Ilhota: o bairro com enchentes de contos

O Nonada continua a série de reportagens Percurso Negro, baseada no projeto Territórios Negros e no Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre.

Visibilidade é a intenção desta série de reportagens sobre pontos de cultura negra em Porto Alegre. São poucos os lugares que têm reconhecimento. Mesmo sem grande prestígio, a Ilhota – área onde passa a Av. Erico Verissimo, entre a Av. Ipiranga e a Praça Garibaldi, atualmente – conta com homenagens póstumas em forma de logradouros e edificações. O Centro Municipal de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues (CPC), o Ginásio Osmar Fortes Barcellos (Tesourinha) e a Praça Lupicínio Rodrigues são os exemplos. Apesar da lembrança, muitos que passam pelo bairro não imaginam que aquele lugar era cercado de água, sofria constantemente com inundações, era discriminado pelo resto da cidade, e, mesmo assim, abrigava histórias fantásticas.

Geografia: o lado histórico

imagem51701
Foto: Porto Alegre Guia Histórico/reprodução

A Ilhota surgiu após uma obra da Intendência Municipal de Porto Alegre, que foi realizada do final de 1904 ao início de 1905. O objetivo do intendente José Montaury (1858-1939) era de dar maior vazão a dois arroios que estavam atingindo ruas da região, como a Rua Arlindo (região do Colégio Protásio Alves à Praça Garibaldi). A memória popular optou por chamar esses arroios de Dilúvio e Cascatinha, porém eles tiveram outros nomes. Arroio Jacareí, Arroio do Sabão, Arroio da Azenha, Arroio Dilúvio, Riacho e Riachinho foram as alcunhas do primeiro. Enquanto Arroio das Águas Mortas, Cascata e Cascatinha foram do segundo. Com o término da obra, criou-se uma região ilhada, mas bem localizada, próxima do centro da Capital. Com o tempo, a área sujeita a inundações atraiu pessoas que não tinham condições de morar na parte urbana, mas que tinham interesse em ficar perto do coração da cidade.

A Ilhota ocupava o terreno que, hoje, vai da Praça Garibaldi (na esquina das avenidas Venâncio Aires e Érico Verissimo) até a Av. Ipiranga. Abrangendo também a área entre a Av. Gal. Lima e Silva, e a Av. Getúlio Vargas. Conforme Aldovan Moraes, sociólogo do Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (Demhab), a Ilhota se baseava em duas ruas. “Houve uma troca entre as ruas Olavo Bilac e Lobo da Costa. Em 1911, a curva da Rua Lobo da Costa, cruzando o arroio, passava a se chamar Rua Ilhota. E o final da Rua Ilhota tinha um esquema de cruz, um formato de “T”. O “T” se chamava Travessa Baptista. Então, a Rua Ilhota era o segundo nome de um logradouro. O que estivesse dentro da região [Ilhota] era Rua Ilhota e Travessa Baptista, e o que estivesse fora era Lobo da Costa, atual Olavo Bilac. A Rua Ilhota era, simplesmente, a continuação ou final da Lobo da Costa”, explica.

Porto Alegre foi a primeira cidade do país a ter um Plano Diretor. Em 1914, o arquiteto João Moreira Maciel (1877-?) propôs um projeto que tentava organizar o crescimento da cidade, o Plano Geral de Melhoramentos. Apesar do projeto centenário, ele foi fundamental para capital gaúcha. Muitos pontos saíram da cabeça de Maciel, como a Perimetral Loureiro da Silva, a Av. Mauá (que era Av. do Porto), Av. Júlio de Castilhos, Av. Edvaldo Pereira Paiva (Beira-Rio), etc. Entre eles, a canalização do Arroio Dilúvio, que mudaria totalmente a Ilhota. Levaram anos para a mudança acontecer, só em 1939 a prefeitura começou a executar suas ações práticas.

A Ilhota se tornou um bairro mítico de Porto Alegre, lendas se criaram naquela porção de terra cercada por água. Na noite de 16 de setembro de 1914, nascia um menino que se tornaria o seu morador mais nobre, Lupicínio Rodrigues (1914-1974), o Lupi.

