“A arte é incontestável, vai ter carnaval” – entrevista com Caren Nurimar, da União Carnavalesca Popular

Por Laura Galli

Caren Nurimar é um nome conhecido no meio do Carnaval de Porto Alegre. É costureira e carnavalesca que luta diariamente pela festa popular e pela ocupação do Porto Seco. No início de 2017, frente à negativa do governo Marchezan de disponibilizar recursos para o desfile (confira o histórico do fim da entrevista), ela e outros membros de escolas de samba da cidade organizaram a União Carnavalesca Popular que, entre outras ações, realizou a Subida da Borges em prol do carnaval competitivo da cidade. Em nossa conversa dia 17 de novembro na Casa de Cultura Mario Quintana, Caren falou sobre a situação para 2018 e sobre o forte preconceito existente contra essa importante manifestação cultural de uma cidade que não quer ver suas manifestações populares e da comunidade negra.

A luta pela destinação de verba pública para o carnaval continua. No dia 29 de novembro, a Câmara de Vereadores aprovou uma emenda à Lei Orçamentária Anual (LOA), que garante R$ 1 milhão para a infraestrutura das arquibancadas no sambódromo e a organização dos desfiles do Carnaval 2018.  A LOA, no entanto, não garante o empenho desses valores, apenas delimita o teto que a prefeitura poderá investir em cada ação. Isso significa que Marchezan tem autonomia até mesmo para não destinar nenhum recurso ao Carnaval. Neste momento de cerceamento de direitos e de luta pelo que é público, é preciso manter a atenção para garantir ao tradicional carnaval da cidade seu direito de existir e resistir. Confira a entrevista abaixo:

Caren é uma das principais lideranças da UCP (Foto: arquivo pessoal)

Nonada – Então, Caren, como tu enxergas a relação do carnaval com as prefeituras, com o investimento da prefeitura para o carnaval?

Caren – Bom, a armação da avenida sempre foi feita pela prefeitura, a vida toda. É uma festa da cidade de Porto Alegre. A prefeitura é obrigada, na minha opinião, a apoiar e a fomentar, sim. Então a gente pensa em fazer uma campanha que os presidentes [das escolas] também organizem tudo, papelada, pra procurar projetos, lei Rouanet, procurar incentivo com empresa privada também… Mas a prefeitura tem sua carga, sim.

Nonada – E para 2018, como está a situação?

Caren – Zero. O Marchezan se põe irredutível. E na realidade, da prefeitura, a gente só queria a armação do Porto Seco, a montagem da estrutura. Porque não é tão fácil: é arquibancada, o HPS, a Brigada Militar, tudo tem que ter separadinho, os Bombeiros e a praça de alimentação. Porque entende-se que as pessoas vão ficar lá no mínimo oito, dez horas, e elas têm que se alimentar, têm que beber, têm que ter uma infraestrutura. É digno, né? E se acontece alguma coisa tem que ter o HPS, e tem que ter ali pelo menos um “QG” onde os Bombeiros e a Brigada possam guardar o material, estacionar as viaturas. É uma infraestrutura grande, custa caro. E não tem como a Liga (Liespa) fazer, a gente já esse ano, 2017, a gente já arcou com essas custas.

Quadra lotada da Imperadores na apresentação da IAPI (Gisele Endres/Nonada)

Nonada – Foi aí que começou a se articular a UCP, né?

Caren – Exatamente. Foi quando ele [prefeito Marchezan] disse assim: não tem. Então, por exemplo, hoje eu vim caminhando, passei pela Feira do Livro, vi a armação… Tu vê, em relação a anos anteriores, ela está muito reduzida. No tradicionalismo também, e na festa de Navegantes, que são as quatro festas, ou manifestações culturais, da cidade de Porto Alegre que eles têm por obrigação de arcar: Navegantes, Carnaval, o tradicionalismo e a Feira do Livro [organizada de forma autônoma pela Câmara Rio-Grandense do Livro]. Pode até reduzir, diz assim, lá pra Navegantes é R$90 mil. R$90 mil! É a menor. Bom, então não tem 90, mas tem R$50 mil, ou então o mesmo pro carnaval: precisa de R$2 milhões para as arquibancadas, tá então nós temos R$1 milhão e o resto vocês se virem. Mas ele chegou e foi taxativo: não tem. É isso que ele diz e continua dizendo.

A UCP começa da nossa indignação: como é que a sociedade é tão preconceituosa, nos marginalizando, sendo que o carnaval, esse que a gente faz, o competitivo, ele tem toda uma cadeia produtiva. As pessoas vivem e sobrevivem com o dinheiro do carnaval. Famílias inteiras vivem com aquele dinheiro. Movimenta o comércio, desde uma simples agulha, a linha, tecido, isopor, ferro… Ferragens ganham com isso, madeireiras ganham com isso, com compensado… e as pessoas ganham para estar lá. Ninguém chega no carnaval de paraquedas. Um serralheiro tem que ser um serralheiro destinado para o carnaval, tem que ter a técnica. Uma pessoa que tem um atelier, que nem eu, tem que ter a técnica, não é como fazer uma roupa normal. A pessoa que vai adereçar, ela tem que ter pelo menos uma veia artística que ela consiga pegar uma cabeça, um esplendor, usando as cores e tudo mais, e dar àquilo uma noção artística, senão fica uma colcha de retalhos. Tem os figurinistas, que são desenhistas de mão cheia, gabaritados, aquelas pessoas ganham para isso. Ganham para fazer samba enredo, para tocar seu cavaco, seu violão, para confecção de instrumentos.

