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Não é sempre que os aparelhos audiodescritores do grupo teatral amazonense Coletiva de Palhaças funcionam. E, quando funcionam, não é garantia de que farão justiça às emoções entregues pelas palhaças em suas produções quando sobem aos palcos para contar histórias de amor e travessias. Muitas vezes, a voz padronizada que faz a audiodescrição das apresentações passa longe de cativar o público. E isso vale tanto para pessoas cegas e de baixa visão, que veem com os ouvidos e demais sentidos, quanto para pessoas videntes e ouvintes não-DEF, que têm a chance de encontrar nas tecnologias de acessibilidade uma maneira de expandir a experiência artística.
Para lidar com esses imprevistos, as mulheres decidiram que, nessas ocasiões, elas mesmas desempenhariam esse papel. Residentes de Manaus, onde parte das estradas que as levam a trabalho até as cidades interioranas não são de chão, mas de rio, gerenciar o improviso é uma condição inerente a um território onde, histórica e geograficamente, muitos recursos não chegam por falta de logística.
Inventividade, nesse caso, poderia ser só mais um atributo intrínseco ao ofício das artes cênicas. Mas quando se considera a encruzilhada presente nesse contexto de ausências, caracterizada pela vivência de mulheres negras, amazonenses e DEF, a inventividade é reflexo da pouca atenção dada à acessibilidade – pelo menos por parte de quem não é DEF.
O Nonada ouviu artistas e agentes culturais com deficiência, professores e editoras do mercado literário para compreender como iniciativas criativas podem potencializar a acessibilidade cultural como um recurso estético nas artes.
Ananda Guimarães, diretora do grupo amazonense, diagnosticada com baixa visão, lembra do pânico que sentia junto de suas colegas diante da iminência da falha dos aparelhos audiodescritores, algo que prejudica a experiência de quem depende dessa tecnologia para experienciar um espetáculo. Ainda que estivessem na formação para audiodescritoras narradoras, as palhaças não haviam chegado à parte prática do curso. Para não ficarem à mercê do imprevisto, o jeito foi arriscar com os conhecimentos que tinham.

Desde então, narrar descritivamente é tão parte do trabalho do grupo quanto a palhaçaria envolvida em sua realização. “Propor novas maneiras de trazer a acessibilidade para dentro da nossa dramaturgia é algo que já se tornou orgânico pra gente. Desde o momento em que a gente propõe cenas para os nossos improvisos, a gente já pensa em maneiras de acessibilizar isso”, comenta a atriz.
É o que acontece em Maria quer ser rio, espetáculo em que a audiodescrição é um elemento estético indissociável da dramaturgia. Na trama, Mariazinha, que, assim como Ananda tem baixa visão, se descobre fissurada pelo Rio Negro, que banha parte do estado do Amazonas. No decorrer da narrativa, a menina descreve as aparições que surgem em seu caminho conforme ela as enxerga, suscitando imagens que se encontram nos campos do invisível e da criação, além de explorar a imaginação de uma criança com deficiência que vive na beira do rio. A história de Mariazinha é uma ode às infâncias, perpassando por aquelas que vivem na terra, as que já fizeram a passagem, e as que moram com os adultos, adormecidos em infâncias guardadas.
“Para a gente, a audiodescrição dificilmente vai estar deslocada da dramaturgia, como se fosse um recurso à parte. Embora a gente se adapte à proposta de alguns festivais que propõem a acessibilidade como um recurso, a gente tenta trazer ela de uma maneira subjetiva, pensando na fruição artística”, diz Ananda.
O mesmo vale para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) dentro do espetáculo, que é realizada pelas próprias palhaças do grupo. Para não reproduzir a normatividade e tirar o intérprete do lugar de deslocamento, a Coletiva optou pela formação de duas intérpretes que se somaram ao grupo como palhaças. Um figurino extra está sempre na bagagem, para o caso de surgir a necessidade de contar com a mediação de outra profissional que não uma da Coletiva. “Isso é uma forma de a gente pensar em como trazer a LIBRAS pra esse lugar da fruição, tirar ela daquele canto isolado no palco, entendendo a acessibilidade também como um conhecimento artístico.”
Criatividade em LIBRAS
Tirar o intérprete de LIBRAS do lugar de deslocamento e inseri-lo dentro da dramaturgia através do figurino também foi uma ideia que a atriz e preparadora de elenco Moira Braga, teve em seu espetáculo infantil chamado Ventaneira – A cidade das flautas, de 2016. A peça é inspirada no livro As Cidades Invisíveis, do autor cubano Ítalo Calvino.
