*Esta matéria integra o projeto LAB Futuro Ancestral: co-criando estratégias de mobilização, com realização do Nonada e do coletivo NoiteSuja e apoio do UMI Fund.
Na região do maretório do Pará, a Rede Cuíras é guardiã do maior cinturão de manguezais do mundo, conforme autodenominação. O termo maretório, junção das palavras maré e território, se refere ao território que envolve as marés e os rios paraenses. Formada por um coletivo de jovens, a Rede Cuíras, hoje, cobre 15 unidades de conservação marinhas (as chamadas Resex Marinhas), pautando e fortalecendo a comunicação local sobre justiça climática e ambiental. O trabalho realizado pela Rede ao longo dos últimos sete anos dialoga coletivamente com as demandas das comunidades locais.
“A essência da Rede Cuíras é comunitária, ela vem da base. A gente trabalha lado a lado com as associações-mães desses territórios. Também com parcerias do terceiro setor e com o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade]. A Rede nasce de uma demanda dos povos tradicionais desses maretórios”, explica Thiago Maiandeua, diretor executivo da Rede.
Thiago percebe as discussões socioambientais impulsionadas pela COP30 como uma oportunidade de ganhar espaço para falar de seus territórios e respectivas necessidades. “Isso envolve questões como a erosão costeira, que é resultado direto das mudanças climáticas, é um impacto ambiental.
O jovem é um dos 12 integrantes do projeto LAB Futuro Ancestral, realizado pelo Nonada e pelo coletivo drag NoiteSuja. O laboratório reúne artistas, ativistas e pesquisadores paraenses para co-criar um documentário sobre as relações entre clima e cultura, no ano em que ocorre a COP30, em Belém.
Comunidades como as da Praia do Pesqueiro, na Ilha do Marajó, e a Mocooca, no na Ilha de Algodoal ou Maiandeua, são alguns dos territórios impactados pela erosão costeira. Conforme o mar avança, comunidades inteiras são forçadas ao deslocamento compulsório.
“A gente trabalha com essas comunidades fazendo a formação principalmente com a juventude, para que a gente leve essas demandas para os espaços de decisão, onde a gente vai incidir, como no conselho gestor participativo. Adotamos esse modelo e nele temos o direito de escolha, para fazer os trabalhos como a gente quer sem muita intromissão do Estado. Isso fortalece muito nossas ações”, detalha Thiago.
Na comunidade de Maiandeua, onde Thiago reside e uma das 15 que abrangem a Rede Cuíras, a principal forma de articulação se dá com as escolas, num trabalho de base com as juventudes e com as crianças. Através de atividades esportivas e lúdicas, Thiago aborda temas como a preservação do mangue, ecossistema costeiro de transição entre o ambiente terrestre e o marinho. Em parceria com a Rede Mães do Mangue, coletivo que se articula a partir das demandas das mulheres dos territórios em consonância com os manguezais, Thiago também trabalha com os temas abordados pelo coletivo. É a parceria com outras redes que permite à Rede Cuíras atuar de maneira eficiente em todas as 15 unidades de conservação marinhas que contempla.
Thiago entende a comunicação, principalmente aquela utilizada nas redes sociais, como algo essencial para a articulação de temas ambientais e climáticos defendidos pela Rede, bem como para a divulgação de projetos e eventos. Em janeiro, a Secretaria de Educação do Pará, em Belém, foi ocupada por cerca de 300 indígenas de 22 etnias diferentes que exigiam a revogação da Lei 10.820/2024. A lei representou um atraso para a educação no estado ao suspender o ensino presencial para regiões distantes dos centros urbanos, compreendendo comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. “Para que essa ocupação da Seduc desse certo, a gente teve que fazer a nossa própria comunicação, e isso aconteceu basicamente nas redes”, comenta.
Marambaia na tela do cinema
Para além de área geográfica constituinte de uma cidade, o bairro Marambaia, na Zona Norte de Belém, no Pará, também é cenário de filme. Foi no bairro que o curta-metragem Americana (2025), da artista Agarby Braga, foi gravado. No curta, identidade, amizade, traição e pertencimento permeiam a relação de cinco amigas, que são detidas pela polícia e levadas para a delegacia depois de brigarem numa pracinha pública do bairro.
E não para por aí as histórias que se originam no Marambaia. Em Mana, canção composta pela artista e que faz parte da coletânea Marés, do Selo Caqui, com 10 artistas independentes do Pará, uma travesti sai de casa para curtir a noite com o dinheiro contado, “mas com muito axé, sabendo que vai dar certo. Ela encontra situações inesperadas, se diverte e só volta pra casa pela manhã”.
A canção foi composta em pajubá, dialeto símbolo de resistência usado entre travestis e pessoas da comunidade LGBTQIA+. Para Agarby, a narrativa de Mana, cuja sonoridade “reflete uma vivência que quase nunca é mostrada na grande mídia, mas que pulsa em quem cria sua própria mídia, como eu, minhas amigas e várias outras manas que se identificam com essa música e vivenciam ela”.
