Muçum quer voltar a se divertir: como fica o direito à cultura após tragédias climáticas?

Locais que antes eram visitados pela população em busca de diversão e convivência foram transformados pelas três enchentes nos últimos dois anos
Foto: Eduarda Stefenon

*Esta reportagem integra o projeto Jornalistas pelo Clima, realizado por Repórteres Sem Fronteiras, Nonada e Matinal Jornalismo

Muçum (RS) — Ir à missa, confraternizar com um chimarrão na praça, tomar um sorvete no posto ou uma taça de vinho no clube. Acompanhar o jogo de futebol no ginásio, repousar ao sol e pescar na beira do rio. 

Essas eram algumas das opções de lazer na pequena cidade de Muçum, umas das menores dos 38 municípios que compõem o Vale do Taquari, na região central do Rio Grande do Sul. As formas de usufruir da cultura e do entretenimento foram completamente transformadas após as três enchentes vividas no curto período de dois anos na cidade – a primeira, em setembro de 2023, causada por um ciclone extratropical que deixou 80% da cidade inundação; a segunda logo em seguida, em novembro do mesmo ano, um pouco menor que a vivida dois meses antes; a terceira, em maio de 2024, fatídico mês em que, dezenas de outras cidades no Rio Grande do Sul, inclusive a capital, tiveram perdas significativas em decorrência das enchentes que atingiram o estado. Os eventos climáticos extremos impactaram toda vida da população de Muçum, inclusive os lugares que antes serviam de diversão. 

Já logo na entrada da cidade é possível encontrar um dos espaços sobreviventes. Sinônimo de lazer em Muçum, o posto de gasolina e sua loja de conveniência tornaram-se símbolos das enchentes históricas que ocorreram no Rio Grande do Sul. Uma foto daquele exato ponto, no dia 2 de maio de 2024, quando a inundação alcançou o teto, circulou mundo afora:

“Até hoje tem barro”

Dois anos depois da primeira enchente de 2023 e das duas subsequentes, o lugar em frente à ponte na entrada de Muçum se reergueu e segue sendo um dos preferidos dos moradores do bairro São José e até de turistas que, de passagem entre a cidade ou em direção o viaduto 13, em Vespasiano Corrêa, param para um café, um lanche e, claro, abastecer o veículo. 

Veridiana Stieven, 49 anos, e Márcio Rech, 44 anos, gerentes da conveniência há 9 anos, relembram o episódio olhando para as marcas que ainda insistem em se fazer presente. “Até hoje tem barro, não adianta”, revela Márcio em relação às tomadas de energia que não escaparam das marcas da água. “Aquela tomada entrou em curto, essa semana. Fomos tirar, tava cheia de barro”.

Apesar das marcas que ficam no concreto e na memória, Veri, como é chamada pelos amigos e frequentadores da conveniência, e o marido Márcio, não trocariam a cidade nem seu espaço de trabalho e lazer. Chegaram a tentar quando, depois das enchentes em 2023, abriram um negócio similar na cidade vizinha de Encantado, que também serviu de abrigo enquanto a casa em que moravam e que foi tomada pelas águas e pelo barro não era reformada. 

O estabelecimento na cidade vizinha fechou após 6 meses. “Não era meu chão”, Veri argumenta, enquanto celebra o amor pela cidade e os clientes. “Nós ficamos 6 meses lá e outra pessoa ficou aqui no meu lugar. Todos os meus clientes voltaram”. A conveniência, que com Veri costumava permitir som alto, churrasco e confraternizações, nos seis meses de ausência, ficou mais reservada. “Tinha virado uma espécie de sorveteria… imagina, o pessoal ficou todo perdido no fim de semana”, brinca.

Além do posto de gasolina e sua conveniência, outros espaços de encontro, cultura e lazer em Muçum foram completamente modificados pelos episódios recentes de inundações. O cemitério municipal era um dos lugares que servia como ponto de encontro entre moradores. O próprio Rio Taquari, era um local de refúgio e divertimento. O tradicional CTG da cidade e o estádio municipal de esportes são alguns dos espaços culturais que enfrentam ainda os prejuízos das inundações. Seus frequentadores que permanecem na cidade tentam viver – e se divertir – apesar da destruição.

A segunda praça da cidade

Hábito comum dos habitantes era o passeio pelo Cemitério, às margens do Taquari. Apontar as fotografias ovaladas em tom sépia que se dispõem lápide após lápide, e depois puxar pela memória uma história inusitada que se anuncia em tom de fofoca. 

Veridiana Stieven e Márcio Rech gerenciam a conveniência do posto de gasolina na entrada da cidade há 09 anos (Foto: Eduarda Stefenon)

Antes de ser engolido pelas águas do Taquari, o cemitério municipal de Muçum era mais do que um espaço de despedida, era uma espécie de segunda praça da cidade. Ali, famílias se reuniam aos domingos, em datas religiosas e até em caminhadas cotidianas. Entre os vitrais coloridos e retratos emoldurados, havia quem apontasse nomes e sobrenomes gravados nas lápides como quem recita a árvore genealógica da cidade. 

