Pequena Memória para um Tempo Sem Memória #1 – A memória, a História e o patrimônio na era digital

Anita Carneiro e Laura Galli

São tantas lutas inglórias

São histórias que a história

Qualquer dia contará

Os versos de Gonzaguinha nos inspiram neste texto que inaugura uma nova coluna do Nonada dedicada à memória e à história de Porto Alegre, especificamente no período da ditadura civil-militar. A seção Pequena Memória para um Tempo Sem Memória, que tem título da canção homônima do compositor, é baseada no projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre. A cada dois meses, as historiadoras Anita Carneiro e Laura Galli abrem o mapa da cidade e apresentam um local marcado pela ditadura civil-militar, pensando em expandir a conexão do público com a história de Porto Alegre através dos caminhos pelos quais se passa cotidianamente. Nesta estreia, contamos um pouco sobre o projeto que dá origem à coluna.

Caminhos da Ditadura em Porto Alegre

O projeto Caminhos da Ditadura é um mapa digital que tem como objetivo demarcar locais de memórias, resistência e repressão do período ditatorial brasileiro possibilitando um novo olhar sobre a cartografia da cidade. Uma visão em que as diversas camadas temporais presentes na capital gaúcha se interconectem ao tempo presente. Atualmente são mais de 200 locais mapeados, divididos em cinco categorias: ligados à repressão militar, ligados à repressão civil, ligados à resistência, ligados à memória da repressão e ligados à memória da resistência. O mapa surgiu em 2016 em uma disciplina da graduação em História (UFRGS). Sua expansão só foi possível por conta do incentivo das professoras Carmem Gil (FACED) e Caroline Silveira Bauer (IFCH) através de bolsas de monitoria, de Iniciação à Popularização da Ciência (CNPq-CAPES) e de Iniciação Científica (FAPERGS).

A inquietação para a construção desse mapa digital provém de que quase sempre o sinônimo de História do Brasil é o que aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o que acontece fora desse eixo é considerado “história regional”. Dessa maneira, no intuito de aproximar a temática da ditadura civil-militar da cidade de Porto Alegre e fazer ver os efeitos do regime em nossa cidade, o Caminhos da Ditadura nasceu e cresceu. Ademais, o mapa digital se torna um poderoso instrumento de pesquisa – por reunir diversos tipos de fontes e trabalhos desenvolvidos dentro do âmbito acadêmico e de ensino – por permitir que a pesquisa chegue às salas de aula na forma de uma tecnologia digital e também como recurso pedagógico para o/a educador/a.

Outro fator fundamental para a construção do mapa são as diversas memórias sociais que por vezes são transmitidas de maneira equivocada ou, até mesmo, que demonstram um total desconhecimento sobre a ditadura civil-militar brasileira. A cidade também é um local de memória e história, e a divulgação de relatos e lugares é uma maneira de resgatar do esquecimento e mobilizar novas gerações na busca por verdade e justiça sobre o período ditatorial.

As atividades do Caminhos da Ditadura

Além do mapa digital, são desenvolvidas ações no Instagram e Facebook no sentido de aproximar o conteúdo presente no mapa das redes sociais que estão no cotidiano das pessoas. Assim, afora as postagens de locais que já estão no mapa com fotografias e legendas, também foi produzida uma série de vídeos desmistificando memórias do senso comum sobre o período ditatorial brasileiro. No intuito de apresentar uma história da ditadura brasileira com foco na resistência, também escrevemos – em parceria com outros historiadores e historiadoras – mini biografias de mulheres e pessoas negras que lutaram contra a ditadura. Recentemente, foi lançada a série “Não Esquecer É Resistir” que trata de eventos chave da história da ditadura (AI-5, Guerrilha do Araguaia, Milagre Brasileiro, Vladimir Herzog, Anistia e Riocentro) baseada na pesquisa de opinião do DataFolha de junho de 2020.

Atualmente, o mapa faz parte da rede Trajetos de Memória composta pelos grupos: Histórias da Ponta Grossa, Museu das Ilhas de Porto Alegre, Caminhos Operários em Porto Alegre, Pedal pela Memória e Territórios Negros. Essa rede foi criada “visando abrir espaço para uma memória e uma história alternativas às narrativas hegemônicas”. Em dezembro de 2019 foi lançada uma carta do projeto, que pode ser lida nesta reportagem aqui no Nonada.

A última ação do Caminhos foi desenvolver um Tour Virtual guiado baseado em um trajeto que foi aplicado em um evento de estudantes de arquitetura em 2019. O tour guiado também tem como foco trazer o conhecimento histórico através da tecnologia digital principalmente na educação básica e no contexto de distanciamento social que estamos vivendo. Assim, são visitados virtualmente onze locais no Centro Histórico de Porto Alegre e recebem uma narração em áudio do que aconteceu em cada lugar, bem como com algumas fotos da época para ilustrar.

Pequena Memória para um Tempo Sem Memória

Ao longo dos próximos meses, abordaremos nesta coluna alguns dos locais do mapa e sua relação com o período da ditadura civil-militar. O desenvolvimento nos últimos anos dos campos da história pública e história digital são capazes de construir novos instrumentos para lidarmos com questões antigas. Conforme a globalização avança, assim como contextos políticos em que exige-se silêncio por parte dos educadores, é fundamental criar-se uma rede de solidariedade no âmbito público e no âmbito digital. A História feita na Academia não tem mais como existir apenas para a Academia. Construindo uma História colaborativa com os diversos públicos que possam interpelá-la estaremos estabelecendo não só nosso papel nas ciências humanas como mediadores, mas também oferecendo a oportunidade de que comunidades tenham acesso e se interessem por suas histórias locais e pessoais.

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