Demolidor (Daredevil, EUA, 2015) – 1ª temporada
Showrunners: Drew Goddard e Steven E. DeKnight, baseado no personagem de Stan Lee e Bill Everett
Com: Charlie Cox, Deborah Ann Woll, Elden Henson, Vincent D’Onofrio, Ayelet Zurer, Rosario Dawson, Vondie Curtis-Hall, Toby Leonard Moore, Scott Glenn, Bob Gunton, Wai Ching Ho, Peter McRobbie, Nikolai Nikolaeff, Peter Shinkoda, Skylar Gaertner, John Patrick Hayden, Judith Delgado, Phyllis Sommerville
Após Os Vingadores, que selou o sucesso do Universo Cinematográfico Marvel, o próximo passo lógico do estúdio era investir nas séries televisivas live-action, contando histórias paralelas ao núcleo narrativo principal. O começo não foi promissor: Agents of S.H.I.E.L.D. teve um início sofrível, padecendo com um ritmo claudicante e uma trama que não parecia ir a lugar algum – ao menos até o episódio 1.16, quando sofre a influência dos explosivos acontecimentos de Capitão América 2 e finalmente ganha o peso que lhe faltava (o que vem se mantendo na ótima 2ª temporada). Já Agent Carter, que surgiu como pouco mais que um tapa-buraco para o hiato da primeira, revelou-se uma agradabilíssima surpresa ao trazer a espiã apresentada em O Primeiro Vingador como rara protagonista feminina de um projeto de ação, resultando numa aventura divertida, enxuta e retrô que certamente merece voltar às telas (algo que, infelizmente, a ABC ainda não confirmou).
E finalmente, chegamos a Demolidor, primeira série da parceria da Marvel com o Netflix (as próximas serão A.K.A. Jessica Jones – prevista para o final do ano –, Luke Cage e Punho de Ferro) que promete focar em heróis com temáticas mais urbanas e lidando com crimes comuns. Iniciando algum tempo após a Batalha de Nova York, logo fica claro como a luta entre os Chitauri e os Vingadores afetou a vida dos cidadãos comuns de Manhattan – especialmente na região de Hell’s Kitchen, onde a destruição desencadeou uma agressiva especulação imobiliária. É neste contexto que somos apresentados aos jovens Matt Murdock (Cox) e Foggy Nelson (Henson), advogados que acabam de abrir um escritório na área. Logo os dois se colocam na defesa de Karen Page (Woll), acusada de um assassinato que ela jura não ter cometido. Com as informações reveladas pela garota, Murdock usa seu alter ego justiceiro para pressionar os líderes das facções criminosas do bairro, aproximando-se cada vez mais de um homem potencialmente ligado à questão imobiliária: Wilson Fisk (D’Onofrio). Enquanto isso, Page auxilia o veterano repórter Ben Urich (Curtis-Hall) em uma investigação similar.
Sem qualquer vestígio da atmosfera leve de “colegas” como Guardiões da Galáxia, Os Vingadores e a primeira fase de Agents of S.H.I.E.L.D., Demolidor não demora a estabelecer que se passa nas ruas de um bairro perigoso: suas ameaças não são alienígenas de outra dimensão ou sociedades secretas que buscam controlar o mundo, mas traficantes de drogas, assaltantes, estupradores e assassinos – algo que, somado ao uniforme preto, denota forte influência do período em que Frank Miller esteve à frente do personagem (principalmente no arco O Homem sem Medo). A boa notícia é que, embora seja sem dúvida o produto mais “realista” já entregue pela Marvel, a série não abdica totalmente de elementos fantásticos, coexistindo tranquilamente no mesmo universo que os Vingadores, a S.H.I.E.L.D. e os Guardiões (como sugerem as pistas plantadas pelo episódio centrado em Stick, mestre do protagonista, e as últimas cenas com a vilã Madame Gao). Ainda assim, o tom pesado da série é inquestionável: as lutas são coreografadas de maneira seca e direta; tiros, socos e facadas tem consequências sangrentas e há uma execução particularmente grotesca em sua violência gráfica.
Essa descrição deve ter feito Demolidor parecer excessivamente agitada, o que não é o caso. Desenvolvendo com calma suas situações e personagens, a série equilibra com sabedoria as sequências de ação com aquelas onde vemos Murdock exercendo sua formação jurídica e os motivos que tornam Wilson Fisk uma figura tão temida. Com relação ao primeiro, Murdock surge como a figura heroica mais vulnerável do Universo Marvel até aqui: cego e financeiramente limitado, o rapaz sequer conta com um equipamento decente de proteção, adquirindo parcos itens pela Internet que não o impedem de levar surras brutais – o que ele busca compensar com os demais sentidos ampliados a níveis assombrosos (algo que a série – acertadamente – não se preocupa em explicar) e exímia habilidade em combate físico. Mas o brilhantismo do roteiro e da performance do carismático Charlie Cox (de Stardust e Boardwalk Empire) reside em expor que, mesmo bem intencionado, Murdock possui características pouco atraentes que parecem prestes a aflorar sempre que surge sob a máscara – e, como outros personagens apontam, suas justificativas de querer “melhorar a cidade” soam perigosamente próximas às de Fisk. No entanto, Matt assume suas ações quase com a mesma força com que as questiona, o que, somado à notória religiosidade do personagem, rende interessantes cenas em que o rapaz discute com seu padre dúvidas morais e teológicas, estabelecendo-o como alguém em constante conflito consigo mesmo (uma dualidade também expressa por um católico que elege visual e alcunha original remetendo ao Demônio).