Se andar por esse ambiente pode ser, para muitos, motivo de tristeza, para Edemar Pereira, 60 anos, que percorre as galerias da necrópole no quarteirão ao fim da comprida avenida principal da cidade, é mais que visitar e levar flores para familiares falecidos, é também memória alegre. “Eu levava a mãe aqui… Ela adorava ir no cemitério, começava a falar ‘esse aqui o fulano de tal, você lembra desse aí?’; eu lembro pelo sobrenome, adorava, adorava vir no cemitério”, relembra.

Irmãos, irmãs, mãe, amigos. Todos eles olharam por entre os vitrais dos santuários e enxergavam a vida que sempre existiu apesar da morte. 

Esse cenário mudou quando, em setembro de 2023, Muçum viveu o que muitos consideraram o “Marco Zero” da tragédia climática gaúcha, uma enchente sem precedentes que deixou 150 pessoas desabrigadas, cerca de 3.000 desalojadas e chegou a levar à óbito 18. 

Foi nessa inundação que o cemitério de Muçum, que fica às margens do rio Taquari, viu a força das águas levar seus mortos para uma espécie de segunda morte. “Teve gente que recém tinha enterrado e foram embora, desceu o Taquari”, recupera a experiência Edemar Pereira que também perdeu as lápides de dois irmãos, Adelino e Nilo, cujo tempo de falecimento Edemar nem consegue mais contabilizar. “Não lembro, na enchente eles desceram tudo, tinha todos [os registros] ali, agora não sei mais nada”, lamenta. 

Se olhar para o alto do lado esquerdo do penúltimo corredor do cemitério, ao lado direito do recorte vazio das lápides dos irmãos, Edemar ainda pode ver as fotos preservadas na lápide da mãe, Santina Pereira, que é compartilhada com a do pai, João Pereira, falecidos há mais de 30 anos. “Eles vão terminar com isso aqui”, revela em alusão à construção do novo cemitério municipal de Muçum, prevista para ocupar trecho da estrada que liga o município ao vizinho, Vespasiano Correa, em uma área de três hectares doada por uma moradora, fora da zona de risco de enchentes. 

Uma sucessão de perdas 

Em setembro de 2023, Edemar perdeu a irmã mais velha, Hedy Cattaneo, 87 anos, que faleceu dentro de casa juntamente do companheiro, Gervasio Zanchetti, 90 anos, e da cuidadora, Leda Ana Spessatto, 65 anos. Hedy não acreditava que a água bateria à sua porta, muito menos que se aproximaria do telhado de sua residência, como aconteceu na enchente de 2023. Sua casa na entrada de uma rua elevada era como um abrigo das águas que, se um dia se aproximavam de forma lenta e tranquila, agora vinham com força, sem tempo hábil de fuga.

Edemar relembra a perda da irmã com pesar. “A gente perdeu coisa, mas pelo menos não perdeu vida, né? Que nem a minha irmã que ficou dentro de casa. Ela era muito teimosa”, lamenta em relação à decisão de não sair de casa. 

A teimosia não deixou livre também o irmão de Edemar, Nilson Pereira, 83 anos, que viu a água tomar sua casa, mas não acreditou que deveria se preocupar. Nilson, na noite de 3 de setembro, ouviu a esposa Sueli Baldo Pereira, 84 anos, alertar: “vamos embora daqui, vai dar coisa ruim, vai morrer muita gente. Vai ser uma chuva muito feia”. Nilson perdeu a esposa naquela noite, a apenas uma semana de completar 63 anos de casado com Sueli. Quando se deu por conta, o susto não foi capaz de possibilitar a saída da residência. “Estava sentado no sofá, quando ele viu, ‘nossa, a água tá aqui dentro, a água tá aqui dentro’, subindo, subindo, subindo, ali tu não consegue mais sair” pontua o irmão, Edemar. Ele conta que aprenderam, pelo trauma, a sempre sair antes.

Hedy e Sueli, irmã e cunhada de Edemar, foram enterradas no mesmo cemitério que hoje abriga simultaneamente lápides ainda preservadas em contraste com fragmentos de concreto bloqueando corredores.“Quando dá tragédia assim, eles não deixam cremar. Porque se tiver alguma coisa de família, tu tem onde buscar, né? Então, nós tivemos que enterrar eles aqui”, observa. Edemar costuma ir ao cemitério e acompanha quem deseja conhecer ou visitar o espaço como um guia turístico, apontando figuras importantes de Muçum.

Durante um de seus passeios pela segunda praça da cidade, Edemar encontra turistas que percorrem as galerias fúnebres em estado de choque com os destroços e ossadas ainda encontradas em túmulos extraviados. Nem o sol forte o impede de acompanhar os visitantes em busca dos acontecimentos. Ele os atualiza da situação atual da cidade, fala do único prédio ainda em pé no quarteirão, lugar que serviu de abrigo às famílias cujas casas foram submersas naquela rua. Entre pedaços de concreto partidos, conta também os momentos de horror vividos naquela noite. 