Lupicínio Rodrigues: o lado boêmio

Lupi começou a cantas suas histórias na Ilhota e as cantou por todo país (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)
Lupi começou a cantar suas histórias na Ilhota e as cantou por todo país (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)

O morador mais ilustre da Ilhota nasceu em 1914, às 21h30min de uma quarta-feira, dia 16 de setembro. Lupi veio ao mundo pelas mãos da parteira-benzedeira Júlia “Dona Quimbá” Garcia, em um casebre na Travessa Baptista, nº 97. Sua vida foi recheada de contos – e como é sabido: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Uma das lendas está no seu nascimento. Há quem diga que, no dia em que ele começou sua trajetória no mundo, chovia muito, tanto que a parteira chegou de barco. Seria o início perfeito para um livro: o personagem mais famoso da Ilhota nascendo diante de um temporal.

O pesquisador e jornalista Marcello Campos conta essa e outras histórias na biografia Almanaque Lupi (confira nossa entrevista com o autor). A vida de Lupicínio está nas páginas escritas por Campos, que conheceu seu perfilado exercendo sua profissão. “Lupicínio e suas músicas estão no imaginário coletivo gaúcho, então, desde muito cedo, a gente acaba ouvindo aqui e ali. Eu comecei a ter mais contato com a obra e com a trajetória dele em meio às minhas atividades de pesquisador. Isso de dez anos pra cá, mais ou menos. E, principalmente, depois que escrevi as biografias do Alcides Gonçalves (parceiro e primeiro intérprete a gravar o Lupi em disco) e do Johnson (melhor amigo)”, conta.

Lupicínio foi o quarto dos 21 filhos de Abgail e Francisco e sempre gostou de música. O menino, que vivia assoviando, teve dificuldades na escola devido ao hobbie. Aos 14 anos compôs “Carnaval”, que foi sucesso anos mais tarde junto do bloco Predilectos. Da sua própria rua, saía o bloco Divertidos Atravessados, que reunia sua família e seus vizinhos. Lupicínio era compositor, diretor de bateria e cantor do bloco. Mesmo jovem, ele já conhecia boemia, estilo de vida muito próximo por morar na Ilhota. Os assovios do cantor gaúcho tinham influência dos fluminenses Mário Reis (1907-1981) e Noel Rosa (1910-1937).

O sucesso não demorou a aparecer. Apesar de se sair bem com marchinhas e sambas, Lupicínio Rodrigues é conhecido como o rei da dor-de-cotovelo, expressão que possui a conotação que conhecemos graças a ele. Nos anos 30, suas músicas baseadas em desilusões amorosas ganharam fama, como “Triste História” e “Se Acaso Você Chegasse”. Lupi ganhou notoriedade, chegando a ter projeção nacional. A Ilhota ficou pequena para ele, que se mudou da Travessa Baptista aos 30 anos.

Além dos bares, Lupi acompanhava futebol. Seu pai era dono do Rio-Grandense, um dos times que participava dos campeonatos da antiga Rua Arlindo, a Liga da Canela Preta.

Liga da Canela Preta: o lado negro do futebol

 Foto do 8 de Setembro, clube da Colônia Africana, atual bairro Rio Branco (Foto: Arquivo Jayme Moreira da Silva)
Foto do 8 de Setembro, clube da Colônia Africana, atual bairro Rio Branco (Foto: Arquivo Jayme Moreira da Silva)

Em Porto Alegre, de 1903 a 1908, existiam dois times na cidade: o Fussball Club Porto Alegre e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, ambos privados para aqueles que tinham ascendência germânica. O esporte, ainda novo no país, era elitista e não admitia a participação de negros em seus times. Em 1909, foi fundado o Sport Club Internacional com a ideia de que “todos” poderiam jogar. Entretanto, foi só na década de 20 que negros começaram a fazer parte da grande liga da Capital.

O Internacional tinha um campo na Rua Arlindo, do qual não usufruiu, por causa das constantes inundações, típicas da Ilhota. O espaço ficou sem dono, até que em 1910 foi encontrado uma utilidade para esse campo. Com a intenção de reunir jogadores oriundos das camadas menos favorecidas – principalmente os negros que não eram aceitos nos clubes da época –, foi criada a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense, popularmente denominada de Liga da Canela Preta.

A liga era composta por nove clubes, cuja origem se restringia a espaços ocupados pela comunidade negra, como a Cidade Baixa, a Ilhota, a Colônia Africana (bairro Rio Branco) e o Areal da Baronesa. 8 de Setembro, Rio-Grandense, Bento Gonçalves, Primavera, 1º de Novembro, União, Palmeiras, Aquidabã e Venezianos disputavam os jogos do campeonato, até então invisível para a sociedade.

