Rainha dos raios: Conheça 12 trabalhos artísticos sobre a orixá Iansã

O Nonada conversou com artistas que trazem a orixá Iansã como metodologia e tema de seus trabalhos artísticos

Orixá Iansã, ou Oyá, é conhecida por ser a senhora dos ventos. Como todos os Orixás, entidades cultuadas pelas religiosidades e culturas de matrizes africanas, ela é vinculada a forças da natureza. Cada um tem características e qualidades próprias e, no caso de Iansã, a ventania que lhe conforma é também uma síntese de uma enorme capacidade de transformação que carregam consigo. Os itans, histórias de origem iorubá, contam que ela pode, em um só corpo, transformar-se em Búfala e em Borboleta. 

A convivência e observação da habilidade de Iansã em assumir diferentes formas corporais fez com que a pesquisadora e professora de teatro Daniela Moraes dedicasse sua pesquisa artística e acadêmica a ela. Se o teatro e a dramaturgia têm como prática estudar as corporalidades, as gradações de energia no palco, o preparo para os diferentes personagens, por que não pensar tudo isso a partir da dança de uma Orixá? Assim, Daniela criou uma metodologia de treinamento para atores e atrizes baseada nos movimentos de Iansã. 

“No teatro, muitos dos nossos referenciais de modificações corporais em cena vêm de europeus, norte-americanos”, reflete a professora da Universidade Federal do Alagoas (UFAL). “Por que eu, como uma pessoa afro-religiosa, não poderia investigar a partir das minhas matrizes esses mesmos elementos?”, conta. Na dissertação, intitulada Os elementos de Iansã como possibilidade para criação cênica, a pesquisadora investigou o trânsito da dança de Iansã e dos seus elementos míticos entre o Candomblé, o Afoxé, o Laboratório e o Teatro. A pesquisa aconteceu junto ao Afoxé Oju Omim Omorewá, de Maceió, em uma observação das práticas corporais no teatro, aliadas a experimentos criativos junto ao Coletivo Cores, grupo potiguar de jovens artistas. 

A pesquisa resultou em uma metodologia voltada à ampliação do repertório corporal de intérpretes e criadores, em que Iansã é o ponto de partida para criação e desenvolvimento em cena. “Quando Iansã tem determinado movimento de braço, ela está espanando, afugentando os espíritos. Há também o movimento da espada, que ela utiliza para entrar no campo de batalha”, detalha. 

Nesse trânsito entre os saberes do terreiro e da bibliografia teatral, Daniela encontrou um vasto manancial de possibilidades oferecidas pelas gestualidades de Iansã. Daniela conta que o estudo dos movimentos e das corporalidades dos Orixás, em especial, a ajudou a compreender, inclusive, conceitos teóricos que ela não compreendia com facilidade durante a universidade. A mudança de referências pode contribuir para outros modos de pensar o fazer cênico, em exercícios, treinamentos e espetáculos. “Você consegue relacionar o búfalo com um peso, com um determinado estado de atenção. Ele tem uma musculatura muito presente e é um referencial concreto para tratarmos uma sensação muito subjetiva”, reflete. 

O oposto também funciona, porque assim como Iansã trabalha o peso, os chifres, de um mamífero, ela evoca a leveza. Em sala de aula, ou em de ensaio, a metodologia é também muito imagética: “Porque, dizer [a atores, intérpretes] ‘imagine que você é a brisa’, é muito subjetivo. Mas é diferente se dissermos ‘imagine que você é uma borboleta’.” 

Exercícios teatrais como esse trabalham a cena a partir de outro referencial. Ela, Iansã, dona dos raios e das tempestades, convoca diferentes estados de atenção. Desde que ingressou como professora na universidade, há dois anos, Daniela tem levado a metodologia também para as disciplinas. A polirritmia de Iansã é uma aliada no palco e, segundo ela, pode ser expandida para diferentes atuações nas artes cênicas. 

“Os elementos que são trabalhados na dança de Iansã são muito parecidos uns com os outros, o que muda é a forma. Por exemplo, se eu quiser montar Romeu e Julieta, eu posso muito bem trabalhar a família Montecchio com a unidade de energia de um Orixá. Posso ter uma unidade de energia de outro Orixá, como trabalhar com a energia de Ogum e com a energia de Xangô”, explicita. Depois de se debruçar sobre o movimento Iansã, Daniela Beny focou seu doutorado em Ogum, abordando a  corporeidade e  poética do Orixá e analisando as aproximações e distanciamentos com o trabalho do ator.