Dois anos depois, visitantes ainda podem encontrar ossadas em túmulos abertos. Foto: Eduarda Stefenon

Uma cidade de memória 

A praça em que Edemar e outros moradores de Muçum passeiam enquanto fazem reverência à vida deve ser transformada em um Parque Memorial Ecológico, que prevê um local em respeito às vítimas e à história da comunidade, áreas verdes e de preservação, espaços de convivência para famílias, estruturas de incentivo ao turismo e garantia de acessibilidade e inclusão.

A etapa inicial conta com apoio do governo do Estado e será seguida pela preparação do terreno e transferência dos restos mortais do antigo cemitério, destruído pelas enchentes de 2023 e 2024. O novo espaço tem sido construído em conversa com secretarias, equipe técnica e representantes da comunidade, mas ainda não há uma data para a apresentação do projeto definitivo. Para o prefeito da cidade, Mateus Trojan (MDB), “a intenção é que o parque seja multifuncional, sem perder sua identidade principal de espaço de memória e superação”. 

Há poucas quadras dali, na casa onde Nilson e Edemar moram agora, após terem passado por outras duas inundações em que perderam praticamente tudo em suas residências, eles podem ver o rio Taquari correndo veloz pelo leito poucos metros abaixo da casa. A ladeira de pedra, folhas secas e mata ciliar que compõem a visão do horizonte, se abre para um pomar verde com quem dividem a companhia dos sons e a presença de pássaros diversos.

Edemar, é também conhecido como Foguinho pelos amigos e parentes, é mais novo em 23 anos que Nilson, mas a diferença de idade não se traduz em discrepâncias no estilo de vida. Em alguns modos de viver, no entanto, preservam suas particularidades. Enquanto o irmão mais velho fica responsável pelo cultivo dos alimentos, é Foguinho quem os leva à panela em todas as refeições. Churrasco assado no mínimo três vezes na semana, em companhia de vizinhos e amigos, tardes de chimarrão e jantares mais modestos, por volta das sete horas da noite, com café com leite e bolachas é como passam seus dias muito parecidos. 

Foguinho deixou para trás a agitação da capital Porto Alegre, em que viveu por décadas na vida adulta, para viver na pacata Muçum ao lado do irmão que antes já havia passado a vida em Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Enquanto o caçula tinha como ofício ser gerente de um bar movimentado na orla de Ipanema, zona sul de Porto Alegre, o mais velho vivia de ser sapateiro. 

Apesar de gostar da cidade, Edemar sonha mesmo em trocar o rio pelo mar e ir morar na praia. Mas levar Nilson para longe dos amigos que tem em Muçum não lhe parece uma opção justa com o irmão. Enquanto o sonho de viver no litoral não se concretiza, ele consegue aproveitar temporadas de dois a três meses perto do mar até voltar para perto do rio. A diferença de estilos de vida, deu lugar nos anos mais velhos à companhia calma, mas também divertida. “Todo mundo acha que eu cuido dele”, confessa Foguinho, o mais novo. “Mas na verdade é ele quem cuida de mim”, adverte.

Entre o pomar e o rio, Foguinho e Nilson seguem o ritmo de uma cidade que aprendeu a conviver com a perda. Enquanto o cemitério vira memória e o Taquari insiste em correr veloz pelo seu leito, eles tentam manter o fogo aceso – o do churrasco e o da memória.

As dificuldades no novo bairro vão além da distância do Rio Taquari. Do alto, Loreci se sente angustiada com a chuva e o declive da rua que a faz sentir estar vivendo em um buraco. Foto: Eduarda Stefenon

O jogo continua

Uma pequena cortina de pano puído azul é o que separa a fachada do bar movimentado do clube Bochófilo Fortes e Livres do que restou do seu salão de festas aos fundos. Acostumado a receber jogos de bocha, bailes, almoços e momentos de lazer em seus mais de 50 anos de existência, o clube se encontra, dois anos depois da inundação de setembro de 2023, ainda marcado pelo barro seco, pilhas de cadeiras, garrafas velhas, troféus e objetos que um dia já tiveram valor agora abandonados.

Sidnei Lopes, 60 anos, gerente do bar, lamenta a destruição do espaço. “Se foi o meu salão… Tinha baile aqui todos os dias, cinco bailes por mês”, relembra. Ele e a esposa, que tomam conta do lugar, ficaram submersos em 2023, quando a água avançou rapidamente, impedindo a saída. Os dois ficaram presos no mezanino do salão, usando de apoio cadeiras que faziam as vezes de chão. “Nós nos salvamos porque nós tinha o recurso das cadeiras. Subi em cima das cadeiras. Aqui não tinha onde sair, tava tudo fechado”.