Os grandes rivais da liga eram o Bento Gonçalves e o Rio-Grandense. O Bento Gonçalves era um time majoritariamente de negros, formado por engraxates e outros profissionais, e foi o primeiro clube de negros a excursionar pelo interior do Rio Grande do Sul. O Rio-Grandense era um clube de mulatos (negros com tom de pele mais claro), chamados de “mulatinhos cor-de-rosa” pelos outros times, e era formado por funcionários públicos e de hotéis. Era o time da família Rodrigues da Ilhota.

Osmar Fortes Barcellos, o Tesourinha (Foto: CBF)
Osmar Fortes Barcellos, o Tesourinha (Foto: CBF)

Em 1922, a Associação Porto-Alegrense de Desporto (APAD) criou uma segunda divisão, popular Liga do Sabão, para “dar chance” aos clubes da Liga da Canela Preta. Mesmo vinculada à entidade esportiva, o torneio secundário não dava direito à promoção para a primeira divisão. A segregação continuava a frequentar os campos de futebol de Porto Alegre. Porém, os jogadores negros começaram a chamar a atenção dos times elitistas. Em 1928, o Internacional contratou o zagueiro negro Dirceu Alves. Também nesse ano, o Sport Club Americano foi campeão citadino e estadual com dois jogadores negros: o goleiro Alegrete e o meio-campista Barulho. Apesar de relatos que provam o contrário, oficialmente, só em 1952 que o Grêmio teve um atleta negro, Osmar Fortes Barcellos, mais conhecido como Tesourinha. O jogador, apelidado por sua época de folia no bloco de carnaval Os Tesouras, já havia se consagrado no rival, na época do “Rolo Compressor”, e na seleção brasileira.

A “oportunidade” dada pela APAD desmantelou a Liga da Canela Preta, pois não havia remuneração nos times compostos por negros. Participar da segunda divisão da Liga Metropolitana era uma chance de conseguir dinheiro, chamando a atenção dos maiores clubes da cidade. Acredita-se que a Liga da Canela Preta sobreviveu até a década de 30.

Muitas informações sobre a história de racismo no futebol foram perdidas, segundo Carlos Roberto da Costa Leite, coordenador e pesquisador do setor de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. “A dificuldade quanto ao histórico da Liga da Canela Preta se deve à enchente de 1941, na qual se perderam muitos dados documentados. Não existe uma pesquisa que possa resultar num trabalho definitivo sobre esse assunto, pois existem lacunas que a oralidade tenta suprir, mas não comprova na forma documental. Isto é produto da maneira quase invisível como foi tratada a presença do negro pela historiografia oficial. O mito da democracia racial foi, ou melhor, é uma farsa”, analisa.

Em 6 de abril de 1963, Lupicínio Rodrigues escreveu uma crônica na Coluna Roteiro de um Boêmio. No texto, ele fala o porquê de ser gremista e fala como começou a Liga da Canela Preta. O clube de seu pai, o Rio-Grandense, se organizou para participar da Liga Metropolitana, porém foi vetado pelo Internacional, que ficou conhecido como o “Clube do Povo”. O fato fez com que os integrantes do Rio-Grandense apoiassem o rival do Inter, o Grêmio. E isso passou de geração, Lupi era sócio honorário gremista e compôs o hino do clube em 1953.

Na quarta-feira, 10 de junho de 2015, foi aprovado o projeto de lei do vereador João Bosco Vaz (PDT) que inclui os jogos do Grupo Canela Preta no Calendário de Eventos e no Calendário Mensal de Atividades da Capital. A ideia é relembrar a Liga da Canela Preta em jogos realizados no sábado em que terminarem as atividades da Semana da Consciência Negra, em novembro. Em 2014, mais de 1,5 mil pessoas participaram do evento realizado no Campo do Periquito, no bairro Vila Nova.

Projeto Renascença: o lado apagado da história

A canalização do Arroio Dilúvio fez parte do Plano Diretor (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)
A canalização do Arroio Dilúvio fez parte do Plano Diretor (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)

Um dos objetivos dos governos brasileiros na metade do século XX era o de fazer uma limpa em suas grandes cidades. Com o fim da escravidão, em 1888, os negros não tiveram nenhum tipo de assistência para adaptação à sua nova condição, a de “liberdade”. Então, a grande maioria foi se realocando em lugares ruins de morar, porém próximos da zona urbana. A exemplo de outras cidades, a região da Ilhota seguiu essa linha de desenvolvimento. “Eles preferem morar ali, sem pagar aluguel, porque fica próximo de locais de trabalho. Essa situação é extremamente comum na época. Preferem viver mal ali, mas podendo ir a pé para local do trabalho, ir a pé para unidades sanitárias gratuitas, centro modelo, etc. Tudo ali fica acessível, ao mínimo de custos”, contextualiza o sociólogo do Demhab.

