“A cultura Iorubá vai além da religião”, diz chef Kayzee Fashola

Thaís Seganfredo

Foto: Desirée Ferreira

Das centenas de línguas faladas dentro do território brasileiro, a língua Iorubá é uma das mais presentes na cultura. Sua influência está em palavras (e significados) como axé e acarajé, está no dialeto pajubá, na música brasileira e em povos de terreiro por todo o Brasil. Apesar de enraizada na sociedade há centenas de anos, é só recentemente que a língua passou a ser incluída como objeto das políticas culturais voltadas à valorização da diversidade linguística no país, um trabalho que avança em ritmo lento devido à falta de recursos

Desde 2010, ano em que foi criado o Inventário Nacional de Diversidade Linguística, apenas R$ 2,8 milhões foram destinados à realização de inventários sociolinguísticos, eventos, projetos e publicações  à diversidade linguística. A informação foi obtida pelo Nonada Jornalismo via Lei de Acesso à Informação. É por meio do trabalho de universidades, pesquisadores, falantes e agentes culturais, então, que a área vem se desenvolvendo pouco a pouco no Brasil.

Uma dessas pessoas é Kayzee Fashola, integrante do colegiado setorial de diversidade linguística do Rio Grande do Sul, grupo que ajuda a formular políticas públicas voltadas à área. Natural de Lagos, na Nigéria, e morador de Porto Alegre há 15 anos, Kayzee também é chef de cozinha e mantém um ateliê gastronômico com a esposa, além de participar de palestras e eventos sobre a cultura Iorubá – um conjunto de saberes que vai além da religião, ele explica. “Onde quer que você esteja na Terra tem um filho Iorubá, porque nós somos o início da criação”, diz.

Nesta entrevista, Kayzee falou sobre a presença da cultura Iorubá no Brasil. Para o chef, deveria ser natural ver a cultura Iorubá mais difundida nas ruas. “Deveria ser como é em Salvador, deveria ser natural eu sair com minhas vestes Iorubá na rua aqui”, diz. Kayzee também defende que haja mais núcleos de estudos, bibliotecas e espaços de conhecimento voltados à cultura Iorubá no país, “ para que o Brasil conheça suas origens” e para que os africanos em diáspora sejam mais valorizados enquanto agentes culturais em terras brasileiras.

Nonada – Conta um pouco do seu trabalho como chefe, como começou nessa atividade? 

Kayzee – Me chamo Kayzee e sou cozinheiro. Eu trouxe a cultura da culinária Iorubá para cá, ganhei através da minha mãe que é uma cozinheira e a minha avó também, elas que me ensinaram a cozinhar e essa é a cultura que eu trouxe aqui em Porto Alegre. Aqui a gente atende dependendo do que as pessoas querem, a gente faz vários tipos de pratos, tradicionais também,  e ensina os nossos alunos vários métodos para fazer as comidas Iorubá. 

Nonada – Qual é a importância de ter a língua Iorubá no colegiado de diversidade linguística?

Kayzee – Essa participação permitiu que eu possa trazer uma outra forma de aprender a cultura Iorubá,  que abrange muitas coisas, como a música, a dança, o teatro e a culinária também. Onde a gente vai a gente leva a  cultura da comida, e dentro da cozinha, a gente pode aprender muitas coisas  sobre as festas, sobre a tradição. Eu tenho orgulho de ser um Iorubá, a gente se orgulha da nossa música, nossa dança, nossa culinária, o nosso jeito de  vestir. Aonde a gente vai tem esse orgulho, porque nossa cultura não tem limite, não tem fim. A cultura Iorubá é diversidade em si, quando a gente está aqui no Brasil é um outro tipo de Iorubá que a gente tem. O mesmo povo mas um outro jeito de fazer, nós temos essa oportunidade de sermos muitos. 

Nonada – Em que locais a língua é mais falada?