Os dois passaram aquela noite e parte do dia seguinte presos no salão de pé direito alto do clube. Eram 16h quando a água baixou o suficiente para que eles fossem em busca de água e esperassem o resgate. Em dado momento da madrugada, a esposa e ele chegaram a se despedir. “Chegou uma hora lá que a mulher disse ‘que eu vou fazer? não tem mais o que fazer’. Eu nado, mas ela, não”. A memória triste dessa e de outras enchentes vividas na sequência, dá lugar a frustração de ver o local que já foi símbolo de lazer e encontro na cidade, seguir precisando de reformas. “Uns vêm e olha, mas fica lá. Nós vamos fazer o que?”, lastima.

No Bochófilo Fortes e Livres, troféus de tempos mais felizes guardam a memória de um espaço cultural tradicional na cidade.
Foto: Eduarda Stefenon

Apesar de manter as memórias vivas da destruição no cômodo ao lado, o bar do clube segue um espaço de convivência para um grupo de senhores mais antigos da cidade que se reúnem para jogar bisca – tradicional jogo de cartas de origem portuguesa, cujo objetivo é acumular mais pontos que o adversário – tomar uma cerveja ou taça de vinho e rir entre amigos. “Para muita gente foi bom que deu enchente: tomaram banho”, brinca Nelson Garibotti, 84 anos, o veterano do grupo de amigos que se reúne todas as tardes. “Essa gringaiada aqui é que nem gato, não abre a mão para tomar banho de jeito nenhum”, conclui a implicância e logo recebe o troco do amigo: “um deles é o Nelson”.

Flávio Baldo Pereira, 66 anos, é um dos integrantes da jogatina diária. Para ele, segue na memória um tempo diferente do clube, mais colorido e vibrante. “Dava cada baile na nossa época, agora não tem mais nada”. Mesmo diante das lembranças difíceis, os encontros diários funcionam como um respiro. Risadas e provocações se intercalam com cartas batidas com firmeza na mesa enquanto os amigos transformam o espaço em uma espécie de refúgio.

A conversa passa do jogo às memórias do fatídico mês que ficou incrustado na memória. Enquanto embaralha as cartas, Volmir Invernizzi, 50 anos, relembra as cenas das enchentes e o desespero. Ele testemunhou Nilson e a esposa Sueli Pereira pedirem por ajuda, mas não teve forças para vencer a correnteza. “Eu tava na frente da praça, eles gritando socorro, mas não tinha como ir lá. A correnteza levava casa, carro… tudo a cem por hora”. 

Depois da enchente, o cenário era de destruição. “Trabalhei 33 dias na limpeza. De noite ia pra casa, podia tomar banho que não saía o cheiro”, conta Volmir. Flávio completa: “Tem muita coisa pra limpar.”

Além dos prejuízos materiais, há perdas que não se apagam. Flávio recorda a história de uma família conhecida, que acabou se tornando um dos símbolos das enchentes. A produtora rural Janete Zilio, esposa de um amigo seu, foi arrastada pela força da água ao longo dos 18 quilômetros que separam Linha Alegre de Muçum. “A esposa dele veio parar aqui no bairro Fátima. Eu fui o primeiro a ver quando chegaram, depois que se salvaram”, conta, ainda com espanto.

Para o secretário nacional dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa, Alexandre da Silva, tragédias climáticas como as ocorridas em Muçum evidenciam as fragilidades a que a população mais velha está exposta. “A gente observa que os desastres ambientais estão acontecendo em todo o mundo, o tempo todo – e Muçum é um exemplo disso, infelizmente. Foram várias enchentes em muito pouco tempo”, afirma.

Diante desse cenário, a pasta elaborou o Guia de Orientação para Pessoa Idosa em Situação de Riscos e Desastres, que identifica vulnerabilidades específicas da terceira idade em contextos de eventos climáticos extremos, como as enchentes. Entre os principais fatores de risco estão a mobilidade reduzida, doenças crônicas, isolamento social e residência em áreas vulneráveis. O documento propõe medidas de segurança adaptadas às necessidades individuais – como informar condições de saúde aos vizinhos, fortalecer redes de apoio, participar de simulações de evacuação e manter kits e planos de emergência atualizados.

O Rio Grande do Sul é um dos estados com maior proporção de idosos do país: 12,1% da população tem mais de 65 anos, segundo o IBGE (2022). Das 20 cidades com maior número de pessoas idosas no Brasil, nove estão na região Sul e quatro no Vale do Taquari – dado que reforça a necessidade de considerar os impactos físicos e emocionais dessa faixa etária em situações de desastre. “Para a pessoa idosa, aquele bem – imóvel ou móvel – tem uma história. Às vezes, aquela casa simples, com cada cômodo de um tipo de azulejo, guarda férias, horas extras, uma vida inteira. Tudo isso precisa ser levado em conta”, pontua Silva.