Como não existem muitos documentos sobre a Ilhota, lendas surgiram para contar sua história. Falam em uma Ilhota gigantesca. Entretanto, em 1935, o número de domicílios na região não era expressivo, aproximadamente 78. E é errôneo dizer que a Ilhota tratava-se de uma única vila. Foram diversos conjuntos que formaram esse território. Onde hoje se situa o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, ficava a Vila Piratini. Na década de 40, os moradores dessa vila foram mandados para as proximidades da Rua Arlindo, formando a Vila DTO. Essa era uma das áreas irregulares que compunham a Ilhota, como a Cabo Rocha, a Araquilândia, o Cantão da Arlindo e a Vila dos Eucaliptos.

Foto area da Ilhota na década de 1940, quando começaram as ações da prefeitura para modificar a região (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)
Foto aérea da Ilhota na década de 1940, quando começaram as ações da prefeitura para modificar a região (Foto: Marcello Campos/arquivo pessoal)

A prefeitura de Porto Alegre começou a mudar a região em 1939, medida que se intensificou após as enchentes de 1941. De acordo com o livro Porto Alegre: Guia Histórico, de Sérgio da Costa Franco, no Decreto Municipal nº 333, de 06/07/1946, 77 construções, localizadas entre a Rua Ilhota e a Travessa Baptista, foram demolidas em função da canalização do Riacho, além do saneamento e urbanização da zona. Em 1948, conforme os registros Demhab, 295 pessoas moravam na Ilhota (o Cantão), num total de 87 casas.

A reportagem Ilhados na Miséria, escrita em 2011 por Ariel Fagundes e Leandro H. Rodrigues para o Jornal Tabaré, contou a história da Ilhota. Como diz no texto: “Em novembro de 1954, foram retiradas 704 malocas da Vila DTO, mas foi durante a ditadura que o processo se intensificou. Em 1967, o Demhab, com a ‘gentil’ ajuda do Exército, retirou mais de mil casas da Ilhota e levou seus moradores para inaugurarem a recém criada Restinga”, informa. Aldovan também diz que além Restinga, os moradores da Ilhota foram designados a morar também na região de Mato Sampaio (bairro Bom Jesus) e São Gabriel (bairro Camaquã).

Meio século depois de apresentado o Plano Maciel, o prefeito Guilherme Vilella pôs em prática o Projeto Renascença. Por meio de uma iniciativa do Governo Federal, a Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (Cura) tirou a Ilhota do mapa de Porto Alegre, sobre o pretexto de estar recuperando áreas deterioradas da cidade. Assim foi construída a Av. Erico Verissimo e seus arredores. O CMC foi inaugurado em 1978, e 1986, durante o governo de Alceu Collares, passaria a homenagear Lupicínio Rodrigues.

Lupicínio com Hamilton Chaves em frente à casa dos Rodrigues na Ilhota, em 1952 (Foto: reprodução)
Lupicínio com Hamilton Chaves em frente à casa dos Rodrigues na Ilhota, em 1952 (Foto: reprodução)

Lupi não viu sua Ilhota sumir totalmente do mapa de Porto Alegre em 1979, muito menos viu ela voltar pelo projeto de lei da Mesa Diretora da Câmara Municipal. Porém o Almanaque Lupi apresenta uma canção inédita do cantor, uma música de 1937, mas que cabe – muito bem – nessa reportagem de 2015. Chama-se “Ilhota”:

Ilhota, minha favela moderna,

Onde a vida na taberna

É das melhores que há.

Ilhota, arrabalde de enchente

E que nem assim a gente

Pensa em se mudar de lá.

Ilhota, do casebre de madeira,

Da mulata feiticeira,

Do caboclo cantador.

Ilhota, a tua simplicidade

É que dá felicidade

Para o teu pobre morador.

Na tua rua,

Joga-se em plena esquina.

Filho teu não se amorfina

Em sair pro batedor.

Nem mesmo a “justa”

Vai visitar seus banhados,

Pra não serem obrigados

A intervir em questões do amor.

Compartilhe
Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
Ler mais sobre
Culturas populares Memória e patrimônio Notícias

Dossiê propõe registro do Hip-Hop como patrimônio cultural do Brasil 

Comunidades tradicionais Processos artísticos Resenha

Do ventre da árvore do mundo vem “O som do rugido da onça”

Processos artísticos Reportagem Resenha Veredas

A insurreição das musas: Bárbara Santos na Festipoa Literária