O que se perde quando uma língua desaparece? A resposta para essa pergunta é algo que o comunicador indígena Jefferson Tupari Makurap não pretende descobrir. Oriundo dos povos Tupari, por parte de pai, e Makurap, por parte de mãe, Jefferson, estudante de Gestão Pedagógica Intercultural, está engajado em uma batalha contra a extinção de sua língua materna, a Makurap. Não faz isso sozinho, mas ao lado de seus últimos falantes: os homens e mulheres mais velhos de seu povo, guardiões de saberes.
Tendo Rondônia como pano de fundo, a batalha pela manutenção de uma língua ancestral não mobiliza apenas a aldeia indígena Ricardo Franco, do território Rio Guaporé, no município de Guajaramirim (RO), onde é falada. Os povos Makurap também estão na Terra Indígena Rio Guaporé, sudoeste do estado, assim como na capital, Porto Velho.
Essa multiterritorialidade, conforme detalha o livro Nossas Histórias Makurap, advém de relações de contato da etnia com núcleos situados no ambiente urbano. Segundo dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), de 2014, atualmente há cerca de 579 indígenas Makurap vivendo no estado de Rondônia.
A ponta de lança do projeto de revitalização da língua do povo Makurap é a reunião dos saberes sobre a língua em materiais didáticos, como o livro Ensinando a língua Makurap, de autoria do professor Agnaldo Makurap, tio de Jefferson. A obra consiste na integração dos conhecimentos gramaticais da língua Makurap, tais como o alfabeto, suas vogais e consoantes, bem como suas respectivas pronúncias.
Além de exercícios de fonologia com separação silábica, o livro também conta com letras musicais de cânticos Makurap e exercícios para firmamento do conhecimento, tais como desenhar elementos relacionados à cultura da etnia. Ao final do volume (único, até o momento), é disponibilizado um vocabulário com cerca de 160 palavras relativas ao seu conteúdo para instruir seus estudantes ao longo da jornada de aprendizagem.
A obra, voltada para a alfabetização, será ministrada em encontros e rodas de conversa pelos sabedores da aldeia. “Esses sabedores indígenas, que são os mais velhos, hoje são nossos professores. Eles são pontos focais para a revitalização da nossa cultura”, explica Jefferson.
O comunicador pontua, ainda, que a quantidade de atividades não-indígenas dentro da aldeia é um agravante nessa situação. “Também é por este motivo que precisamos mostrar para a nossa juventude que a língua do povo Makurap é muito importante para a nossa identidade.”

Um dos pontapés iniciais para a saga rumo à revitalização da língua do povo Makurap, segundo relata Jefferson, começou depois que sua avó e seus tios, membros anciãos da aldeia Ricardo Franco, começaram a se indagar sobre a pouca valorização dada à língua e à cultura de seu povo por parte da própria aldeia. “Eles queriam entender por que ninguém dava valor aos cânticos deles, à cultura tradicional do povo Makurap num geral”, comenta Jefferson.
Apesar do que tem acontecido na aldeia Ricardo Franco, o número de falantes indígenas com cinco anos ou mais dentro de terras indígenas aumentou ao longo de 12 anos. É o que atesta o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o estudo, esse número foi de 293.853, em 2010, para 433.980, em 2022.
Percebendo a pouca valorização dada à própria cultura, Jefferson e demais membros do aldeia, como o seu tio, passaram a se organizar em associação como forma de mobilizar a pauta cultural da comunidade, criando a Associação do Povo Makurap, a AWANDA.
Essa mobilização acontece em torno de encontros e rodas de conversa e festas, como a Festa do Peixe, que já é um evento tradicional da aldeia Ricardo Franco. A aliança com outros povos indígenas, de diferentes etnias, também foi uma maneira encontrada de financiar esses eventos.