O secretário defende que “um ambiente bom para a pessoa idosa é um ambiente bom para todos” e relembra sua visita a Muçum logo após a enchente de setembro de 2023. Segundo ele, situações semelhantes se repetem em outras cidades, revelando desafios éticos e práticos no atendimento a esse público. “Em uma cidade do Litoral Norte, vimos a preocupação de um bombeiro com uma mulher idosa que não queria deixar a casa. É preciso compreender qual é a condição de consentimento dessa pessoa para sair de casa nesses momentos”, relata.

Gisele Dhein, psicóloga e docente da Univates, integrou o colegiado de Saúde Coletiva que atuou no atendimento aos impactos psicológicos imediatos dos desastres em Muçum, especialmente após as inundações de 2023. Segundo ela, mesmo de forma empírica, foi possível perceber, no relato das pessoas atingidas, as marcas emocionais deixadas pela experiência. “O que a gente tem sentido em dados do cotidiano, é que tem tido acolhidas significativas em decorrência das enchentes, direta ou indiretamente atingida. A gente também tem que pensar isso: na magnitude que foi nosso evento, se coloca toda a população como atingida”.

Mesmo com o trauma da experiência marcante, da dor e da perda, o grupo de jogadores do bochófilo tenta preservar o bom humor e a rotina. Nelson, o mais velho deles, observa com um sorriso: “Eu conheço essa gurizada toda aí”, comenta em relação aos amigos mais novos. Entre risadas e provocações amistosas, todos concordam que a vida precisa seguir. “Não foi fácil pra ninguém”, diz Flávio, num tom sereno. “Mas a gente enfrenta”. A lembrança, no entanto, continua próxima. “É triste, muita casa foi embora. Tem gente que tá doente até hoje”, lamenta.

Apesar das perdas, o bar do Bochófilos segue aberto como ponto de encontro e resistência. Ali, o lazer se mistura à saudade dos tempos de baile e alegria. O jogo de bisca, repetido  todas as tardes como um ritual, é o fio que sustenta o cotidiano de quem viu a cidade desaparecer, mas escolhe permanecer. E o jogo continua.

Flávio Baldo (esquerda) e Nilson Pereira (direita) ainda frequentam o bochófilo para jogar cartas e confraternizar com amigos. Créditos: Eduarda Stefenon

Fortes e livres

O tradicional Bochófilo leva o nome de um dos mais antigos times de futebol do Rio Grande do Sul: o Esporte Clube Fortes e Livres, fundado em 1916, cuja sede original funcionava no prédio da Rua Barão do Rio Branco. A inspiração para o nome veio do patrono Giuseppe Garibaldi, que, durante a Revolução Farroupilha, pronunciou as palavras que se tornariam o lema do clube: “Necessito de homens que sejam fortes e livres.”

A frase marcaria não apenas o espírito do time, mas também o de uma cidade moldada pela paixão pelo futebol – o jogo que, há mais de um século, reúne gerações em torno da bola rolando entre os pés.

Cirilo Antônio Coser, hoje com 80 anos, foi presidente do Fortes e Livres nos anos 1990 e testemunhou o auge do estádio que leva o nome do clube. Recorda o dia em que precisou derrubar o campo antigo para erguer um novo, mais moderno “Derrubei tudo, fiz tudo novo. Agora a enchente pegou tudo”, lamenta. 

Cirilo escapou de três grandes cheias: uma delas enquanto estava internado no hospital, outra refugiado no sótão de casa. Hoje, ele deposita esperança na nova moradia que constrói no alto do morro. “Tô construindo uma casa lá no morro, se vier enchente eu vou escapar lá”, diz com alívio.

O estádio que Cirilo ajudou a reconstruir também teve outro papel nas enchentes de 2023: serviu de pouso para helicópteros da Brigada Militar e da Polícia Civil, que traziam água e mantimentos aos desabrigados. Agora, aos poucos, o campo retoma sua vocação original – voltou a ser ponto de encontro, barulho de bola, torcida e risada.

Mesmo afastado das arquibancadas por causa da diabetes, que o fez perder uma das pernas, Cirilo mantém o coração voltado ao gramado. “Essa enchente atrapalhou tudo, destruiu tudo”, recorda, com a voz embargada. Ainda assim, acredita que a essência permanece: Muçum continua amante do futebol.

O Estádio Fortes e Livres pertence a um dos times mais antigos do Rio Grande do Sul. Ele foi ponto de apoio durante as enchentes recentes e hoje em dia abriga a maior parte dos jogos de futebol da cidade. Foto: Eduarda Stefenon

Foi dessa paixão antiga que nasceu uma nova tentativa de reorganizar o esporte na cidade. Com o estádio municipal em reconstrução e a comunidade tentando retomar a rotina após as enchentes, um grupo de jogadores decidiu transformar o desânimo em movimento. Assim surgiu o Conselho Municipal de Desporto de Muçum, criado por amantes do futebol dispostos a reerguer o espírito competitivo do município. À frente da entidade está Robson Spegiorini, 31 anos, que relembra a inquietação que motivou o grupo. “Precisávamos fazer alguma coisa acontecer na cidade. Há tempos estávamos parados, sem campeonatos, sem competições, sem nada”, conta.

