Pequena Memória para um Tempo Sem Memória #4 – A intervenção da ditadura militar na UFRGS

Anita Carneiro e Laura Galli

A coluna Pequena Memória para um Tempo Sem Memória busca expandir a conexão do público com a história de Porto Alegre e da ditadura civil-militar através da materialidade de locais pelos quais se passa cotidianamente. São ruas e prédios que possuem marcas – por vezes visíveis, por vezes invisíveis –  de um dos períodos de maior repressão no nosso passado recente. A cada edição, as historiadoras Anita Carneiro e Laura Galli abrem o mapa da cidade e apresentam um local marcado pela ditadura civil-militar em Porto Alegre.

Nosso ponto de partida, em setembro de 2020, foi o projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que inspirou a criação da coluna. Neste e no próximo texto, vamos tratar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Optamos por tratar dessa instituição devido às recentes notícias, como a investigação e punição de professores universitários por falar contra o governo Bolsonaro, que se assemelham aos fatos ocorridos no período ditatorial brasileiro. Assim, apesar dos avanços democráticos que o país viveu desde o fim desse período, parece-nos que ainda há um longo caminho para a liberdade de expressão e cátedra nos espaços universitários. 

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem seu campus mais antigo no centro de Porto Alegre, foi marcada de inúmeras formas pela ditadura civil-militar em episódios de repressão e resistência. Se de um lado houve muitas intervenções e um forte aparato de controle do pensamento, de outro lado as organizações estudantis e também docentes tiveram um papel fundamental em se contrapor ao regime ditatorial. Esta edição está dividida em duas partes: a primeira sobre os impactos da ditadura no âmbito institucional da Universidade, e a segunda, que será publicada em abril, trata dos movimentos estudantis e de resistência à ditadura.

“Extraordinária lição de civismo e de civilismo”: Aparelhamento universitário

Notícia sobre a lista de expurgos na Universidade em setembro de 1964 (Foto: Reprodução Sul 21)

Neste período, as formas de intervenção que foram instauradas na universidade deram-se principalmente em inserir pessoas alinhadas à ditadura nas posições mais altas da hierarquia universitária, como na reitoria. Iniciou-se um período de controle maior sobre professores, servidores e estudantes tidos como inimigos do regime, resultando na expulsão/expurgos de quem demonstrasse contrariedade à ditadura. 

Assim, em 1964, a UFRGS criou a Comissão Especial de Investigação Sumária (CEIS), instância que foi implantada em diversos órgãos públicos com a mesma finalidade. Essas comissões eram responsáveis por investigar infrações de funcionários. Em 1964, quatorze docentes participaram como investigadores na CEIS da UFRGS divididos em cinco subcomissões que eram subordinadas à Comissão Geral de Investigações, presidida pelo General Jorge Cesar Garrastazu Teixeira. Foram expurgados dezessete docentes de seus cargos na universidade, neste primeiro momento. Em 1969, outro ciclo de expurgos expulsou também estudantes.

Em 1968, o controle dentro da Universidade se completava com a criação da Assessoria de Segurança e Informações da UFRGS (ASI), chefiada pelo Coronel Natalício da Cruz Correa. A nomeação do militar foi realizada inicialmente como uma assessoria ao Centro de Processamento de Dados da universidade para comprar computadores. Contudo, na prática, teve um papel fundamental nas atividades de vigilância interna da UFRGS. A sala da ASI era a única que não possuía placa identificando o espaço e funcionava ao mesmo tempo que o gabinete do reitor, segundo Mansan (2009). Uma reportagem de 1979 analisada por Mansan (2009) informa que a ASI deixava de funcionar naquele ano, e o coronel passava a ser “assessor para outros assuntos”.

Durante o período da ditadura, as nomeações de diretores de faculdades e também da reitoria precisavam passar por autorização dos militares. Dessa forma, toda a estrutura da universidade foi controlada no intuito de realizar o aparelhamento da formação de educação superior com os ideais da ditadura civil-militar.

Monumento em homenagem aos funcionários, alunos e professores expulsos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao longo da Ditadura Civil-Militar Brasileira. Foi inaugurado em 2019 e se localiza em frente ao Anexo III da Reitoria no Campus Centro. (Foto: Flávio Dutra/Ufrgs)

Monumento em homenagem aos funcionários, alunos e professores expulsos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao longo da Ditadura Civil-Militar Brasileira. Foi inaugurado em 2019 e se localiza em frente ao Anexo III da Reitoria no Campus Centro.

É preciso lembrar, também, que a ditadura só teve sucesso em seus objetivos porque encontrou apoio de setores da população. Foi esse o caso do “Manifesto de Universitários Democratas”, publicado em 12 de abril de 1964 e assinado por acadêmicos da UFRGS e da PUCRS. O manifesto, além de aplaudir as Forças Armadas em sua ação contra o comunismo, ainda pedia a cassação de Juscelino Kubitschek e apoiava o Ato Institucional e a “Operação Limpeza”, que investigava possíveis atos subversivos de servidores públicos.

