Branco sai, Preto fica retrata a realidade dura da periferia

Branco Sai, Preto Fica foi o grande vencedor do Festival de Brasília em 2014
Branco Sai, Preto Fica foi o grande vencedor do Festival de Brasília em 2014

 

Texto Raphael Carrozzo

Em 12 anos de Escravidão, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2014, pudemos observar, de forma sensível e realista, o modo como os negros eram tratados na época da escravidão nos Estados Unidos. O chocante é ver que, mesmo mais de 100 anos depois, ainda nos deparamos com situações semelhantes. Branco Sai, Preto Fica, apesar de se passar em uma realidade “fictícia”, pressupõe que, infelizmente, as agressões contra os negros vão sempre existir.

Escrito e dirigido por Adirley Queirós, o longa nos apresenta Marquim e Shokito, dois negros que, durante a década de 1980, freqüentavam um baile de Black music – Quarentão – na Ceilândia, em Brasília. Em acidente trágico, quando policiais invadem o local, os personagens são feridos e marcados para a vida toda. O primeiro fica em cadeira de rodas, enquanto o segundo tem uma das suas pernas amputada. Enquanto isso, Dimas Cravalanças vem do futuro com a missão de coletar dados e provar que os danos sofridos por Marquim e Shokito foram causados pela repressão social.

Drama? Ficção Científica? Documentário? O longa passeia por esses três gêneros, atiçando o imaginário do espectador. Logo nos primeiros minutos, vemos Marquim descer as escadas e ir para uma espécie de porão, onde se encontram monitores de segurança, um tubo metálico com uma forte luz, diversos aparelhos eletrônicos quebrados e um equipamento de rádio. Percebemos, então, que o personagem possui sua própria emissora de rádio e passamos a acompanhar o monólogo no qual ele conta as trágicas lembranças do acidente no baile. Já o personagem de Shokito, em narração, conta a dolorosa sensação de ainda sentir a perna amputada.

Desse modo, o longa ganha aspectos de documentário. Passamos a acompanhar momentos da vida dos dois personagens, como Shokito tentando encontrar uma prótese ou ensinando outro deficiente a usá-la corretamente. Ou a cena que mostra Marquim tendo grande dificuldade para sair do carro e até subir no elevador de sua casa. São momentos que, em teoria, nada acrescentam à trama, mas são importantes por mostrar o lado mais humano dos personagens, assim como a rotina brutalmente inserida em suas vidas. Além disso, esses momentos conferem tons mais verossímeis à obra, pois passamos a perceber os impactos da divisão social na parte da sociedade considerada marginalizada. Essas são marcas de uma guerra travada a todo momento, dia após dia.

Não é por mero acaso que, mesmo em um universo ficcional, as pessoas que vivem fora de Brasília precisem de passaporte para adentrar a capital, reforçando a (fictícia?) noção de que todas as demais pessoas são marginais e necessitam da autorização da polícia para entrar. Isso é só o espelho dos dias atuais. Se, no longa, é preciso passaporte, no mundo real essas pessoas vivem sob olhares desconfiados e julgadores a todo momento, tendo que provar dia após dia que merecem estar naquele lugar, tanto quanto os outros. Além disso, a mesma polícia do filme realiza operações noturnas nos subúrbios para prender “as pessoas ruins”, mas não sem antes dizer frases como “Tirem as crianças das ruas”, “Quem estiver sem passaporte será preso” e “Isso é para o bem da população”, insinuando que aquela parcela da população é responsável por todos os males da sociedade.

O longa narra uma violenta ação policial em um baile black, discute racismo e exclusão na periferia de Brasília
O longa narra uma violenta ação policial em um baile black, discute racismo e exclusão na periferia de Brasília

Apesar disso, Branco Sai, Preto Fica possui alguns problemas em sua narrativa, principalmente em sua conclusão. Deixo o aviso de spoiler a partir de agora até o fim deste parágrafo. Se, por um lado, Marquim e Shokito conseguem comover e impressionar o público, por outro, Cravalanças torna-se mau, aproveitando-se dos demais na história. Cravalanças passa o longa inteiro viajando de um ponto a outro no tempo, tentando buscar provas dos acontecimentos, mas em nenhum momento nos é dado conhecer de que modo ele solucionou o caso. Sartana é citado três vezes, tem relação de amizade com os outros dois personagens e aparentemente desempenha papel importante na trama, mas simplesmente não aparece no filme. Muito menos fica o espectador sabendo qual é o papel de Sartana no desfecho da história.

Contudo, as cenas de ficção científica da trama são interessantes — como, por exemplo, o trecho em que Cravalanças conversa com sua comandante do futuro, e ela informa que, apesar de as coisas estarem bem, ele precisa resolver o caso urgentemente, antes que os fundamentalistas tomem o poder do país – o que parece estar cada vez mais próximo na nossa atual conjuntura política. Ou que a arma de Marquim para desativar os mecanismos da fronteira, seja uma “bomba” de sons que incluem estilos como funk, rap e tecnobrega. Esses gêneros próprios da periferia acabam sendo usados como instrumento de voz e protesto dessa parcela da sociedade.

Mesmo quando a parte ficcional parece absurda, a narrativa eficiente, dinâmica e emocionante do longa consegue puxar o telespectador para a realidade, deixando o estilo documental do filme mais evidente. Isso se reforça quando Marquim e Shokito se encontram para finalizar o plano de sabotagem. Uma cena que, apesar do plano ser “absurdo”, não soa aleatória na trama, mas acaba se desvendando como um plano de vingança dos dois personagens – vingança contra o sistema, que os oprime dia após dia, mutilando-lhes não apenas o físico mas, também, o psicológico.

Branco Sai, Preto Fica reforça a riqueza do cinema brasileiro, de como nós conseguimos passear por diversos gêneros e ainda assim criar uma trama tão atual. É um relato belo e trágico de que, independentemente da época pobres e negros serão sempre discriminados. Isso só reflete o quão subdesenvolvido o ser humano é por praticar atos tão deprimentes como o preconceito – não só contra os negros, mas com todas as minorias. Para alguns, isso é invencionice, para outros é tristeza profunda, mas para eles é o terrível cotidiano.

Compartilhe
Ler mais sobre
Direitos humanos Entrevista

“A luta pela terra implica a luta pela cultura”: uma conversa com o coletivo de cultura do MST

Entrevista Processos artísticos

Imagens sonhadas de um Brasil real: por dentro da fotografia de Marte Um

Culturas populares Memória e patrimônio Notícias

Dossiê propõe registro do Hip-Hop como patrimônio cultural do Brasil