A mobilização resultou na união de quatro times locais – Fortes e Livres, São José, Muçum Moranga e Pavilhão 09 – para disputar a Série B do regional Aslivata. O passo adiante reacendeu a presença de Muçum nas competições do Vale do Taquari e abriu espaço para novos projetos esportivos. “Deu sorte de juntar todo mundo”, diz Robson. “A gente organiza campeonatos e hoje participa de várias competições: o regional Aslivata, o regional de futsal e a Copa AMAT. E ainda estamos organizando circuitos pela cidade, de ciclismo, corrida, vôlei… Temos várias ideias saindo do papel”, se orgulha Robson.

As enchentes recentes deixaram marcas também no futebol. O estádio municipal Campo do Operário, que havia sido adquirido em 2022 pelo município para ser reformado e devolvido à comunidade, foi devastado pelas inundações. “Ficamos sem estádio, destruiu tudo. Agora está sendo feito de novo, praticamente do zero”, explica Robson.

A tragédia, contudo, acabou aproximando os amantes do esporte em torno de um bem comum. “Nos reunimos com o pessoal do Fortes e Livres, que antes tinha uma mentalidade mais fechada, não queriam ver o futebol avançar em Muçum. Depois de tudo o que aconteceu, parece que o pensamento mudou. Agora estamos todos remando pro mesmo lado”, afirma. Para ele, esse novo momento representa a retomada de algo que sempre esteve na alma do município. “Grande parte da população de Muçum é apaixonada pelo futebol”, reforça.

A iniciativa do Conselho não se limita apenas aos gramados. Robson lembra que Muçum já teve tradição em outras modalidades, como a canoagem, bastante praticada nos anos 2000, quando o Rio Taquari ainda era ponto de encontro dos moradores. O desafio agora é reconstruir não só o espaço físico, mas também o ambiente de convivência e pertencimento que o esporte sempre proporcionou. 

Tradição em pausa

Além do futebol e suas confraternizações, outro traço cultural marcante de Muçum é sua tradicional Semana Farroupilha, evento que acontece anualmente em setembro, em comemoração à Revolução Farroupilha e à cultura gaúcha. Durante os dias de festa, o município se transforma: as ruas são decoradas com as cores do Rio Grande, as escolas organizam apresentações artísticas e os moradores se reúnem em seus piquetes para assar churrasco e confraternizar.

O acampamento farroupilha, montado na praça central da cidade, em frente à igreja matriz Nossa Senhora da Purificação, é o coração da celebração. Nos dias de festejo, é possível sentir o cheiro do churrasco a quadras de distância. Nestes dias, Muçum recebe visitantes das cidades vizinhas e na avenida central do município moradores ficam juntos para ouvir música nativista e acompanhar rodas de chimarrão que se estendem pelos dias da festa.

Em 2025, a cidade estima que 50 mil pessoas passaram pela festa – número elevado, considerando que a cidade tem menos de 4.000 habitantes. Os números confirmam algo que já se sabe na cidade, a de que a Semana Farroupilha de Muçum é considerada a maior e melhor festa tradicionalista da região dos vales. Depois do trágico setembro de 2023 em que a cidade viu a água levar embora a festa, a prefeitura calcula que a retomada dos festejos foram positivos. “A comunidade se alegrou com esta retomada, era um momento que aguardávamos desde setembro de 2023, quando as águas levaram todo nosso acampamento. Comemoramos com orgulho, com alegria e com a certeza de um novo capítulo para Muçum”, comenta o prefeito Mateus Trojan.

Em setembro de 2025, Muçum estima ter recebido 50 mil visitantes na sua tradicional Semana Farroupilha. Foto: Eduarda Stefenon

Mas a tradição e os festejos também deram lugar à inquietude frente às dificuldades na entidade símbolo da tradição gaúcha em Muçum. Os poderes heróicos de um sentinela não se traduziram na realidade do CTG Sentinelas da Tradição que, apesar de ter abrigado cerca de 20 famílias durante as enchentes de 2023, hoje vê sua casa praticamente de portas fechadas.

Foi nas invernadas que Ana Vitória Baronio Cucioli, 16 anos, se encantou pela dança. Ela e a irmã mais nova dançavam na categoria mirim e sempre receberam convites para dançar no CTG Giuseppe Garibaldi, da cidade vizinha, em Encantado, mas negavam veemente sair do CTG de sua cidade, o Sentinelas da Tradição. Em 2023, elas haviam retornado às danças há alguns meses na categoria juvenil quando a enchente fez do centro que frequentavam local de abrigo. “Voltamos para o Sentinelas, dançamos acho que nem alguns meses e daí acabou que deu em setembro a grande enchente”, conta Ana.