A proposta do Ventaneira era a de que, ao entrar no teatro, era na cidade fantástica que dá nome ao espetáculo que o público de fato estava entrando. E se o teatro era uma cidade fantástica, os intérpretes não poderiam adotar o tradicional preto para fazerem o trabalho com a LIBRAS. “Eu pensei, ‘eles precisam ser habitantes dessa cidade, então ao menos figurino eles precisam usar’”, explica Moira. Foi a sua primeira experiência como produtora do próprio espetáculo.

“Antes mesmo de me tornar uma artista, eu já era cega”, diz a atriz. O diagnóstico de Stargardt, doença genética rara que afeta a parte central da retina e leva à perda progressiva da visão, veio ainda na infância, quando tinha 7 anos. Consequentemente, a atriz se tornou usuária de audiodescrição muito cedo.
Enquanto estudava dança na faculdade, aprendeu também o recurso de acessibilidade, o que a levou a fazer um trabalho de pesquisa sobre a audiodescrição na dança. Mais tarde, a pesquisa a faria pensar em diferentes formas de inserir o recurso em suas produções. Com a ajuda da audiodescritora Nara Monteiro, que apresentou a audiodescrição para Moira, o recurso logo passou a ser elaborado como um elemento da dramaturgia.
Depois do trabalho com o espetáculo de 2016, passou a reverberar na cabeça da atriz formas de trazer para a cena teatral a acessibilidade como algo que não se restringisse a apenas um recurso, mas que pudesse ser uma linguagem que conversasse esteticamente com a obra. Em 2012, a atriz conseguiu o financiamento de um edital de incentivo à cultura e transformou a peça em uma produção audiovisual. Desta vez, o intérprete de LIBRAS era um personagem dentro da história que contracenava junto de Moira, protagonista.
“Como usuária de audiodescrição, eu tenho me incomodado muito com essa questão do fone de ouvido. Receber um fone de ouvido para assistir a uma obra já coloca a gente em um lugar diferente. E isso te deixa sujeita a ruídos, à interferência daquele fone. Eu sou defensora da audiodescrição para todo mundo ouvir, e que seja gostosa de ouvir, que esteja contando junto a história e fazendo parte do texto de maneira dramatúrgica.”

Em sua peça mais recente, Hereditária, de 2025, Moira investiga sua própria história com o diagnóstico que levou à perda de sua visão. A atriz, em conjunto com o diretor do espetáculo Pedro Sá Moraes, mistura eventos de sua vida pessoal com a de seus antepassados a partir de referências históricas e mitológicas, como o mito grego das Moiras, as três irmãs que tecem o destino de todos os seres. Destaca-se, na peça, a presença dos recursos de acessibilidade não como contrapartida, mas como um elemento constitutivo da dramaturgia e da encenação, tida como sua “marca registrada”, conforme descreve a sinopse da apresentação.
Dar imagem ao som
É como em um daqueles momentos em que você precisa tirar os fones de ouvido para ver algo com mais nitidez. Associar uma imagem a um som possibilita que a percepção desse som seja tida com maior intensidade.
Os gráficos do som do espetáculo Capengá, da performer, videoartista e terrorista poética paulista Estela Lapponi são a prova disso. A trilha sonora da apresentação, cuja sonoridade é disruptiva, é acionada por sensores que detectam os movimentos do corpo da artista. Traduzir esse som estranho para uma linguagem acessível foi uma preocupação que tomou a cabeça de Estela. Até que ele decidiu associar imagem e som. “A pessoa que é surda é super visual. Então ela vai entender o que tá acontecendo com o tom”, explica a artista.
No espetáculo, quem divide o palco com Estela é o próprio operador de som da peça. Atrelado ao computador onde o som é operado, um telão espelha a tela do computador. No programa utilizado para operar o som, existe uma interface com gráficos que se movimentam de acordo com a frequência sonora da trilha, como se fosse um eletrocardiograma, mas do som.

Certa vez, uma amiga de Estela assistiu a uma de suas apresentações de trás da mesa do operador de som, acompanhando a trilha sonora também através dos gráficos. “Ela chegou pra mim e disse, ‘cara, aquilo ali dá muita liga. E não só para a pessoa surda’”. O companheiro da amiga, que é neurodivergente, associou com mais clareza a trilha sonora dentro da proposta da peça depois que passou a se ligar nos gráficos.