A iniciativa do povo Makurap para preservar a própria língua parte de uma parceria entre a comunidade e pesquisadoras ligadas à Universidade Federal da Paraíba e à Universidade Federal do Pará. O estudo é realizado junto ao Museu Paraense Emílio Goeldi, sediado em Belém (PA). O próximo passo do projeto é encaminhar os resultados do estudo feito sobre a língua Makurap para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), que gerencia essas iniciativas através do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), política de salvaguarda criada para prevenir a extinção de línguas brasileiras.
Uma política de salvaguarda das línguas
As margens do desaparecimento linguístico não são povoadas apenas pelo povo Makurap. O Brasil possui 391 etnias e 295 línguas indígenas, segundo o Censo de 2022. De acordo com o Atlas das línguas em perigo da Unesco, cerca de 190 dessas línguas estão em risco de extinção. Mas problema também envolve línguas não-indígenas, como o Iorubá, de matriz africana, e o Hunsrück, língua de origem alemã falada no sul no Brasil. Diante dessa realidade, o que é necessário para preservar uma língua?
O surgimento do Inventário Nacional de Diversidade Linguística se deu tanto para tentar salvaguardar essas línguas quanto para distingui-las daquilo que é reconhecido como patrimônio histórico imaterial. A política de inventário surgiu anos depois da instituição do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, promulgado no ano de 2000 pelo decreto de nº 3551, um instrumento de preservação do patrimônio cultural imaterial brasileiro. A partir dele, foram criados quatro livros destinados a registrar bens culturais imateriais relacionados a saberes, festas, lendas e locais culturais.
Apesar de cumprir com a sua finalidade, o instrumento não foi capaz de contemplar a diversidade linguística brasileira em sua totalidade porque não contava com categorias que incluíssem as línguas. Entendendo que a criação de um livro de registro para as línguas não seria o mais viável, visto que isso implicaria no reconhecimento da língua como um patrimônio, o Iphan adotou outras soluções.
“Quando falamos em patrimônio, partimos do princípio de uma seleção dos bens culturais mais representativos do que seria a identidade nacional. Mas essa lógica de seleção não se aplica às línguas, porque as línguas são tão estruturantes da cultura de um povo, que não faz sentido dizer que uma língua é patrimônio e a outra não, por um critério qualquer”, detalha o diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Iphan, Deyvesson Gusmão.

A partir dessa distinção, o órgão chegou à conclusão sobre a necessidade da criação de um instrumento próprio para a identificação e reconhecimento das línguas brasileiras. A publicação do decreto nº 7387, em 2010, instituiu, então, o INDL, que funciona tanto como um instrumento de produção de conhecimento sobre as línguas a partir de sua identificação quanto como um instrumento de reconhecimento das mesmas através da chancela do Estado, por meio do Ministério da Cultura (MinC).
“Quando uma língua é incluída no Inventário, ela é titulada como referência cultural brasileira, para diferenciar um pouco do reconhecimento como patrimônio num livro de registro. Quando um bem é registrado [num livro de registro], ele é reconhecido como patrimônio cultural do Brasil”, diferencia Deyvesson.
Em 2023, o Iphan lançou um edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, no qual selecionou 9 propostas que abarcam projetos de pesquisa sociolinguística e tendo como referência o Guia Nacional da Diversidade Linguística.
Desde que o INDL surgiu em 2010, 7 línguas que estavam em risco de extinção, sendo que 6 delas são indígenas, já foram inventariadas e reconhecidas pelo MinC como referência cultural imaterial. São elas:
- a língua Asurini, que pertence ao tronco Tupi, da família linguística Tupi-Guarani, cujos falantes habitam a Terra Indígena Trocará, localizada às margens do rio Tocantins, em Tucuruí (PA);
- a língua Guarani M’bya, identificada como uma das três variedades modernas da língua Guarani, da família Tupi-Guarani e do tronco linguístico Tupi;
- as línguas Nahukuá, Matipu, Kuikuro e Kalapalo, de família linguística Karib e falada na região do Alto Xingu (MT);
- e a língua Talian (chamada de língua de migração por conta de seu contexto), que é falada, especialmente, nas regiões de forte influência camponesa do interior dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso e Espírito Santo. A língua Talian é formada a partir do contato de distintas línguas originárias da região do Vêneto, na Itália, de onde veio um grande contingente de imigrantes para o Brasil, a partir de meados do século XIX.