As invernadas, explica Ana, reúnem grupos de dança de diferentes idades – do pré-mirim ao adulto, enquanto as atividades campeiras, são voltadas a cavalgadas e rodeios. “Meio que as invernadas foram desligadas. Acabou que o patrão ficou mais com a campeira, já que ele também era da campeira, as invernadas meio que foram acabando”, lamenta.

Sem espaço para ensaiar em Muçum, o grupo de Ana passou a se deslocar para Encantado. “Nosso instrutor na época, também era do Giuseppe, e convidou a gente pra dançar lá. Agora a gente vai toda semana, somos uns dez na van”, conta. O grupo de Ana Vitória participou do Juvenart, concurso estadual de danças tradicionais da categoria juvenil. “No começo, era ensaio quase todo dia. Agora a gente vai uma ou duas vezes por semana, geralmente nas quartas ou sextas.”

Ana Vitória Baronio Cucioli, 16 anos, e outros integrantes do CTG Sentinelas da Tradição agora se deslocam para a cidade vizinha de Encantado para frequentar o CTG Giuseppe Garibaldi e ensaiar os passos de dança das invernadas. Foto: Arquivo pessoal

Em meio à destruição deixada pelas enchentes que atingiram Muçum nos últimos anos, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Sentinela da Tradição, o único da cidade, tornou-se abrigo e refúgio. Durante as cheias de 2023. O CTG abriu as portas para receber dezenas de famílias desalojadas. “A gente tava parado, porque abrimos o espaço para o pessoal se alojar e acabou ficando tudo destruído. Temos que reformar”, conta o atual patrão da entidade, Claudiomiro Mulinari, 55 anos, que há seis anos está à frente da casa tradicionalista.

A tragédia não poupou ninguém, nem mesmo quem manteve o local de pé. “Quem tá dentro do CTG tocando a entidade perdeu tudo. Eu mesmo tô há dois anos morando fora de casa, porque a enchente destruiu a minha”, relata. Mesmo diante das dificuldades pessoais, ele segue empenhado em reconstruir o espaço e manter as atividades.

O Sentinela da Tradição chegou a reunir mais de 50 crianças nas invernadas artísticas antes das enchentes. “Estávamos bem organizados, com o grupo crescendo, eventos sendo retomados. Aí veio uma chuva de pedra que destruiu parte da cidade e, logo depois, a sequência de enchentes acabou com tudo de novo”, lamenta.

Para manter o CTG ativo, os sócios têm sido fundamentais. “Se não fosse por eles, a entidade já teria fechado. Eles sempre seguraram o CTG aberto”, destaca. Nos primeiros meses após a retomada, o caixa da entidade chegou a bancar o salário do professor e os custos das atividades artísticas.

CTG Sentinelas da Tradição foi abrigo para famílias durante as enchentes, mas apela por mais apoio do município. Foto: Arquivo pessoal

A ação da juventude  


Os parques verdes e as árvores grandes da capital Porto Alegre fazem inveja em jovens como Carlos Alberto Novo dos Santos, 19 anos, que decidiu mudar a paisagem em tons marrons que Muçum adquiriu logo após a inundação de 2023. Ele tinha 17 anos e há uma semana havia perdido casa e pertences para as águas quando acordou com o desejo de criar um projeto em prol de uma cidade mais colorida novamente. “Depois que estava mais ou menos limpo, eu acordei com a ideia de ‘por que não criar um projeto de reflorestamento?’”, relembra com certo brilho nos olhos.

Em uma cidade onde o lazer sempre se confundiu com o encontro com a natureza — o rio, as árvores, as sombras que abrigavam o chimarrão e o futebol —, um jovem decidiu trazer as cores de volta a Muçum. “‘Aquele lá, esse aqui, aquela lá também… tudo sou eu, basicamente’”, diz, apontando os ipês e outras árvores que plantou com as próprias mãos.

O projeto Vale Verde nasceu em meio aos escombros, impulsionado pela solidariedade dos voluntários que a cidade recebeu após o desastre. “Eles foram para mim em volta nos viveiros, nas floriculturas para conseguir doação. Eu não lembro qual a quantidade de mudas, mas eles chegaram aqui no outro final de semana com um caminhão cheio de flores”, conta, orgulhoso. Com o tempo, as parcerias viraram afeto: “Com esse projeto eles ficaram como se fosse dindos meus, da enchente.”

Desde então, Carlos passou a ocupar parte do tempo livre ora com uma enxada na mão, percorrendo ruas e parques para devolver um pouco de cor à cidade, ora gravando vídeos e tentando incentivar os moradores a fazerem suas doações. “Engajar, não, mas eles gostam de receber. Acham bonitas, parabenizam sempre, ajudam às vezes. Mas, mão na massa, é só eu, basicamente”.