A partir dessas narrativas que colocam a vivência periférica no centro, Agarby explora a relação de pertencimento das personagens com as geografias do Marambaia, levando para as telas de lares diversos e para os ouvidos mais atentos as vivências da periferia de Belém. Seja no audiovisual com Americana, seja na música com Mana, o que Agarby quer é pintar uma Belém que a reconheça como agente de transformação social e, claro, uma Belém na qual ela possa se ver.
Em sua infância, Agarby careceu do sentimento de representação narrativa. Buscava a si mesma em trechos de música, cenas de filmes, até mesmo em suas relações interpessoais. Percebendo a raridade que era uma produção artística que contemplasse sua identidade em sua proposta, se decidiu por tomar as rédeas e produzir ela mesmo suas narrativas. “Por ser fiel à minha verdade, acredito que a minha arte tem o poder de conectar, de fazer outras pessoas vibrarem na mesma frequência, se identificarem, como eu queria me sentir quando criança”, pontua.
A artista Agarby Braga faz parte de uma geração de agentes culturais do Pará que estão se destacando no cenário cultural e de ativismo por trazerem em seus trabalhos uma relação íntima com as questões ambientais e de ancestralidade, além de destacarem vivências locais que ressaltam identidades dissidentes e territórios descentralizados.
Orgulho de ser amazônida
“Nós temos dito e temos provado há milhares de anos que é possível gerar riqueza e desenvolvimento com responsabilidade social e ambiental. Ser humano e natureza caminhando juntos”, destaca Nice Tupinambá, jornalista e ativista indígena. Nice é curadora da Casa Ikeuara da Amazônia, espaço que incentiva a culinária, as artes e acessórios feitos pelos povos indígenas da Amazônia. Ela compreende a importância da geração de renda a partir desses produtos não apenas enquanto retorno financeiro, mas também como afirmação de identidades e fortalecimento da cultura, além de colaborar com a proteção ambiental. “A gente está provando ao mundo que é possível gerar economia e transformar o mundo da moda de maneira sustentável”.
É a vivência amazônida de Nice, de contato com a natureza, com os rios, com as matas e o seu olhar para a sua ancestralidade que fundamentam suas discussões sobre o seu trabalho com a moda e com o ativismo indígena, e também com a Amazônia. “Infelizmente, devido ao processo de colonização e a criminalização na nossa região, por muito tempo o povo amazônida teve vergonha de afirmar sua identidade, de ter orgulho da sua região”, explica.
Hoje, esse entendimento é outro. Conforme aponta a ativista, de dez anos para cá, os amazônidas vivem um processo de assimilação de identidade de maneira a afirmá-la, entendendo-se e orgulhando-se de serem amazônidas. Essa vivência nos territórios da Amazônia tem sido fundamental, inclusive, para o momento atual de debates e preparação para a COP-30, uma vez que contribuem com as discussões climáticas, com os acordos que foram e serão firmados e com o que é preciso para que se possa adiar o fim do mundo, conforme disse Ailton Krenak. “A gente tem muito a acrescentar nesse debate. E nós já temos essas respostas, porque a gente já vem trabalhando essas respostas há muito tempo”, afirma Nice.
Conheça os 12 artistas e ativistas que integram o LAB Futuro Ancestral:
Pedro Mota
Jovem cria da Terra Firme, professor de Geografia e pesquisador amazônida. É Coordenador de Pesquisa no Instituto COJOVEM e voluntário na ONG OLIVIA. Atuando pelas juventudes dissidentes do Pará. Conhecido como Boto de Belém nas redes sociais, e também dá vida a Drag Queen Yva Devayne. Tio da Clarice e apaixonado pela cultura nortista.
Agarby
Artista trans não binárie paraense que transita entre o audiovisual, a literatura e a música. Assina direção, roteiro e edição de suas obras, tecendo narrativas de forte carga sensível e poética. Entre seus trabalhos mais recentes, destacam-se o curta Americana (2025) e o videoclipe de Mana (2025), além dos curtas Dorso (2020), Opus I (2017), Dois, Três, Zero (2017), I Loathe You (2016), e o documentário Amor (2015).
Flávia Ribeiro
É mãe, feminista negra afroamazônida, jornalista e consultora para equidade de raça e gênero. Mestra em Ciências da Comunicação (PPGCOM-UFPA), autora do livro Comunicação, Interseccionalidade e Decolonialidade: escrevivências da Marcha Virtual das Mulheres Negras Amazônidas. Flávia integra os grupos Comunicação, Política e Amazônia (Compoa/UFPA) e Nós Mulheres Pela Equidade Etnico-Racial(UFPA). Foi premiada no Programa Ancestralidades de Valorização à Pesquisa 2024 e recebeu menção honrosa no 7º Prêmio Compolítica de Dissertações.