Levar Iansã para o centro do palco é também o que faz a artista e intérprete Maria Bethânia há pelo menos 60 anos. A cantora desde a juventude foi firme ao reivindicar o lugar dos Orixás, na própria prática artística, em especial a mãe da sua cabeça, do seu orí, Iansã. A associação entre as duas é tão grande que, durante a vida, Bethânia ouviu que ela seria Iansã, mas foi irredutível ao dizer que seu trabalho era um veículo para a expressão da Orixá e que “ela se deixa ver em mim e isso me honra.” 

Foi essa a frase que o pesquisador, poeta e pesquisador Marlon Marcos ouviu da própria cantora ao fazer da relação entre Iansã e Bethânia um caminho de pesquisa. O interesse no vínculo entre as duas começou em uma disciplina na graduação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), dedicada a estudar mitos contemporâneos, em que ele optou por estudar o mito que circundava Maria Bethânia. Em desdobramentos dali, produziu uma dissertação dedicada ao tema, Oyá-Bethânia: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela, em que Marlon analisou as muitas performances de palco de Bethânia e da projeção de sua imagem conectadas às representações às narrativas da entidade de origem iorubana, Iansã-Oyá.

Marlon reflete sobre a importância de Maria Bethânia, enquanto destaque da música popular brasileira que durante toda trajetória incorporou referências ao candomblé no palco. Na atual turnê de seis décadas de carreira, ela inicia o espetáculo, vestida de vermelha — cor de Iansã, cantando: rainha dos raios / tempo bom / tempo ruim. A canção de abertura é Iansã (1972) e, para o pesquisador, revela uma permanência que atravessa o tempo. “Não é só uma preocupação estética. Ela faz uma louvação à Iansã, porque nunca abriu mão desse orixá, nem dentro, nem fora dos palcos”, explica o professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. 

Para ele, Maria Bethânia é uma pensadora do Brasil, que através de sua performance ensina uma visão de país, onde estão os Orixás, os Exus, os Caboclos, e claro, Iansã em primeiro lugar. “Oyá é uma filosofia do movimento. Ela é uma Orixá da mudança, que não aceita o cotidiano, que desobedece. Ela é o fogo e também a água, porque seu nome é Oiá, um dos rios mais longos da África Ocidental.” A força e associação trazida por Bethânia é, segundo Marlon, educativa. Como Iansã, a artista não arredou o pé da presença afro religiosa em sua produção artística. 

O Nonada reuniu trabalhos artísticos que, como os de Daniela e Marlon, entrelaçam as diferentes linguagens das artes às expressões de Iansã. Confira a lista completa:

Oyá, de Moisés Patrício 

Série Aceita, de Moisés Patrício (Foto: divulgação)

A obra Oyá, de Moisés Patrício, integra a série Aceita?, um conjunto de mais de mil fotografias realizadas pelo artista desde 2013. Na série, o artista visual, multimídia e sacerdote da tradição afro-brasileira, repete o gesto de abrir a mão e estendê-la, como em uma oferenda, rito constituinte das religiosidades de matriz africana. Como característica de sua produção artística, ele trabalha no cruzamento de linguagens, com elementos da cultura afro-brasileira, refletindo sobre a herança racista do Brasil em que a própria expressão “mão de obra” é historicamente atribuída à população negra. Sua atuação ultrapassa os limites do terreiro, promovendo diálogos entre arte, filosofia e religiosidade. 

Ònà Irin: caminho, de Nádia Taquary

Ònà Irin: caminho, de Nádia Taquary (Foto: Cortesia da Galeria Portas Vila Sec)

A exposição Ònà Irin: caminho, em exibição no SESC Belenzinho, em São Paulo, de Nádia Taquary destaca a pesquisa da artista sobre o universo afro-brasileiro e a presença feminina nos mitos de criação das matrizes iorubás. A orixá Iansã aparece entre as obras reforçando a importância das forças femininas na cosmologia afro-brasileira, aspecto importante da produção de Nádia que tem uma sólida trajetória dedicada a joalheria afro-brasileira, adornos que carregam símbolos de fé, proteção e prosperidade, além de serem formas de resistência e afirmação. 

Iansã, de Josafá Neves

A orixá Iansã aparece com destaque nas obras do artista Josafá Neves e em sua mais recente exposição Orixás, aberta no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), em Salvador, com A partir de cores, geometrias e símbolos, o artista propõe uma imersão sensorial e simbólica nas raízes afro-brasileiras. “Iansã” é a instalação principal e ocupa a Capela do Solar do Unhão, dentro do museu. Envolta por trezentos fios vermelhos, adornados com búzios, a obra foi criada em uma residência artística realizada pelo artista em Angola, em 2023. 