Ao lado da prima Cecília de Moraes, de 9 anos, ele mistura o gesto simples à rotina de quem ainda aprende a lidar com as cheias. A família morava em uma casa próxima ao rio, até perder tudo na enchente. Hoje vivem no terceiro andar de um prédio no mesmo bairro, de onde ele observa o antigo terreno – agora ocupado por outro morador que também perdeu a casa. “A gente alugou aqui. Não é grande coisa, mas é o que tem”, resume.

Carlos conhece de perto o Taquari que dá beleza à paisagem e, ao mesmo tempo, carrega o medo. “Tem bastante coisa sendo construída, né? Mais fora da água. Só que o problema, na minha opinião, é o rio. O rio tá bem cheio de cascalho. E o governo, os líderes não tomam uma atitude, diz que é muito caro, mas tem ainda muita sujeira, né”, lamenta. Para ele, parte do que ocorre está ligado à forma como o ser humano tem lidado com a natureza. “De uma chuva grande que nem teve em maio, deslizou tudo os morros. E aí fechou a estrada, entrou mais terra no rio, subiu, foi cascalho. Caiu a ponte. Mas isso tudo é consequência do que nós fizemos.”

Carlos explica que o desmatamento e o uso de espécies exóticas agravam o problema. “Só que daí entra uma coisa que é o motivo de eu querer plantar nativa. No morro é eucalipto. A floresta que eles gostam de plantar é exótica. Eucalipto. E o que adianta? Desmoronou. Tudo era eucalipto. Por quê? É pela madeira, para ganhar dinheiro”, argumenta. Ele lembra ainda que, em uma área mais alta da cidade, a retirada de vegetação trouxe novas perdas: “lá em cima, teve um ano que eles cortaram tudo lá, rasparam tudo lá em cima para plantar abacate. E até agora não veio abacate.” 

Em novembro de 2023, Carlos chegou a fazer um mutirão de plantio na beira do rio. “Veio a enchente e levou tudo embora”, lembra. Desde então, decidiu concentrar o projeto nas ruas da cidade, onde pode cuidar de perto das mudas, adubar e garantir que criem raízes. “É por isso que eu estou focando na cidade, que eu consigo manter sempre. Se vir uma enchente normal, fraquinha, não leva. Tanto que a de maio não levou. Acho que perdi uma árvore, olhe lá”, se orgulha.

“Todo mundo quer sombra, mas ninguém planta”

Carlos Alberto e a prima Cecília, de 09 anos, fazem companhia em ações de plantio de ipês na cidade de Muçum.



As árvores que planta são todas nativas. “As exóticas não valem a pena, são frágeis. Essa aqui até é exótica, mas é uma árvore boa, dura, resiste a todas as intempéries”, comenta enquanto passa a mão sobre um tronco descascado que restou do que acredita ser uma Peito-de-pombo. “Mas a ideia aqui nas ruas é plantar ipê, que sempre apareciam nas fotos antigas de Muçum. Hoje eu tenho ipê amarelo, ipê roxo, não tenho branco ainda porque não consegui”.

O jovem reconhece que há quem apoie, mas a ajuda concreta ainda vem de fora. Quando pensa no futuro, confessa certa frustração com a falta de mobilização dos jovens da cidade. “Poderiam ter ideias, botar a mão na massa, porque é a futura geração da cidade. O que salvaria Muçum, né?”.

Entrando na vida adulta, Carlos já tem uma visão madura sobre as causas das tragédias climáticas. Para ele, não é apenas “mudança climática”, mas resultado de anos de desmatamento e descuido. “Todo ano tá dando isso. É o resultado de todos os anos que eles foram desmatando. A maioria dos lugares que eu plantei não tinha mais árvores. Foram desmatando e aí eles se vingaram, né? A terra se vingou”, opina.
Ainda assim, ele segue plantando, acreditando que o gesto simples pode ser um legado futuro. “Não é por colorido, mas pensando no futuro. Um exemplo: se eu tiver velho, né? Olha o calor que tá dando, esse ano foi um recorde. E o que vai ser pras crianças? Se a gente não regular agora… Porto Alegre é um lugar bom, tem poluição, mas tem árvores. Aqui, todo mundo quer sombra e ninguém planta”.

As árvores de Carlos são quase um mapa afetivo de Muçum. Há as que ele planta nas praças, as que doa a vizinhos, as que perde para o cimento. Tem quem o apoie, mas as doações vêm mesmo de fora. “Aqui, às vezes, o pessoal prefere passar cimento do que ver crescer”, comenta com frustração. 

Ainda que sozinho ou com pouca ajuda, Carlos segue abrindo buracos no concreto para colorir. “Aqui, é uma competição pra estacionar onde tem sombra. Todo mundo quer sombra, mas ninguém planta”. Ao final da tarde, quando o sol se esconde atrás do morro e o rio reflete um brilho turvo, Carlos costuma olhar para as mudas que já florescem nas calçadas. Ipês que ele sonha ver adultos, cruzando gerações, deixando o seu vale – e o de todos – um pouco mais verde. 

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