“Sim, o objetivo do gráfico é atender as pessoas surdas. Mas ele expande para quem tem neurodivergência e também para quem não tem. O gráfico acrescenta à peça uma outra camada de informação, como também uma outra camada poética.”
Em 2007, ano em que criou seus dois primeiros trabalhos depois de ter tido um acidente vascular cerebral (AVC) e ficado com parte do corpo paralisado, Estela notou dificuldades em inserir os seus trabalhos no mercado das artes. Diziam que se tratava de um trabalho muito específico, mas a artista não entendia onde estava essa especificidade de que tanto falavam. “Tempo depois, eu percebi que a especificidade estava na minha deficiência.”
Notando essa inacessibilidade no mercado, a artista criou o conceito Corpo Intruso, a partir do qual passou a investigar o que significa o corpo com deficiência e o que ele representa no contexto de uma obra. “O corpo intruso se trata justamente dessa ideia de ser uma intrusa, e não uma inclusa”, diz. Estela explica que o uso da palavra inclusão cria uma hierarquia de capacidades e, ainda, gera uma noção de passividade sobre esse corpo no espaço em que ele é colocado. “Porque esses espaços não percebem esse corpo, e por isso dificilmente se modificam.”
Apesar dessa realidade, existem iniciativas que buscam trabalhar na contramão dessa via. É o caso do festival Acessa BH, atualmente o maior festival sobre acessibilidade cultural e artística no Brasil. Foi na programação do festival, que ocorreu no fim de setembro, que o Nonada conheceu os espetáculos Capengá, de Estela, Maria quer ser rio, do Coletiva de Palhaças e Hereditária, de Moira Braga.
Construir um aparato acessível
Em julho de 2016, a parecerista de projetos culturais do Ministério da Cultura Lais Vitral estava em Recife, a convite da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, para assistir a uma lista de espetáculos no Teatro de Santa Isabel. Dentre eles, O beijo no asfalto, baseado na obra de Nelson Rodrigues e que contava com sessões que incluíam recursos de acessibilidade. Uma vez que a plateia silenciou, que os feixes de luz apontaram para o palco e as primeiras expressões da peça foram concebidas por seus integrantes, uma voz, que parecia onipresente, reverberou pelo espaço, narrando a apresentação a medida que a trama se desenrolava. A impressão era a de que detalhes antes não percebidos estavam sendo realçados.
A voz que Lais ouviu era uma audiodescrição. Sua experiência com o teatro nunca mais foi a mesma. Ao retornar para Belo Horizonte, onde já atuava como produtora cultural há 15 anos e trabalhava no Sesc Palladium, Lais notou que não havia recursos de acessibilidade nas programações do espaço cultural – e nem pessoas com deficiência ocupando os palcos.
O espanto ao notar essa realidade foi reforçado pela informação de que, à época, 24% da população brasileira tinha algum tipo de deficiência, segundo o Censo de 2010. De acordo com o Censo 2022, essa porcentagem corresponde a 7,3%, ou seja, cerca de 14,4 milhões de brasileiros.
Seu primeiro instinto foi tentar modificar esse cenário. Depois que o seu pedido para utilizar audiodescrição nas apresentações do espaço foi atendido, a produtora notou uma virada de chave na recepção dos espetáculos pelo público – e por ela mesma. A experiência artística parecia mais sensível. Tudo parecia mais expansivo.
Tempos depois, Lais compartilhou a experiência com o irmão, o também produtor cultural Daniel Vitral. Para ela, estava muito claro: ambos tinham que criar juntos um evento cujo foco era a acessibilidade. “Na época, eu não trabalhava com pessoas com deficiência e nem via pessoas com deficiência nas plateias dos eventos que realizávamos nas condições em que eram feitos”, explica o produtor.
Entusiasta da ideia da irmã, Daniel se juntou a Lais e começou a pesquisar o cenário cultural brasileiro em busca de iniciativas que trabalhassem com acessibilidade e com artistas com deficiência, além de fazer cursos de formação para o trabalho em acessibilidade. Mas as buscas não entregaram muitos resultados. “A gente já não conhecia as pessoas, e o Google, por exemplo, quase não nos dava respostas”, comenta.
Diante dessas ausências, decidiu partir para o boca a boca: consultou artistas que já conhecia para pedir indicações. Os nomes foram brotando. E aos montes. Aos poucos, uma rede de artistas com deficiência foi se formando no mapeamento dos irmãos Vitral.
