‘Entendeu ou quer que eu desenhe?’

Romper paradigmas. Quebrar tabus. Causar estranhamento. Se expressar de forma livre, a partir de diversas formas, conteúdos e traços. Essas são as táticas da nova geração de mulheres cartunistas, que vêm promovendo uma verdadeira revolução no campo das artes gráficas no Brasil. A meta: ocupar um espaço artístico de tradicional expressão e contestação política na história do país. A principal arma: as redes sociais.

Ilustração de Jéssica Lisboa, do coletivo Girl Gang
Ilustração de Jéssica Lisboa, do coletivo Girl Gang

 

Os quadrinhos sempre foram um espaço histórico de dominação masculina. No mundo todo, salvo raras exceções como a iraniana Marjane Satrapi, até pouco tempo era a partir da visão masculina que a mulher se via nas artes gráficas. Foram diversas as representações femininas criadas, desde a inteligente e crítica Mafalda (de Quino) e a libertária Rê Bordosa (de Angeli), até as super heroínas sexualmente  objetificadas e seguidoras de um padrão de beleza absurdo imposto por cartunistas pop como Stan Lee. Essa situação, no entanto, vem mudando com uma verdadeira profusão de cartunistas levantando suas vozes e canetas. O movimento acontece em diversos níveis, seja através da criação autônoma de artistas como Chiquinha e de coletivos como o Girl Gang, seja com a divulgação de iniciativas como o Mulheres nos Quadrinhos.

Assim como outras mulheres de sua geração, Roberta Araújo, de 22 anos, viu nos quadrinhos uma oportunidade de libertação. Presa no ambiente acadêmico das Belas Artes, ela criou uma página no Facebook para se divertir compartilhando ilustrações e quadrinhos de que gostava. As imagens compartilhadas traziam sempre o ponto-de-vista das mulheres. Hoje, o Mulheres nos Quadrinhos (MnQ) tem quase 100 mil curtidas no site e em breve vai virar um livro. “A página começou a criar vontade própria, as meninas começaram a sentir que a página era um lugar onde poderiam apresentar seus trabalhos a outro público”, conta Roberta.

Pessoas de diferentes idades, ideologias e gêneros, de todos os estados do país, estão entre os seguidores do MnQ. Entre os temas preferidos das cartunistas, flutuam desde críticas sociais e protestos contra a opressão à mulher até questões mais intimistas relativas ao sexo, ao amor e a dilemas internos, formando um vendaval de traços, cores e formatos.

Agora, O MnQ vai ganhar uma edição impressa, financiada de forma coletiva, por meio do site Catarse. Com a curadoria de Roberta, 23 autoras e um coletivo de cartunistas foram selecionadas para compor dois livros. A organizadora explica a seleção: “São pessoas com quem eu tenho um certo contato desde o começo, e elas têm os trabalhos mais curtidos e compartilhados pelo público”. Mais de 400 pessoas financiaram o projeto, que ultrapassou em oito mil reais a meta dos 15 mil necessários para a produção dos livros.

Além da libertação, os quadrinhos e ilustrações são uma forma eficaz de empoderamento feminino, especialmente com a ajuda das redes sociais. “Raramente vai ter alguém que passa por um quadrinho sem dar um lida. Então, se de repente aparece um contra o machismo na timeline de um machista, dificilmente ele não vai ler, e aí já foi tocou ferida”, resume Roberta. “A cada dia isso está mais visível, é bem aquela história de ‘entendeu ou quer que eu desenhe?’”, completa.

Criação e liberdade

Recentemente, o crowdfunding ajudou na concretização de outro projeto relacionado às mulheres cartunistas: o Lady’s Comics, site que reúne trabalhos, entrevistas e artigos sobre o assunto. “HQ não é só para o seu namorado”, diz o slogan de apresentação da página. Ideia da jornalista e estudante de Artes Visuais Mariamma Fonseca, o site é gerenciado de forma coletiva, por um grupo de mulheres.

