Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Mestre Chico, o griô que planta palavras em Quimbundo, Iorubá e Lingala

Porto Alegre (RS) — Nos dedos, uma tartaruga. No pulso, um bracelete de metal. Nos olhos, fogo. Mestre Chico é um homem de Xangô. Para conhecer o seu terreiro, o Ponto de Cultura Tambores de Angola, assentado na Zona Norte de Porto Alegre, é preciso tirar os calçados. Ao entrar pela porta, e atravessar um longo corredor, saúda-se o dono da Casa, Exu, o senhor dos caminhos, que fez este encontro acontecer. “Eu não sabia as perguntas que você iria fazer, mas ele sabia”, diz o Mestre. 

Francisco Paulo Jorge Pinto, o Mestre Chico, completa 70 anos este ano, e pelo menos 60 destes foram dedicados a vivenciar profundamente as tradições africanas e afro-brasileiras. Percussionista, artistas plástico e capoeirista nascido em Pelotas, ele é uma das únicas pessoas falantes de Iorubá, Quimbundo e Lingala no Rio Grande do Sul. Ele ensina a outros mestres e crianças, e acredita que as línguas africanas são como heranças ancestrais recebidas. São como vasos, preciosos e perecíveis, que, se não são alimentados na continuidade, desaparecem.  

A Casa de Mestre Chico é um lar para os tambores, instrumentos recebidos ou confeccionados ao longo de sua vida, reunidos em uma única sala, que guarda também seus livros, fotografias, e um acervo com pedaços da história dos Sopapos, do Batuque e dos mestres e mestras do sul do país. Angola, Nigéria e África do Sul são alguns dos lugares de origem dos tambores que o Mestre têm. Os Sons de África vivem ali. 

O Menino Chico

Todo Mestre já foi um menino, e quando era criança, nas ruas de Pelotas, Chico andava com um desejo imenso por aprender. Sua infância, como a de várias crianças, teve que acontecer de forma autônoma. “Dentro da história vivida pelo povo negro, as infâncias das várias etnias da diáspora se dão de forma diferente, porque as oportunidades de ser criança e de ocupar espaços de lazer e poder são outras para as crianças pretas”, reflete. 

Essas crianças precisam ser mais vigilantes, aponta o Mestre, porque elas têm que aprender rápido, criar suas próprias metodologias. Quando pequeno, ele ficava muito tempo só, junto com o irmão, Zé Carlos, dois anos mais velho. “Eu sempre fui muito aguerrido”, diz Mestre Chico. Mesmo sendo o mais novo de quatro irmãos, era ele quem saía na frente para se defender.

Seu encanto, porém, estava nas ‘brigas’ dos mais velhos. Nos olhos de Chico, aquilo que via dos meninos crescidos era luta, mas também uma brincadeira,  “um jogo bonito” que ele queria aprender. Demorou um tempo para saber que o movimento dos corpos que observava se tratava da Capoeira de Rua. Era um menino ainda quando chegou a ditadura, em 1964. “Ninguém dava aula de capoeira, entre quatro paredes, com anúncio. Se alguém era capoeirista, você não sabia. Só sabia que uma pessoa tinha conhecimento, quando dava uma briga.” 

Com oito anos, ele já estava habilidoso. Por conta dos portos de Rio Grande e de Pelotas, marinheiros vinham de lugares como o Rio de Janeiro, Bahia e Ceará e ensinavam a arte da capoeiragem. “O nosso aprendizado era assim: quando a gente se encontrava, a gente aprendia.” O lugar de ensaio era o Bar do Emilio Oliveira, onde os mais velhos “se batizavam todo dia”. As duas pessoas que iniciaram Mestre Chico foram Antoninho Motta e Jorge Gradinho, dois homens irreverentes e combativos, que não aceitavam receber ordens de ninguém.  

“Ponto de cultura não é prédio, é pessoa” 

Mestre Chico ao lado da esposa, Mestre Paula. (Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo)

Há 32 anos, Mestre Chico é casado com Mestra Paula, fazedora de cultura, que também constrói os Tambores de Angola, desde 1986. De Obá, Orixá guerreira que vence as tempestades, a Mestra lembra que tudo sempre começa com a reverência ao ancestral. “Que, a cada dia que passe, a gente possa lembrar da nossa cultura. Porque sem ela a gente não consegue levantar de manhã. Sem abaixar e pedir para eles nos ajudarem todo dia e toda hora.”  Os dois são pais de Tusilé, de 27 anos, filha mais nova de Mestre Chico. 