A plataforma Arte e Acesso, do Itaú Cultural, realiza o mapeamento de artistas com deficiência de todos os cantos do Brasil. Ao todo, já estão registrados na plataforma 512 artistas de todos os estados brasileiros, com destaque para os estados da região Sudeste, que possuem maior número. A plataforma permite que os próprios artistas realizem o seu cadastro.
Em 2021, quando o setor cultural ainda se reinventava no meio digital por conta das diretrizes de isolamento da pandemia de coronavírus, a ideia de um evento voltado para a acessibilidade saiu do papel. Surgiu, tímida, a primeira edição do festival multicultural Acessa BH. Realizada de maneira remota, a primeira edição contou com espetáculos de dança e de teatro de artistas nordestinos, sudestinos e sulistas. Com recursos de libras, audiodescrição e legenda, mediados por agências e profissionais com deficiência especializados em acessibilidade, o festival atendeu a um público de cerca de duas mil pessoas. Era o começo de uma trajetória ascendente.
Ideias para acessibilizar

O librário, baralho cujo propósito é ensinar libras a partir da brincadeira, foi adotado pela equipe do Acessa BH como uma maneira de difundir o ensino da língua e ampliar a divulgação da causa do festival, levando-a para além das limitações dos espaços onde ocorre. Em uso desde a segunda edição do festival, o librário já conduziu inúmeras oficinas de LIBRAS, seja para a equipe ou para o público.
Apesar de ser a segunda língua oficial do Brasil, a LIBRAS ainda possui baixa adesão no país, tanto por pessoas surdas quanto por pessoas ouvintes. Segundo o IBGE, o Brasil possui cerca de 10,7 milhões de pessoas com algum grau de deficiência auditiva. Mesmo sem um levantamento oficial, o Icom, plataforma online de intérpretes de LIBRAS, estima que, desse número, apenas 1 milhão de pessoas com deficiência, aproximadamente, utilizam a língua.
Formado por pares de cartas com a palavra em português e seu sinal em LIBRAS, o baralho possibilita dinâmicas lúdicas e trocas de experiências inclusivas, incentivando o ouvir a partir dos olhos e a fala a partir das mãos. “Já tivemos alguns retornos interessantes de algumas mães que receberam o baralho e deram para os seus filhos. Na escola, ao invés de mexerem no celular durante o recreio, como de costume, eles estavam brincando com o baralho e aprendendo LIBRAS. Crianças de 10, 12 anos”, relata Daniel. “Algumas pessoas também publicaram em suas redes sociais um momento de lazer usando o baralho e nos marcaram. A gente percebeu que o aprendizado da Libras associado à ideia de divertimento cativa as pessoas”, acrescenta.
No hall de entrada de cada um dos espaços culturais onde o Acessa BH realiza os espetáculos de sua quinta edição em Belo Horizonte, como o Sesc Palladium, a Fundação Nacional de Artes (Funarte MG) e o Teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, a Mesa de acessibilidade se destaca pela sua imponência. Sobre ela estão dispostos aparelhos de audiodescrição, material em braile e abafadores de ruídos para pessoas neurodivergentes, e para quem mais quiser usufruir.
Além dos recursos tradicionais, na mesa também é possível encontrar uma maquete tátil do cenário, para que pessoas com deficiência visual possam perceber as dimensões do espaço, bem como uma prancha de comunicação alternativa aumentativa (CAA), que auxilia, por meio de imagens e símbolos, a comunicação de pessoas que possuem dificuldade em se expressar com a fala, com a escrita ou em libras.
Outro recurso que o festival adotou para acessibilizar seus eventos foi a distribuição de balões para pessoas surdas durante os shows. Com um balão em mãos, é possível sentir com mais intensidade no corpo a vibração produzida pela frequência sonora das músicas. A ideia partiu de um dos consultores do evento, que é uma pessoa surda. Daniel explica que, num cenário ideal, o uso de coletes vibratórios, que captam melhor essas vibrações, seria a melhor alternativa para aproximar as pessoas surdas da experiência das apresentações.
Uma escuta supersônica
Entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025, o Instituto Tomie Ohtake realizou a exposição A metade do dobro, que reuniu diversos exemplos das experimentações presentes no trabalho do artista visual paulistano Carlito Carvalhosa num período de quase quarenta anos. “Ceras, resinas, alumínios, espelhos e gesso estão entre as matérias que comparecem nesse mergulho nas experiências sensoriais promovidas por Carvalhosa ao longo de sua busca por se equilibrar na tensão entre o que está à mostra e o que permanece oculto”, diz o catálogo da exposição.