“Aplaudimos entusiasticamente as Forças Armadas que, num exemplo admirável de unidade e coesão, souberam dar ao Brasil e ao mundo uma extraordinária lição de civismo e de civilismo, interpretando as verdadeiras aspirações do povo brasileiro, que sempre foi pela Democracia, contra o Comunismo. Também aplaudimos os líderes civis do movimento revolucionário, governadores Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Nei Braga, Ildo Meneghetti e outros governadores.” (LIMA, 2013, p. 69)

Do Centro para a Margem: Surgimento do Campus do Vale

Quando a ditadura civil-militar brasileira foi instaurada, a Faculdade de Filosofia da UFRGS se localizava no Campus Centro na cidade de Porto Alegre, onde hoje é o prédio Anexo I da Reitoria. Neste local, considerado até então como uma “pequena universidade” dentro da UFRGS, por ter uma formação multifacetada, aconteciam as aulas dos cursos de humanas (além da Filosofia, História e Ciências Sociais), que tendo o pensamento crítico sobre a realidade como uma das características principais, acabava por ser também um dos espaços mais resistentes às políticas interventoras de censura na universidade. O ano de 1968 foi marcado por mobilizações estudantis por todo o mundo, e no Brasil também. Logo em março, o assassinato do estudante Edson Luis no Rio de Janeiro gerou diversas manifestações pelos meses que se seguiram. Nesse contexto de críticas ao conservadorismo e aos abusos da ditadura, em 27 de junho de 1968, ocorreu a ocupação da Faculdade de Filosofia, que durou 24 horas com mais de 700 estudantes participantes.

Faculdade de Filosofia da UFRGS no Campus Centro.
(Fonte: Portas Abertas UFRGS)

Além da Faculdade propriamente dita, outro espaço importante de convívio e conversas acaloradas sobre política e sociedade no Campus Centro da UFRGS, era o “Bar da Filô” (abreviação de Filosofia) que dividia o espaço com o Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt dos estudantes deste Instituto. Atualmente é o espaço ocupado pelo Bar do Antônio.

No entanto, em 1977, o Instituto de Filosofia foi transferido do Campus Centro para o novo Campus do Vale, nos limites da cidade de Porto Alegre com Viamão, juntamente com o curso de Letras. Acredita-se que tenha sido uma manobra política de desmobilização estudantil para retirar estes cursos do centro da cidade e, por consequência, para longe da reitoria da UFRGS. As manifestações estudantis, que antes ganhavam visibilidade pela localização, também ficavam prejudicadas. Como mencionado acima, professores foram destituídos de seus cargos por serem acusados de subversão e, em muitas aulas, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) disfarçados de estudantes, observavam o comportamento dos docentes e discentes para reportar aos órgãos repressores. Mesmo assim, o Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt foi um dos primeiros centros acadêmicos a consolidar a retomada da luta pela redemocratização e pela anistia dos presos e exilados. Percebemos, assim, que o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) foi um local de resistência e de silenciamento ao mesmo tempo no período ditatorial brasileiro.

Nosso percurso pelo mapa da cidade tratando dos impactos da ditadura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul continua na próxima coluna, em que abordaremos o movimento estudantil e as resistências ao regime.

Campus do Vale, UFRGS, na década de 70. (Fonte: Fotos Antigas RS)

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA

ADUFRGS. Universidade e Repressão: os expurgos na UFRGS, 2008.

ALMEIDA, Doris; LIMA, Valeska; SILVA, Thaise. A constituição da faculdade de educação/UFRGS em tempos de ditadura militar (1970 – 1985), 2013. Disponível em https://bit.ly/30D0qSc 

GUEDES, Paulo Coimbra; SANGUINETTI, Yvonne (Org.). UFRGS Identidade e Memória (1934-1994), 1994.

MANSAN, Jaime Valim. Os expurgos na UFRGS: afastamento sumário de professores no contexto da ditadura civil-militar (1964 e 1969). Dissertação de Mestrado PUCRS, 2009. Disponível em https://bit.ly/2X0xsL8

 

MANSAN, Jaime Valim. A ocupação da Faculdade de Filosofia da UFRGS (junho de 1968). In: V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: Produzindo história a partir de fontes primárias. ÁVILA, Vladimir Ferreira de (Org.). Porto Alegre: CORAG, 2007. pp. 311-326.

“Filosofia Dividida”. Jornal da Universidade, Setembro de 2010. Disponível em https://issuu.com/jornaldauniversidade/docs/ju_131_-_setembro_2010/7 

“Bar do Antonio foi reduto de militantes da resistência”. Jornal do Comércio, Abril de 2014. Disponível em http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=158633

 

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