Eu não sei o que a pessoa que critica pensa, como acha que aquilo chega lá na avenida. Quando tu compras um pote de sorvete no supermercado, tu não imagina que aquilo ali caiu do céu dentro do freezer do mercado, né?  Teve o leite da vaca, o açúcar, o cara que fez o pote plástico, teve todo o processo. Imagina o carnaval?! E as pessoas não acreditam que aquilo ali é todo um ano de trabalho. Tem que ser habilidoso, tem que saber gerenciar e trabalhar com o tempo. Isso é uma coisa que a gente aprende e que talvez outros setores da sociedade não conseguiriam fazer.  São coisas que eu fico muito chateada, é muita estupidez. As pessoas são estúpidas, ignorantes, desconhecem e também não procuram conhecer. Acham que é violento, mas não existe nenhuma ocorrência, nem da Brigada, nem do HPS. Não dá ocorrência.

Bateria do Bambas com as mulheres à frente (Foto: Gisele Endres/Nonada)

Nonada – E sobre a interdição do Porto Seco no dia do desfile da Série Prata, este ano, tu acreditas que teve alguma motivação política?

Caren – Pois é, o Prata não saiu esse ano porque os bombeiros interditaram. Foi assim “vai lá e faz tudo como manda o figurino”. O Porto Seco é a céu aberto, que nem a quadra da Imperadores. Que tipo de incêndio vai acontecer lá que as pessoas não consigam fugir? Não tem parede. Depois daquela tragédia da boate Kiss, onde pessoas muito jovens morreram, com toda uma vida pela frente, centenas de pessoas, realmente tem que pegar pesado. Com os empresários, as pessoas que tem casa noturna, fechada,  qualquer tipo. Tu fica sem luz, tu fica desnorteado, a fumaça te desnorteia também. Só que aí a gente imagina um incêndio no Porto Seco e eu não consigo imaginar um incêndio que as pessoas não consigam evadir. É isso que não consigo imaginar, a possibilidade de incêndio existe, claro, é concreta, em qualquer lugar. Pra isso que a gente tem os bombeiros e o HPS. Agora, interditar uma área que já tinha passado uma Muamba antes? O que a coronel falava não batia com o que tinha acontecido… Ela dizia que já tava interditado desde o dia 23, se não me engano, antes da Muamba. Então não era pra passar a Muamba? Onde é que eles estavam? Eu fiz, foi a UCP que fez a lavagem da pista com os pais e mães de santo e os projetos na muamba.

Já no dia 24, quando eu cheguei lá no “QG” da Liespa na concentração um rapaz saiu gritando, um rapaz alto, negro, não sei quem é até hoje. Ele dizia “ô, tu acha que eu vou roubar uma caixa de som, tá ficando louco?”, aí eu disse “não, calma o que é que foi?”, e ele “eu só queria dar uma volta na pista e esse brigadiano me parou!”. Eu, de sangue doce, não podia imaginar o que estava acontecendo. Eles estavam lá desde as três horas da tarde do dia do desfile do Prata. Diz que eles caminhavam a pista toda e diziam “ó, tem um buraco aqui”, aí o pessoal tapava o buraco e vinham de novo “ah, mas tem outro buraco ali”… e assim eles foram. Foram matando no cansaço. “Ah, mas falta tantos extintores”. O pessoal mandou vir às pressas os extintores, penduraram. “Não, mas tem que ter um metro do chão”. Foram lá, mediram… No final, o pessoal da Liespa tava com chave de fenda modificando coisas. E cada vez que modificavam eles achavam outros problemas. Eles não chegaram e disseram tudo de uma vez, foram por partes.

Então é certo que a gente vive num estado que é preconceituoso, essa que é a verdade. Fora isso, por ser coisa da cultura negra, ainda existe um outro tipo de preconceito, que é velado. Claro que tu não pode admitir, ninguém diz “não gosto de negro, não gosto de gay, não gosto de prostituta”, tu não vai chegar ali na Farrapos e matar as gurias. Mas elas morrem. Mas os negros morrem. E continuam morrendo. É morador de rua que morre. Tudo isso por intolerância. O que é que querem contra nossa cultura? A gente não faz mal para ninguém. Bem pelo contrário, estamos confinados naquele quadrado lá. Nem na subida da Borges a gente fez mal pra ninguém. Nenhuma ocorrência, nada.