Fora as línguas que já foram salvaguardadas pela política de diversidade linguística, cerca de 20 outras línguas aguardam por esse reconhecimento. É o que acontece com a LIBRAS, a Língua Brasileira de Sinais; o Iorubá; o Yanomami, língua indígena do povo de mesmo nome; e com a língua Pomerana, de origem alemã e polonesa.
Proteger a diversidade linguística: uma tarefa transversal
Deyvesson explica que essa espera por salvaguarda enfrentada por todas essas línguas é um reflexo da ingerência sobre o Iphan cometida durante o governo Bolsonaro, que extinguiu o MinC. Neste período, o órgão foi transferido para o Ministério da Cidadania, depois para o Ministério do Turismo, até retornar para o MinC, recriado em 2023, já no governo Lula. Com essas sucessivas mudanças, a estrutura do colegiado, atualmente formado por uma comissão técnica com representantes de cinco órgãos públicos do governo federal e que avalia e aprova a inclusão de novas línguas no Inventário, foi prejudicada.
“Agora, estamos aproveitando essa necessidade de reformulação para propor ao MinC a criação de um colegiado mais amplo, que atue como um conselho nacional de políticas da diversidade linguística”, diz. A nova proposta sugere o aumento do número de representantes do Estado de cinco para dez, bem como a inserção de dez representantes da sociedade civil no colegiado.

O diretor explica que a reestruturação do colegiado visa garantir a participação social no reconhecimento das línguas como Referência Cultural Brasileira, objetivando a intersetorialização das demandas e políticas que relacionam cultura e diversidade linguística. Para isso, “o Iphan propôs a criação de um Conselho Nacional de Políticas para a Diversidade Linguística”. A proposta está em análise no MinC.
A intenção é unificar um processo que já faz parte da maneira como a língua é preservada no Brasil. No que diz respeito à atuação do Estado, além do INDL, do Iphan, outras frentes atuam para garantir que povos indígenas mantenham vivas suas tradições linguísticas.
O Ministério da Educação, por exemplo, promove educação diferenciada para comunidades indígenas através da Política Nacional de Educação Escolar Indígena nos Territórios Etnoeducacionais, cuja premissa é garantir educação específica para esses povos, bilíngue e intercultural.
O Ministério do Planejamento, através do IBGE, realiza o senso nos domicílios e apura sobre a quantidade de povos que habita cada território. Outros órgãos que atuam em frentes específicas, como a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas, que tem o Departamento de Línguas e Memórias Indígenas, também se articulam no sentido da preservação linguística de povos tradicionais.
Se a nova estrutura do colegiado for aprovada, “a ideia é que tanto Estado quanto sociedade civil assumam o compromisso de salvaguarda, de preservação e fortalecimento das línguas”, conforme aponta o diretor do DPI.
Comunidade no centro
Um dos princípios fundamentais da política de salvaguarda das línguas do Iphan é a participação social. Para incluir uma língua no Inventário Nacional da Diversidade Linguística, é necessário que o proponente dessa inclusão, no caso os pesquisadores, contem com a anuência das comunidades de onde vem essas línguas.
Também é necessário que o processo de produção de conhecimento conte com a participação ativa de quem vive nos territórios, a fim de que seja garantido a legitimidade e o protagonismo das comunidades linguísticas na produção de conhecimento sobre sua própria língua.
Seguindo esse princípio, pesquisadores do Mukuá – Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Vissungo, ao lado das comunidades do Baú e do Ausente, no Serro, e do Quartel do Indaiá, na Diamantina, trabalham pela restituição de cantos e de palavras de línguas Bantu, como o Quimbundo e o Umbundu, a essas comunidades.