São muitas histórias para caberem em poucas horas de conversa, mas uma das marcantes da vida de Mestre Chico é a de quando, anos atrás, ele foi convidado a visitar um quilombo na região do Salto do Jacuí. Levou alguns de seus tambores para tocar com as crianças, que, para sua surpresa, o ensinaram uma canção em uma língua africana. “As crianças não sabiam, mas o que elas cantavam era Quimbundo. Falavam sem saber”, lembra o Mestre. 

“Elas pronunciavam bem, mas achavam engraçadas as palavras, porque eram diferentes. Davam risadas da música. Não sabiam que língua era aquela. Eles faziam a mesma coisa que eu fiz quando eu era pequeno.” As crianças aprenderam com um homem africano que havia passado um tempo na região. O Mestre explicou a elas, então, o que era o Quimbundo. Até hoje, as pessoas do quilombo perguntam quando ele voltará para fazer atividades. Não é por falta de vontade, mas sim, de recursos financeiros para que as viagens possam acontecer.

No ano passado, o congresso voltou a discutir um Projeto de Lei que garantiria a sobrevivência de Mestres e Mestras de cultura popular no Brasil – sessão que Mestre Chico fez parte, mas a lei ainda não foi aprovada. “O projeto está lá desde 2011 e até agora não foi resolvido, porque falta interesse em manter a cultura viva”, lamenta. 

“Criança aprende rápido. O Mestre foi lá e recordou a memória delas. Mas quem recorda na minha memória já adulta?”, diz a Mestra Paula. Crianças de diferentes regiões do estado pedem aulas, querem aprender as línguas, e os tambores, mas, cada vez, é mais difícil para os mestres sobreviverem e poderem se locomover, sem incentivo. Por isso, Mestre Chico lembra qual o real significado do ‘ponto de cultura”. 

“O ponto de cultura mesmo não é o prédio, é a pessoa. O ponto de cultura é aquele que move, dança e  canta”, resume. 

Uma vida aprendendo 

Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Por que aprender línguas africanas, como  Lingala, falada nos Congos, Quimbundo, idioma de Angola, e o Iorubá, falado pelos povos Iorubás?

“Eu sempre procuro estudar línguas, porque quando você estuda as línguas você estuda a cultura. Para o povo africano, a fala, o canto, a dança e a música, todas contam a história”, diz o Mestre. 

Ele acredita que as pessoas precisam olhar para o valor cultural destas línguas, porque são heranças ancestrais. “É como receber um pote fantástico, mas ele é perecível. Se ele quebra, não tem como recompor.” Mestre Chico, como um Griô, conta sobre sua história expandindo-a. Suas palavras são encantadas, porque não encerram em si mesmas. São como provérbios.  

“Esse pote são as próprias pessoas, que têm seus cérebros, suas cabeças, seus Orí. Elas têm dentro de si esses conhecimentos. Então, é importante que mais pessoas consigam ser um desses potes que carrega a linguagem. É através da língua que nós nos comunicamos com nossos ancestrais.”

Cada uma das línguas traz seus provérbios, deixados pelos ancestrais baseados nas vivências de cada um daqueles grupos. “O povo africano educa os pequenos e se auto-educa através de provérbios. Você não fica chamando as pessoas e dando sermão. Você recita, como se fosse um poeta, um trovador”, explica. “Quando você aprende um idioma de origem africana, ele tem tanto valor como qualquer outro idioma de outros povos. É através da língua que pertence a um grupo que eu posso chegar neste grupo e me comunicar.” 

Para Mestre Chico, o processo de colonização fez com que a sociedade acreditasse que não existiam línguas originárias em África, como se os idiomas que existissem fossem apenas os do colonizador. A própria ideia de que existe apenas um povo Iorubá, e não os Povos Iorubás, é fruto da cisão colonial, que dividiu tudo em ‘estados’, contrariando a Africanidade.  “Fragmentar é contra todos os princípios africanos. Tudo é tudo. Para nós, não existe metade. Tudo que está em metade, não está certo. As coisas estão completas.”

Estudar e ensinar as línguas é fissurar as lógicas de dominação e separação que a violência colonial implementou. Ele acredita que é papel também das instituições de ensino oferecerem aulas. “As universidades precisam trazer mais as línguas africanas para dentro delas. Tem que criar um espaço para desenvolver isso, porque existem pessoas interessadas em aprender”, sugere.  