Kayzee – Cuba, Suíça, Estados Unidos, Jamaica, onde quer que você esteja na Terra tem um filho Iorubá, porque nós somos o início da criação. Então onde flui a água, onde tem a terra onde a natureza pode ser tocada tem um filho de Iorubá. Não sou eu que falo, eu estou aqui no Brasil, se nesse momento a gente vai pra Austrália, Japão, onde quiser no mundo, haveria um filho de Iorubá com mesmo orgulho que eu. Em Cuba, o povo iorubá chama “lucumis”. A mesma religião deles que aqui nós chamamos de candomblé lá eles chamam de Santería. Aqui a gente louva os orixás porque são mensageiros do Olodumarê. Então, dependendo de onde que você está aqui no Brasil, a gente tem sorte. A influência de Iorubá no Brasil é desde o início, desde a própria origem do Brasil. Na própria criação do próprio povo, então aqui também no Brasil aonde você vai também vai ter um traço, um pingo de Iorubá.

Nonada – Como você avalia o fato de tanta gente aqui no Brasil querendo aprender Iorubá e a presença da língua da cultura Iorubá nos povos de terreiro aqui do Brasil?

Kayzee – É uma coisa muito boa que os brasileiros aprendam a sua origem, aprendam de onde vieram. É uma coisa boa até pra gente se livrar dessa coisa de escravidão, uma coisa boa porque fortalece a própria cultura. Se você conhece a religião, já conhece um pouco como falar, já conhece um pouco da comida. Quando você decidir um dia voltar lá, nada vai ser estranho pra ti, porque você já sabe daqui, você  já se doou pra saber,  já não vai se assustar com a pimenta, porque você tem que se preparar para pimenta. Já aprendeu a dançar na religião, já aprendeu a orar a religião, você está pronto para voltar à sua origem. Pode levar teus filhos pra fazer turismo um dia, mostrar onde é Oxum e os outros estados. É uma obrigação de qualquer brasileiro saber que dentro de Lagos existem comunidades brasileiras, daqueles que voltaram depois da abolição da escravidão. Eles construíram comunidades e tudo dentro da comunidade com nomes brasileiros. Igreja, mesquita, mercados, hospitais, tudo leva nomes brasileiros. 

Eu pessoalmente acho que devemos ter mais seriedade quando a gente trata das línguas que fazem parte da nossa cultura, temos que ter um núcleo de estudos, bibliotecas voltadas a isso, temos que ter espaço para as nossas crianças aprenderem.  Dessa forma, eu, um africano em diáspora, terei uma oportunidade de ensinar o pouco que eu sei. Muitos africanos chegam aqui e não sabem o que fazer, mas com espaços como estes, eles teriam o que fazer. 

Nonada – Aqui no Brasil, como no resto do mundo, há tradicionalmente uma valorização do conhecimento europeu. Mas existe um movimento de valorizar o pensamento decolonial, o conhecimento dos povos africanos e indígenas. Você vê isso acontecendo aqui?

Kayzee – Eu sou descendente de Ifá, então dentro da minha cabeça deve ter uma enciclopédia ou um dicionário porque eu sou descendente do Deus da sabedoria. Como filho Iorubá, acredito muito nisso, para você ser um filho de Iorubá tem que se impor, você tem que acreditar no supremo, um Deus supremo que nós chamamos de Olodumarê, você tem que acreditar nos anjos, nos orixás que são aqueles  mensageiros de Olodumarê. Você tem que acreditar na reencarnação, nós acreditamos muito na reencarnação, no espírito. Se de algum jeito dentro de você, você sente essas coisas, você é um filho real Iorubá. Mesmo que você não vá na religião para expressar a tua cultura, você pode saber cozinhar, você pode saber dançar, você pode saber cantar em Iorubá e assim estar fortalecendo a cultura. 

Eu vim de Lagos. Lagos é o estado mais diversificado na África, onde você pode ser tudo aquilo que você quer ser, e a tradição segue respeitando todo o processo. Em Iorubá, temos quatrocentos espíritos bons mais um e temos duzentos espíritos ruins mais um. Em tudo que nós fazemos, respeitamos os quatrocentos mais um  – que pode ser mais um espírito qualquer. Esse é o método para ser um filho de Iorubá, acreditar nos quatrocentos mais um dos espíritos bons. E você é filho de Iorubá sim.

 

Esta reportagem integra o projeto Sons do Sul – uma cartografia linguística, da Riobaldo Conteúdo Cultural, agência de conteúdo do Nonada. Financiamento: edital Diversidades das Culturas, da Secretaria Estadual de Cultura do RS e Fundação Marcopolo – Lei Aldir Blanc.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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