Eu entendo que o Porto Seco deve ser demarcado sempre que possível, é o nosso espaço, mas é difícil mobilizar as pessoas. Nós temos que mostrar nossa cultura, mostrar que ela é decente, que é bonita, valorizar, e convidar. Porque muitas pessoas que nos criticam não conhecem escola de samba, não conhecem nossa realidade. Então vamos convidar que essas pessoas estejam conosco, no Bambas, Imperadores, Restinga, na Imperatriz, no Império… No entorno do Porto Seco são sete comunidades. No meu entendimento, naquele espaço ali dá pra fazer muita coisa para a população, oficinas mecânicas, para a brigada, bombeiros, salas de aula, posto de saúde.

Quando tu bota os equipamentos da arquibancada, tem que botar segurança. Precisa de alguém que entre na prefeitura, entenda esse projeto e dê seguimento. Aí tu vai construir arquibancadas, colocar salas de aula, mas tem que ir pra lá. Os presidentes das escolas têm que fazer projetos, tem que ocupar o Porto Seco, fazer oficinas de instrumentos, fazer um pré-vestibular com os professores. Nós temos tantos profissionais no carnaval, pessoal da área da saúde, advogados, tanto que dá para aproveitar.

Nonada – E o carnaval do ano que vem, como vai ser?

Caren – Até agora nós temos um patrocinador, que cobre as custas da Band, da prefeitura zero. Essa que é a realidade até hoje. Pode ser que amanhã marquem uma reunião, algum empresário queira apoiar, mas por enquanto é isso. O carnaval hoje é zero, mais zero, mais zero: zero dos empresários, zero da Band, zero da prefeitura. E a previsão é que vai ser dia 24 de fevereiro o desfile.

Carnaval vai ter. Mas pode ser que seja uma descida da Borges. Vai ter carnaval. Mas talvez não seja no Porto Seco. Vai ter, mas talvez a armação do ano passado seja ainda mais enxutinha. Ano passado as pessoas já não foram pro Porto Seco. Os Bombeiros liberaram o sambódromo super tarde, até as pessoas chegarem já perderam as primeiras escolas a desfilar. Isso desanima, desgasta. Eu fiquei em estado de choque mesmo esse ano. Foi desumano aquilo ali, aquela dificuldade de entrar.

Um mestre sala e uma porta bandeira ensaiam muito para estar ali, se dedicam. É aquilo que a pessoa pode te oferecer, é a arte que as comunidades batalham pra ter. E a arte é incontestável.

União da Vila do IAPI se apresentando na quadra da imperadores (Foto: Gisele Endres/Nonada)

Histórico

Desde o início do ano a atual gestão da prefeitura de Porto Alegre vem causando diversos desgostos para a população e, mais do que isso, o sucateamento de equipamentos públicos da cidade em áreas como saúde, educação, transporte, e também a cultura. Dentre os aspectos que vem sendo negligenciados está também o carnaval, que mesmo com variações em diferentes conjunturas, há muito tempo vinha contando com apoio do município para organização e financiamento do desfile. Em 2017, contudo, essa situação mudou.

Embora o orçamento para infraestrutura do Porto Seco deste ano já estivesse previsto desde 2016, logo que assumiu seu mandato, em janeiro, o prefeito Marchezan afirmou categoricamente que não disponibilizaria a verba para a realização do carnaval. Posicionou-se desconsiderando todo um preparo de meses das escolas e toda a cadeia produtiva que a festa mobiliza. A muito custo, carnavalescos e carnavalescas, juntamente com a Liespa (Liga Independente das Escolas de Samba de Porto Alegre), lutaram pela montagem da estrutura no Porto Seco (arquibancadas, posto de saúde, posto da Brigada Militar, equipamentos de luz e som) e foi possível viabilizar os desfiles com apoio de uma empresa privada. É importante dizer que essa montagem provisória precisa ocorrer todos os anos, visto que até hoje nenhuma gestão deu seguimento às obras para tornar o sambódromo um equipamento cultural permanente da cidade, que poderia abrigar atividades durante todo o ano.

Os trâmites deste ano atrasaram a festa, que ocorreu no último final de semana de março, fora da data habitual. E mesmo com toda luta, a primeira noite de desfiles não aconteceu: a Série Prata não desfilou em função de uma interdição controversa feita pelos bombeiros na última hora, na noite do dia 24 de março. As escolas já estavam prontas para entrar na avenida e mostrar seus trabalhos, mas o desfile simplesmente não aconteceu, frustrando todo um ano de expectativas. No dia 25, após uma jornada desgastante de vistorias dos Bombeiros ao longo do dia e já com atraso no cronograma previsto para a noite, a Série Especial desfilou pela resistência do carnaval.

Agora estamos em início de dezembro e a situação para os desfiles de 2018 ainda é incerta. As escolas já estão definindo seus sambas-enredo, destaques e realizando atividades nas quadras, mas sem ter certeza de como vão desfilar e nem se haverá o tradicional desfile competitivo.

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Para se informar sobre o carnaval de Porto Alegre em outros veículos, acompanhe os canais:

Setor 1: http://www.setor1rs.com.br/
Tamu Junto: http://tamujuntobr.blogspot.com.br/
Camarote Cultural: http://www.camarotecultural.com.br/inicial.php?t=1
Rádio Reação: http://reacaofm.com/
Odir Ferreira (locutor oficial do carnaval de Porto Alegre): https://www.facebook.com/OdirFerreira

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