Língua dos tambores  

“Para ser um Mestre, você não pode ser só tocar”. Um mestre ou uma mestra não só sabem do princípio da não-separação, mas o incorporam. São tudo, ao mesmo tempo, e em cada coisa que são, sabem do valor da partilha. “As pessoas prestam atenção na sua fala. Muitas seguem, como um exemplo. A sua fala não é casual, é direcionada.”

“Os mestres e mestras são músicos e artistas, do canto, da dança, da culinária, da reza, das oferendas. Para ser um Mestre, você não pode tocar sem orar. Orar é pedir a licença aos ancestrais. Como você vai tocar o seu tambor sem pedir licença aos ancestrais? Não tem valor o seu toque.” 

Tudo estar ligado é também o entendimento de que tudo é sagrado. O barulho que o tambor faz não é medido pelo seu volume, mas por sua intenção, por sua chamada fundamentada, energizada, e conectada à dimensão ancestral que cada toque têm. “Não pode haver oralidade sem fundamento. Não pode haver o mestre sem conhecimento. E não pode ser Mestre sem raiz. E tudo se acumula dentro do que chamo de Vaso, o Ibá, o Orí.”

Orí, na língua iorubá, significa cabeça e refere-se a uma intuição espiritual e destino que cada pessoa tem, guiado pelos Orixás. “Por isso, a importância do povo negro assentado, e por isso rejeitamos as mãos alheias e estranhas em nossas cabeças. Não é vaidade, é ancestralidade.” Como faz volta e meia, Mestre Chico repete o que diz, mas de modo diferente. 

Ele reconta, em outras linguagens, para que sua fala seja compreendida também por quem está mais distante das cosmogonias africanas. “Se você faz um doce, um bolo. Ele está todo bonito, enfeitado. Quem vai gostar que venha alguém e ponha a mão?”, questiona. “Mas esse bolo foi feito com qual finalidade? Para receber as pessoas e dividir com elas. Então, quando uma pessoa recebe um axé dos ancestrais, ele não é para si, é para que tenha a capacidade de ser um orientador, que traga em si a palavra dos ancestrais”. 

Assim como o bolo, o Axé existe para ser partilhado.

“Você chega em uma casa de Batuque no Rio Grande do Sul, escuta aquela música. O Alebê [tamboreiro] não está cantando, ele está tocando. Quem é iniciado sabe o que ele está tocando, que ritmo e para qual ancestral. Sabe se pode dançar, se tem que ficar de pé, se tem que ficar sentado, deitado, ou de costas, ou se tem que bater a cabeça no pé do tambor. O tambor fala. Quem está dizendo tudo é o tambor.”

“Mas o tambor sozinho, toca alguma coisa?”, o Mestre me pergunta.  

Não toca, respondo. Aprendi, durante a conversa, que nenhuma pergunta que o Mestre Chico faz é retórica. Se pergunta, pergunta. E responder é também entregar minha energia para este encontro. Significa dizer que estou ali e que quero partilhar. As perguntas andavam dos dois lados, e não eram só da jornalista. 

Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Mestre, uma árvore plantada

E o que é ser Mestre? Para Mestre Chico, o que ele fez a vida toda foi seguir o caminho do aprendizado. “Eu nunca procurei uma consagração de mestre. Eu sempre procurei aprender, porque até hoje eu me considero um aprendiz. Eu tenho certeza que as culturas africanas são tão variadas, tão difíceis, tão densas que ninguém consegue aprender tudo. Você aprende um pouco de cada uma.” 

Mestre Chico anda com seus provérbios, cheios de imagens encantadas. E um, em especial, parece se aproximar da definição de um Griô: 

“Quando se planta uma árvore, a gente não sabe quanto tempo ela vai levar para crescer e dar frutos, mas você mesmo assim tem que plantar. Você não pode plantar pensando que você mesmo quer se alimentar dela. Se eu não estiver aqui amanhã para provar seus frutos, outras pessoas estarão. Por exemplo, eu tenho 70 anos. Eu não conheço nenhuma árvore laranjeira que eu tenha plantado, mas eu já comi tantas laranjas na minha vida. Alguém plantou, e eu me alimentei. E todas as pessoas que estão chegando? Eu vou cortar todas as plantas, porque não preciso mais delas? Não, eu tenho que plantar mais.” 

Mestre Chico planta palavras. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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