A Boca dos Orixás, de Bruno Costa 

A Boca dos Orixás, de Bruno Costa (Foto: divulgação)

A xilogravura do artista, arte-educador e designer  Bruno Costa é parte de uma produção que utiliza a madeira como matriz para reproduzir imagens em homenagem aos Orixás. Bruno começou sua trajetória artística de Bruno inspirado pelos desenhos de seu tio Cézar, e desde então, utiliza técnicas como xilogravura, litografia, gravura em metal, serigrafia, desenho e pintura. Em suas obras, interpreta memórias ancestrais e retrata o povo negro em suas diversas dimensões, como a religiosa, cotidiana e afetiva.

Oyá, de Goya Lopes

Com mais de 50 anos de trajetória, Goya Lopes consolidou uma vasta produção artística ancorada na arte têxtil. Ao longo da carreira artística e como profissional de design, a artista criou uma identidade própria sensível e sofisticada que se ancora na cultura afro-brasileira, indígena e barroca. Oyá é uma tela pintada por Goya em 2025, com base em uma serigrafia realizada pela artista no final dos anos 1990.

Cárcere: Ou Por que as mulheres viram búfalas, de Dione Carlos

Foto: divulgação

O espetáculo teatral Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos foi escrito pela premiada dramaturga Dione Carlos, e foi montado junto à Companhia de Teatro Heliópolis, em 2022. O roteiro conta a história de duas irmãs que têm a vida marcada pelo encarceramento dos homens da família: primeiro, o pai; depois, o companheiro de uma; agora o filho da outra. Como resistência para enfrentar o sistema, os saberes ancestrais resistiram à barbárie e atravessaram os séculos nos corpos. Iansã, Rainha Oyá, deusa guerreira dos ventos, das tempestades e do fogo, é quem dá título ao espetáculo, uma referência às mulheres que transmutam as energias de violência e morte e reinventam realidades.

Sol, Afrika, de Brunna Alexsandra

Sol, Afrika, de Brunna Alexsandra (Foto: divulgação)

A obra Sol Afrika, de Brunna Alexsandra, traz uma persona advinda da África pré-colonial que — como num quebra-cabeça — luta para remontar a própria história. A produção da artista visual, pintora, muralista e escritora, se dedica a unir uma técnica realista, narrativas poéticas e um olhar crítico sobre o corpo e a existência. Sol Afrika acende a luz que um dia quiseram apagar, revelando um rosto que também é múltiplo, como Iansã. O trabalho da artista integrou a exposição Búfala:Agenciamentos de Corpas Insubmissa, com curadoria de Izis de Abreu, realizada em 2024, em Canoas, no Rio Grande do Sul. A mostra contou com a participação de nove artistas residentes no estado que trouxeram olhares e questionamentos sobre o lugar das mulheres na sociedade brasileira, a partir da ideia da Búfala, de Iansã. 

Iansã, de Isa do Rosário

Isa do Rosário (Foto: Museu da Pessoa de Franca/divulgação)

Iansã é uma das obras de Isa do Rosário dedicadas aos orixás em sua primeira exposição individual Como a Terra Respira, em exibição no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Os bordados coloridos são característicos da produção de Rosário que é também é arte-educadora, artista plástica e contadora de histórias, com mais de 30 anos dedicados à preservação e difusão da cultura afro-brasileira..

Xangô e Iansã, de Zé Darci

Xangô e Iansã, de Zé Darci (Foto: divulgação)

Há mais de duas décadas, o artista Zé Darci, desde Pelotas no Rio Grande do Sul, pinta e desenha os orixás na sua produção artística. As obras se detém às histórias de quilombolas, à força das mulheres negras e as narrativas dos orixás, enfatizando o passado, presente e futuro negro do sul do Brasil.  Ele é reconhecido também por ser um griot, um mestre, e utiliza suas telas para contar as histórias e acontecimentos da população negra e seus cotidianos. 

Tempestade de Iansã, de Inaicyra Falcão

Inaicyra Falcão é cantora lírica, educadora, pesquisadora e referência em estudos sobre dança contemporânea. Na canção Tempestade de Iansã, uma composição de, Beto Pellegrino / Pedreira Lapa, Inaicyra homegeia a senhora dos velhos: Um raio iluminou a terra / Subiram mais altas as ondas do mar / A cachoeira na mata estrondou / Lá na pedreira ouviu-se o grito de Ogodó. 

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