Até aí tudo bem. A questão era como acessibilizar a exposição, tão rica em materiais, texturas e versatilidades para um grupo social cuja leitura das coisas se dá com os ouvidos.
Pensando no acesso à exposição para pessoas DEF, o Instituto convidou a editora Supersônica, especializada em audiolivros, para produzir um audiocatálogo sobre a mostra. Ainda que tivessem experiência no ramo, transformar uma exposição de artes visuais em um produto de áudio foi um desafio. “A gente achou interessante o convite deles, mas a gente não sabia como trilhar esse caminho. Eles também não sabiam. A gente foi pesquisar para saber se havia iniciativas como essa pelo mundo, mas não encontramos nada. Então a gente foi tateando e criando”, diz Mariana Beltrão, diretora executiva da editora.

O audiocatálogo (ou audiolivro) Uma coisa por outra nasceu a partir da vontade da editora de não fazer apenas mais uma audiodescrição engessada na descrição das propriedades físicas dos objetos. “A gente quis fazer um catálogo sobre o corpo do trabalho de um artista e a gente precisou achar um caminho que fosse mais legal e mais interessante do que apenas ir lá e descrever as obras que estão expostas ou na parede”, comenta Mariana. Por meio de um trabalho coletivo, que envolveu muitos curadores, artistas e amigos próximos do artista, a Supersônica encontrou uma maneira de mostrar esse trabalho, sim, a partir da descrição, mas fazendo uso de “uma descrição mais afetiva”.
No primeiro dos onze capítulos de Uma coisa por outra, a voz da curadora e pesquisadora Luisa Duarte descreve a obra Já estava assim quando eu cheguei, de 2015:
Eu tô entrando num espaço amplo, com um pé direito muito alto, no qual eu vejo uma escultura que pende do teto por cabos, e a forma dessa escultura, feita de gesso e madeira, remete a forma de uma montanha. Entretanto, é uma montanha como que invertida. O seu cume está apontado para baixo, e a sua base está apontada para cima.
Essa descrição minuciosa e imersiva acabou expandindo o raio de interesse do produto para além de sua finalidade para com a acessibilidade. “A gente fez um caminho contrário também. O Tomie Ohtake chamou a gente pra fazer esse audiocatálogo com o viés da acessibilidade para pessoas cegas, mas ficou tão interessante e tão legal que várias pessoas não cegas foram escutar”, comenta Maria Carvalhosa, editora na Supersônica e filha do artista. Segundo Maria, é a afetividade colocada na descrição que faz com que a presença dos narradores se destaque, em contraste com a atmosfera de ausência percebida em descrições por demais técnicas.
Depois que perdeu a visão aos 13 anos, em 2015, Maria Carvalhosa teve de encontrar outras formas de manter acesa a chama do seu gosto pela leitura. Recorreu a ferramentas assistivas e audiolivros cuja narração não transmitia emoções. Percebeu que ali havia uma falta. E essa falta era justamente a emoção, a entrega e o afeto, tão presentes na cultura brasileira. Foi a partir dessa falta que, em 2023, nasceu a Supersônica, depois de quase dois anos de pesquisa.
A editora surgiu a partir de uma conversa que Maria teve com a cineasta Daniela Thomas, também escutadora de audiolivros. “O nosso desejo foi fazer uma editora que fosse capaz de fazer uma edição de audiolivros tão cuidadosa e tão caprichosa quanto uma boa edição de um livro em papel”, diz Maria. As vozes por trás dos livros pertencem a atrizes e atores tais como Roberta Estrela D’Alva (As mulheres de Tijucopapo, Marilene Felinto), Isabel Teixeira (Os anos, Annie Ernaux) e Enrique Diaz (Quando deixamos de entender o mundo, Benjamín Labatut), que aprofundam a interpretação da narrativa através de uma leitura sensível.
Para Maria, além do compromisso que a editora possui para com a acessibilidade dos livros para pessoas cegas, há também o compromisso de resgatar esses ouvintes. “Quando eu comecei a ouvir audiolivro, eu fiquei muito decepcionada. Então o que a gente tenta fazer aqui também é reconquistar as pessoas cegas para que elas possam voltar a acreditar que ouvir um audiolivro pode ser uma experiência boa.”