Fotos: Fernando Halal
Você quer parar o tempo/E o tempo não tem parada, canta Alceu Valença em “Embolada do Tempo”. Mesmo não tendo como parar o tempo, o cantor pernambucano deu um jeito de ludibriá-lo. Os anos passam – Alceu já está com 69 –, mas a cabeça, em eterna ebulição, é a de um artista que não consegue se acomodar.
Esse sujeito inquieto, que se lançou este ano como cineasta (veja aqui o teaser de A Luneta do Tempo) e recentemente publicou um livro de poesias (com o autoexplicativo título O Poeta da Madrugada), esteve em Porto Alegre no dia 31 de outubro para apresentar seu novo show. Aqueles que conferiram a apresentação no auditório Araújo Vianna, dois anos atrás, e também foram ao bar Opinião no último sábado, não têm dúvidas: a anterior foi boa, mas esta última simplesmente matou a pau.
O show que Alceu trouxe desta vez era no formato de banda de rock, não passando nem perto do acústico. Então, assisti-lo de pé não foi nenhum absurdo, ainda mais com um repertório que, de tão animado, poderia ser tocado na íntegra em qualquer festa de música brasileira.
Resumir mais de 40 anos de carreira em pouco menos de duas horas não deve ser fácil. Mesmo tendo que destinar boa parcela do show aos clássicos, o cara consegue surpreender. A sequência inicial é de cair o queixo. “Embolada…”, “Bobo da Corte” e “Sol e Chuva” funcionam como um cartão de visitas de Paulo Rafael, o fantástico guitarrista que acompanha Alceu desde sempre e é também um dos fundadores do mítico grupo Ave Sangria. A formação enxuta – completam a banda o baixista Nando Barreto, o baterista Cássio Cunha e o tecladista Tovinho – funciona bem, resgatando a pegada roqueira dos primeiros trabalhos do músico sem descaracterizar sua característica mistura de ritmos nordestinos.
Sobre Alceu Valença: o que dizer desse homem, cuja presença de palco é algo que transcende qualquer definição possível? O cara dança, pula, rodopia, vira cachorro (isso mesmo), se autoproclama rei, líder religioso, astronauta. É quase impossível tirar os olhos dele.
Em “Papagaio do Futuro”, composição em parceria com Geraldo Azevedo e Jackson do Pandeiro, ele recita exatamente a mesma introdução do disco Vivo!, de 1976. Depois, dá uma quebrada no ritmo com a melancólica “Cavalo de Pau”, faixa-título do álbum campeão de vendas de 1982.
Até então embasbacada pela aula de música, a plateia (que praticamente lotou o Opinião) começa a se soltar mesmo em um hit de outro compositor nordestino: “O Xote das Meninas”, de Luiz Gonzaga, antecedida de um “diálogo” entre Alceu e o rei do baião.
– Luiz Gonzaga, aqui em Porto Alegre a festa tá boa!
– Ah, então posso pedir pra você um favorzinho? Toca uma música minha?
– Toco, sim. Até duas!
Na verdade, a segunda homenagem de Gonzagão fica para depois. Em vez disso, Alceu surpreende o público com o fado “O P da Paixão”, resultado de suas constantes viagens a Portugal. Em seguida, o cantor menciona sua intenção de criar a Igreja da Comunhão Musical, em que todos são livres para crer no que quiserem, mas precisam cantar dentro do tom. Se havia alguém atravessado, ficou difícil perceber tamanho foi o coro em “Sabiá”, também de Luiz Gonzaga. No meio da música, uma moça sobe no palco e tasca um beijo na bochecha de Alceu, que prossegue o show inteiro com a marca de batom.
Se a primeira parte do repertório é mais experimental, a segunda é recheada de clássicos. A começar por “Coração Bobo”, o primeiro hit radiofônico do pernambucano. Em “Pelas Ruas que Andei”, o cantor late e agoniza como um cão acuado por uma onça, em uma performance que, se não fosse tão cômica, cairia como uma luva em “Como Dois Animais”, outro sucesso de Cavalo de Pau. “Cabelo no Pente” e “Solidão”, presentes em outros discos do período, mostram como Alceu se manteve prolífero na década de 1980, ao contrário de muitos de seus contemporâneos.
“Táxi Lunar”, parceria com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho na qual convida os astronautas a uma viagem mais do que cósmica, e “Girassol”, uma releitura/autoplágio de “La Belle de Jour”, antecedem o clássico dos clássicos valencianos: “Anunciação”. Ouvir a cortante melodia de guitarra inicial tocada por seu próprio criador, Paulo Rafael, é algo de arrepiar quem é apaixonado por música.
O artista deixa o palco e logo em seguida uma voz meio esganiçada grita: “ei, ei, ei, Alceu é nosso rei! ” É ele mesmo, que tira sarro da hipocrisia do bis. “É tudo mentira, eu não vou embora, não!”, avisa.
O clima de comédia dá lugar à melancolia em “Juazeiro”, também de Luiz Gonzaga, e “Na Primeira Manhã”, “duas canções sobre perdas” tocadas em ritmo arrastado, o que as deixa ainda mais tristes. A alegria volta a tomar conta com a verdadeira “La Belle de Jour”. A mesma menina que subiu ao palco em “Sabiá” não resiste e sobe mais uma vez, dançando e até dividindo o microfone com Alceu. Enfim, chega a vez de “Tropicana”, dando um alívio aos (poucos) que acreditavam que ela pudesse ficar de fora.
Se “Tropicana” segue firme no repertório, muitas outras músicas não tiveram espaço. Ao ouvir os pedidos do público, que sugeria canções diversas, incluindo alguns frevos, o cantor deu uma explicação. “Eu tenho oito formatos de shows diferentes, acústico, com orquestra, sopros, para Carnaval, São João… Então, tem músicas que são ensaiadas para um determinado formato, mas não cabem em outro”, argumentou.
Alceu Valença tem mais de 40 anos de carreira musical, é escritor, cineasta, continua compondo e ainda tem OITO formatos de shows diferentes. Descansar, definitivamente, não é algo que passa pela cabeça do insone poeta da madrugada. Os devotos da Igreja da Comunhão Musical agradecem.