadastro e mapeamento de idosos em situação de vulnerabilidade
Identificar onde vivem, em quais condições e de que tipo de apoio necessitam é o primeiro passo para garantir que ninguém seja deixado para trás durante uma emergência.
Planejamento de rotas de resgate acessíveis
Mapear trajetos que permitam a retirada rápida e segura de pessoas com mobilidade reduzida pode fazer a diferença entre o socorro e o desamparo.
Treinamento de equipes de resgate
Preparar profissionais e voluntários para lidar com as necessidades específicas da população idosa evita improvisos e reduz riscos durante o atendimento.
Estabelecimento de abrigos seguros e acessíveis
Espaços adaptados, com rampas, banheiros adequados e suporte médico, são essenciais para acolher idosos com dignidade e conforto.
Manutenção de canais de comunicação
Garantir que alertas e informações cheguem a todos, inclusive a quem não usa celular ou internet, é vital para prevenir tragédias e orientar o resgate.