Esse autoquestionamento, portanto, é o fator crucial que separa Murdock de Wilson Fisk, que, mesmo alegando sinceramente não extrair qualquer prazer de suas ações mais cruéis (exceto as que o afetam pessoalmente, quando então se entrega a uma fúria animalesca), considera-as absolutamente necessárias em função de um bem maior. E se a oposição entre o Coringa e Batman (herói frequentemente comparado com o Demolidor, algo reconhecido na piadinha de Foggy sobre Matt “ter ouvidos de morcego”) fascina em função da imprevisibilidade do primeiro, o que atrai na rivalidade entre Murdock e Fisk é que ambos buscam agir de forma racional, constantemente tentando antecipar o próximo movimento do inimigo, embora sejam sujeitos a cometer erros de avaliação. Além disso, Vincent D’Onofrio (Nascido para Matar) surpreende ao encarnar Fisk como um homem que, apesar de se impor fisicamente e ser capaz de ações monstruosas, se expressa na maior parte do tempo de forma contida, até mesmo tímida. Capaz de criar laços de respeito e até mesmo de afeto com seus comandados e outros chefões do crime, Fisk é, no entanto, um homem profundamente solitário cuja personalidade foi formada pelo pior lado de Hell’s Kitchen – e é ao ter sua desajeitada aproximação romântica correspondida pela curadora de arte Vanessa (Zurer) que o sujeito abandona a cautela habitual, o que preocupa seus pares.
O elenco secundário de Demolidor não fica atrás: Elden Henson entrega um Foggy divertido e emotivo, mas que também questiona constantemente sua difícil escolha profissional; Deborah Ann Woll consegue um efeito curioso com sua Karen Page, convencendo o espectador de suas boas intenções no presente ao mesmo tempo em que perturba com sugestões de um passado misterioso e provavelmente violento; Rosario Dawson encarna uma espécie de bússola moral para as ações de Matt e Toby Leonard Moore evita transformar o braço-direito de Fisk numa caricatura, ajudando a humanizar o vilão, embora surja quase tão ameaçador quanto este. Mas o destaque vai mesmo para Vondie Curtis-Hall, que retrata Ben Urich como o tipo de repórter que parece deslocado no tempo, embora já cansando de buscar a relevância social da atividade num jornal que já não está interessado em tal coisa. Aliás, o cinismo da série com relação à atividade jornalística contemporânea é notório (e justificado), expressado não apenas nas constantes dificuldades profissionais de Urich como também no discurso que Fisk lhe faz em certo momento.
Além disso, essa primeira temporada destaca-se em seu ótimo trabalho de design de som, ressaltando a importância que os menores ruídos tem para que um personagem cego tenha noção de espaço (além de seu “detector de mentiras” cardíaco) e, é claro, a crueza das várias lutas, cujos golpes soam sempre dolorosos. Da mesma forma, a direção de arte é eficaz em transmitir informações importantes sobre os personagens de forma rápida, como o escritório de Ben Urich atulhado de pastas e livros; o apartamento luxuoso, mas frio, de Wilson Fisk; e o escritório quase vazio de Matt e Foggy. Finalmente, a condução da série, ciente da natureza de binge-watching do Netflix, não se preocupa em encerrar todos os episódios com cliffhangers, apostando em cenas mais fechadas com a própria trama – merecendo menção o desfecho do episódio 4, quando vemos do que Fisk é capaz e, é claro, o já icônico final do episódio 2 em que Murdock avança, num longo plano-sequência, por um corredor repleto de capangas, batendo e apanhando em igual medida e claramente se cansando no decorrer da cena.
Ligando-se apenas tangencialmente ao restante do Universo Marvel (repare nas capas emolduradas no escritório de Ben Urich, que se referem à Batalha de Nova York e à luta entre o Hulk e o Abominável no Harlem, além de o rival do pai de Matt surgir como um vilão no início da 2ª temporada de Agents of S.H.I.E.L.D.), a série também inclui uma série de referências a elementos particulares do núcleo do Demolidor, indicando que Elektra (a “garota grega” mencionada por Foggy num flashback) e possivelmente o Tentáculo devem marcar presença nas próximas temporadas. E baseado na ótima qualidade do que vimos aqui, é bom que o Diabo Cego volte o quanto antes.
Os comentários estão desativados.