Esse processo, que está sendo realizado desde março com recursos do edital do INDL, se dá através do compartilhamento e da inventariação. Os cantos em questão se referem ao Vissungo, que além de comporem noções sobre vida e morte nas festas do Rosário do Serro (um misto de devoção religiosa e celebração cultural que homenageia Nossa Senhora do Rosário, com fortes raízes na cultura afro-brasileira), também são utilizados em contextos do cotidiano dessas comunidades.
“O trabalho de restituição da língua com as comunidades é realizado por meio da parceria entre mestres, educadores populares e pesquisadores acadêmicos. O processo também envolve a organização de memórias e de palavras da tradição local e o compartilhamento de pesquisas, documentos e gravações históricas com as comunidades”, detalha a antropóloga Joana Corrêa, integrante do Mukuá.
O projeto acontece através de oficinas em que os participantes desenvolvem histórias que rememoram fundamentos e palavras da tradição do Vissungo. Ao todo, mais de 170 palavras já foram inventariadas pelo grupo.
Além das oficinas com as comunidades de base do projeto, outras comunidades quilombolas do Serro, como Santa Cruz, Vila Nova, Queimadas e Capivari também estão inseridas no circuito do projeto através de rodas de prosa itinerantes. Como resultado final das oficinas do projeto, foi produzido o livro-cartilha Meu bisavô veio de Angola, em referência ao bisavô de Enilson Viríssimo, a partir de quem o projeto se estruturou.
Enilson, contrabaixista e mestre popular, é morador da comunidade do Ausente e tem na sua ancestralidade a origem para o projeto que visa a restituição do Vissungo às comunidades. Esse tipo de canto é um conhecimento passado de pai para filho ao longo de três gerações, e teve início quando o bisavô de Enilson, João Norbert, veio de Angola, trazendo consigo o repertório cultural e linguístico do país. No Brasil, se refugiou da escravidão no território que hoje é a comunidade quilombola do Ausente. No meio desse repertório trazido por João, figurava o Vissungo.
Situadas no território afro-diaspórico do Alto Jequitinhonha, microrregião do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, as comunidades quilombolas do Ausente, do Baú e do Quartel do Indaiá são oriundas de um contexto histórico rico em diversidade linguística. Estima-se que em meados do século XIX, cerca de 80 a 90 por cento da população dos arraiais era de africanos, e majoritariamente negra, conforme contextualiza Joana.
“Segundo registros históricos e memorialistas, entre fins do século XIX e até meados do século XX, as línguas africanas eram fluentemente usadas pelas populações locais. Com o apagamento das diversidades culturais e linguísticas empreendido por sucessivos atos legislativos, jurídicos e executivos do Estado brasileiro na implementação do regime republicano, desde o período pós-abolicionista até a Era Vargas, estas línguas ficaram restritas a áreas rurais mais isoladas, hoje reconhecidas como territórios quilombolas, e se mantiveram vivas nos cantos tradicionais dos Catopês dos Reinados do Rosário do Serro”, explica a antropóloga.
Outro desdobramento tido a partir das oficinas é a produção do documentário Envém Vissungo, realizado por meio de entrevistas com mestres e mestras populares locais. Tanto o livro cartilha quanto o documentário serão lançados no fim do mês, na comunidade do Baú, com roda de prosa com o mestre Enilson e convidadas.
Envém é uma palavra que representa um devir e é comumente pronunciada na região. Ainda, o uso do termo no contexto do projeto se refere a olhar para quem vem do território. Embora o termo envém seja considerado como coloquial ou, em algumas interpretações, errado por não estar de acordo com a norma culta da língua portuguesa, Joana defende que sua oficialidade não é algo que se conteste. “Guimarães Rosa conquistou o mundo escrevendo em mineirês”.