Walter Kumaruara
Oriundo da aldeia Vista Alegre/Pedra Branca, do Povo Kumaruara, Walter é fundador do Coletivo Jovem Tapajônico, um coletivo de formação e informação que organiza seminários e festivais para formar influenciadores locais dentro de comunidades e aldeias. O coletivo tem a missão de fazer com que jovens entendam sobre sua própria história e aprendam a gerar conteúdo. Ele faz parte da lista anual “30 vozes da mudança” do coletivo Papel & Caneta. Além de educador, repórter e professor, Walter também já escreveu artigos para a Folha de São Paulo.
Rayo Machado
Publicitária, Roteirista e Diretora/Assistente de direção, natural de Belém (PA). Há mais de 10 anos atua em projetos em Arte, Comunicação, Ciência e Meio Ambiente, na perspectiva de pautar a Amazônia em narrativas e práticas nossas, “de dentro pra fora”, subvertendo lógicas estrangeiras e coloniais sobre a região.
Wagner Correa Cardoso
Caboclo de sexualidade dissidente, poeta, ativista científico e analista de inteligência artificial. Formado em Gestão Ambiental e licenciando em Ciências Biológicas. Pós-graduando em Linguagens e Artes e em Educação Ambiental e Sustentabilidade. Membro do Núcleo de Pesquisa em Educação e Cibercultura (NUPEC-IFPA), também é pesquisador do Instituto COJOVEM, além de Bolsista PIBIC do Museu Emílio Goeldi e educador popular na Rede Confluências.
Roberta Brandão
Jornalista e publicitária com mestrado em Comunicação da Amazônia. Atua como fotógrafa, produtora, ativista cultural e comunicadora na Amazônia. Roberta também se identifica como carimbozeira, batuqueira e mãe de Gaitán, além de ser uma mulher na Amazônia. Seu trabalho inclui assessoria de comunicação, educação popular e contação de histórias na região amazônica.
Tale Campos
Publicitário e influenciador. Fala sobre turismo e cultura em Belém, Pará e região. Mora em Ananindeua, região metropolitana de Belém, de onde grava seus conteúdos para o Instagram, impulsionando o turismo e a economia.
Nice Tupinambá
Jornalista com pós-graduação em Marketing e mestranda de Direito. É ativista indígena do povo Kamuta Tupinambá do rio Tocantis-Cametá, um povo em afirmação de identidade. Fundou o instituto Nossa Voz e é curadora da casa Ikeuara da Amazônia, o primeiro espaço de arte e cultura indígena de Belém. Nice vem de uma trajetória política no jornalismo investigativo, trabalho que lhe rendeu ameaças e perseguição. Hoje, através de sua rede pessoal, continua o ativismo e produz conteúdo para redes sociais com parcerias de marcas e produtos que tem compromisso com a sustentabilidade, transição energética e que valorizam os povos originários e da Amazônia.
Tarcísio Gabriel
É artista visual não-binárie, natural de Belém do Pará, com graduação em Artes Visuais pela UFPA, formação técnica em Teatro pela ETDUFPA e Direção Teatral pela SP Escola de Teatro. Co-escreveu e dirigiu o curta MENINX (2017), premiado com melhor elenco na 1ª Mostra SESC de Cinema do Pará e obteve menção honrosa no 3º Festival Toró. Em 2023, dirigiu o Web Reality Show Dinastia Drag do Coletivo NoiteSuja. Atualmente exerce as funções de direção, direção de fotografia, produção e preparação de elenco e edição de vídeo em curtas e longas-metragens.
Emilly Cassandra
Atriz, educadora social e ativista dos direitos humanos. Como estudante de Letras Libras da Universidade Federal Rural da Amazônia, Emilly tem aprofundado seu conhecimento em linguística e cultura surda. Ela é membro da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, do Grupo de Resistência de Travestis e Transsexuais da Amazônia, do Comitê de Combate à LGBTfobia e do Conselho de Segurança Pública do Estado do Pará. Ao longo de sua carreira, a atriz e educadora recebeu prêmios pelo seu trabalho, incluindo o Prêmio de Cinema Negro Zélia Amador de Deus em 2020, o Prêmio de Luta Trans do Ano pela revista Vip’s Pará no mesmo ano, e a homenagem pela luta contra a LGBTfobia no Prêmio de Direitos Humanos da SDDH em 2023.
Thiago Maiandeua
Liderança Tupinambá da ilha de Maiandeua, no Pará. Reconhecido como jovem protetor dos oceanos e dos rios pela embaixada da França no Brasil, graduando em ciências agrárias e fundador do Centro Acadêmico de Desenvolvimento Rural da UFPA; Atual comunicador e coordenador executivo da Rede Cuíra.