Em outubro do ano passado, elas realizaram um encontro em Belo Horizonte/MG, para discutir temas como erotismo, webcomics, pesquisa de personagens e a transgressão da representação feminina nos HQs. O evento também envolveu oficinas, intervenções e uma feira livre para a venda de quadrinhos. No Catarse, foram mais de 20 mil reais arrecadados, ultrapassando os 16 mil previstos. Ainda não há previsão de expandir o encontro para outros estados, mas Mariamma dá o recado: “se alguém tiver interesse em expandir o encontro, podemos conversar!”

Para a jornalista, “os quadrinhos são um instrumento de criação e de liberdade, e muitas mulheres se encontram nessa arte por isso.” Ela cita o trabalho das cartunistas Carol Rossetti e Gabi LoveLove6 (ver abaixo), que tratam de temas como a sexualidade feminina. “Elas são provas de como os quadrinhos não só colaboram no empoderamento das mulheres, mas também dão um salto para outras discussões que nos envolvem.”

E quanto à representação das mulheres nos HQs, especialmente nas revistas de super-heróis, é possível prever um futuro em que a forma objetificada com que somos retratadas acabe?  “Eu acho impossível, porque há um público que gosta disso”, sentencia Mariamma.  “Mas podemos continuar questionando esses estereótipos, expor mais como queremos ser representadas e principalmente: criar. Queremos mais mulheres desenhando, escrevendo e colocando novas histórias na roda”, completa.

Conheça algumas cartunistas do novo cenário das artes gráficas:

Chiquinha

chiquinha

A porto-alegrense Fabiane Bento Langona é formada em Jornalismo, mas trabalha oficialmente como cartunista e ilustradora. Desde 2013, seus quadrinhos são publicados toda segunda-feira no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, junto com as criações de mais quatro cartunistas mulheres. O trabalho da artista já apareceu também em revistas como TPM, Caros Amigos e Le Monde Diplomatique. Vida sexual, dilemas, ansiedades, anseios e críticas irônicas à sociedade são alguns dos temas retratados em suas obras.

Laerte

laerte

Aos 63 anos, Laerte Coutinho é uma das principais cartunistas do país. Parte da geração de ouro dos quadrinhos no Brasil, junto com Angeli, Henfil e outros nomes, Laerte é um expoente da resistência à ditadura militar, época em que ainda não se definia como mulher. A cartunista começou a se entender como transgênero há 10 anos. Em 2009, assumiu publicamente sua identidade feminina, a partir de tirinhas publicadas no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo. As obras da cartunista falam de política e contestação social – como já fazia desde os anos 70, em revistas como O Pasquim e Balão -, além de apresentarem crônicas do cotidiano. A artista criou personagens como Deus, os Piratas do Tietê e a travesti Hugo Baracchini.

Lovelove6

lovelove6Feminista e estudante de Artes Plásticas, Gabriela Masson publica seus quadrinhos de forma independente, em redes sociais, revistas alternativas e zines. Sua principal criação é a Garota Siririca, personagem que fala sobre sexualidade feminina e libertação, tocando em tabus como a masturbação. Seus quadrinhos envolvem também assuntos mais intimistas, como desilusões amorosas, além de críticas irônicas ao machismo.

Carol Rossetti

carol rosseti

A artista mineira fez uma série de ilustrações que se tornou viral nas redes sociais. De forma minimalista, os desenhos falam de machismo, sexualidade e auto-estima, a partir de micro histórias de diferentes mulheres. “Eu sempre convivi com uma série de pequenas restrições cotidianas sobre meu corpo e o das tantas mulheres que fazem parte da minha vida, e depois de um tempo isso começou a me incomodar. Esse controle é tão parte da nossa cultura que nem sempre nos damos conta de como ele é cruel e do quanto restringe nossas escolhas pessoais”, resume. As ilustrações podem ser compradas no site da artista.

 

 

*Reportagem originalmente publicada na revista Sextante 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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