Foto: Marlon Diego/divulgação

GG Albuquerque fala sobre a imaginação radical das estéticas periféricas do Brasil

“Nada nessa vida/ Vai mudar minha essência de cria”

A música do funkeiro MC Cabelinho fala em “essência de cria” – cria da quebrada, das periferias do Brasil, cria que cria. Essa é uma palavra-chave para o jornalista e pesquisador GG Albuquerque. Em seu doutorado na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), GG olha para os processos de criação de Djs, rappers, funkeiros, e produtores de música como o bregafunk, a pisadinha, o tecnomelody e o pagodão. 

Seu interesse é direcionado, principalmente, ao poder inventivo, criativo e ativo na produção dessas sonoridades, muitas vezes, não reconhecidas pelo potencial artístico. “Esses artistas propõem uma reformulação dos procedimentos e da ideia de música a partir de uma imaginação radical”, afirma. 

GG se movimenta no cruzamento entre as áreas, combinando crítica de arte, sociologia, filosofia, musicologia e comunicação para falar de música. Ele é também co-fundador e redator do Embrazado, portal sobre as cenas e movimentos musicais periféricos do Brasil. Desde 2015,  edita o blog Volume Morto,  focado em práticas experimentais do som e música. Recentemente, assinou a co-curadoria do festival Unimúsica, em Porto Alegre. 

Em entrevista ao Nonada, ele fala sobre uma visão não homogeneizadora das manifestações culturais periféricas. Não há uma só periferia, um só funk, ou uma só forma de ser DJ. “Gosto de pensar e repensar o centro e periferia não como coisas fixas, estanques, porque as informações musicais e as referências vão de cima para baixo, de baixo para cima a todo momento”, diz. Albuquerque gosta da palavra “compartilhamento” para descrever, por exemplo, um novo gênero que ele mesmo tem escutado muito: o Forrozin – ouvido no interior do nordeste, em uma espécie de mistura entre o funk e a pisadinha. 

Ele comenta também a relação entre política e produção sonora. “Não é coincidência que as músicas sobre ostentação surgiram nos governos Lula, um período de maior acesso a crédito e de aumento do poder de compra.” Embora não concorde com a ideia de que a música “espelha” a sociedade,  ele acredita que os próximos anos podem trazer de volta dignidade à vida das pessoas e, quem sabe, impactarem uma nova geração de artistas. 

Confira a entrevista completa: 

Nonada – Você provoca a noção de “música periférica” e também fala sobre preferir a expressão “artistas periferizados”, do que “periféricos”. Como você tem pensado as noções de centro e periferia a partir da música? 

GG Albuquerque: De várias formas, a partir de diferentes abordagens. O primeiro ponto é entender que existem centros dentro das periferias, assim como também existem periferias dentro do centro. Um exemplo que costumo dar é o Wesley Safadão. Ele é um cara muito gigante dentro da indústria musical, fonográfica, que está sempre sendo o mais tocado em rádios no Spotify. Mas que é um homem branco, cis, hétero, mais do nordeste, do contexto do Forró. Quando ele vai buscar uma ambientação de mercado mais nacional, ele vai negociar e se aproximar do sertanejo. 

Tem um evento específico que mostra esse lugar de uma periferia central, que é quando ele grava uma música chamada Você partiu meu coração, em 2017, com a Anitta e o Nego do Borel. A música foi uma das mais tocadas naquele ano, só que, quando ela tocava nas rádios pop do Rio de Janeiro, a voz do Wesley Safadão era cortada, sob o argumento de algumas rádios de que “não tocavam sertanejo:”. 

Por outro lado, a gente pode pensar no Rennan da Penha, que é um cara muito gigante no funk. Foi um cara que tinha um programa em uma das maiores rádios do Rio, que conseguiu ter vários hits. É um cara preto, Dj não só de funk, mas de funk em baile de favela (o Baile da Gaiola), e que foi  preso em um processo judicialmente absurdo. Daí a gente percebe um periférico dentro do mainstream e um mainstream dentro do periférico, que está sujeito a várias violências. 

Gosto de pensar e repensar o centro e periferia não como coisas fixas, estanques, porque as informações musicais e as referências vão de cima para baixo, de baixo para cima a todo momento. A gente vai ter o grande mainstream na música eletrônica, assim como vai ter o funk influenciando a música pop. Esses fluxos são muito diversos e alteram mesmo essa lógica de “periferia” e “centro”. 

Existem centros dentro das periferias, assim como também existem periferias dentro do centro, tanto do ponto de vista cultural, musical, artístico, quanto do ponto de vista da vida mesmo. Quem não conhece as favelas brasileiras não têm essa noção, mas dentro da favela você pode ter uma casa que o valor dela é X, e outra que o valor é 3X, dependendo de onde se localiza – se é mais próxima da avenida principal, se passa ônibus ou não. A vida nas periferias e a relação com os territórios é muito dinâmica. 

Nonada – Você falou em territórios e fiquei pensando se você vê relação entre cidade/região e produção sonora? Isso tem aparecido na tua pesquisa? Porque você cita algumas cidades como Belém, Recife…

Com certeza a geografia, onde a cidade se localiza, muda. Belém, por exemplo, tem a história bem famosa da influência da música caribenha, porque as rádios conseguiam captar as rádios de música caribenha. Isso influenciou toda a geração da guitarrada. 

Uma coisa que fiquei sabendo há pouco tempo é que em São Paulo você tem variações de funk que estão associadas ao território dentro da cidade. Tem o funk da Zona Norte e o da Zona Sul. Isso acontece no funk como um todo, você vai ter o funk pop, o funk mandelão. Eu até entrei em um grupo que era de Whatsapp, que a galera estava falando sobre música e diziam “aqui só pode música ZN”. Pelo que entendi, o funk da Zona Norte é mais ritmado, e vai ter mais som de tambor, berimbau. Enquanto, o da Sul é esse funk mandelão, bruxaria, mais barulhento. Definitivamente, as regiões alteram como o som vai ser produzido.

A gente pode até pensar como que em SP, uma cidade que não tem praia, que é cimentada, o funk é tão incrível, é tão eletrônico. Os movimentos corporais não são muito de rebolar, não é tão sensual. É aquele passinho meio esquisito, e é lindo. Enquanto no Rio de Janeiro tem a praia, esse calor muito presente, e que vai levar para o tambor, para o gingado. Isso tudo está ligado com as identidades locais e, de certa forma, com a geografia da cidade. Lógico que essa relação não é causal, no sentido de que toda cidade de praia e de morro vai ter essa música mais dançada. Não necessariamente, mas é interessante perceber que isso também acontece. 

Nonada – Essa pesquisa e investigação mostra o específico, que não existe um funk, uma pisadinha, um brega. É bonito ver as variações todas até mesmo dentro de uma cidade.

GG Albuquerque – É foda perceber essas questões particulares, porque fica mais complexo de trabalhar mesmo. Quando eu comecei o doutorado, eu pensava que encontraria o pessoal trabalhando em estúdio caseiro, mas você vai encontrar pessoas trabalhando também em estúdios fodas, dentro de uma produtora, trabalhando com maquinário grande. Assim como você tem o cara que produz com o celular e que é estouradaço, como o DJ Arana. Existem diferentes regimes de trabalho, desde o cara que trabalha dentro de uma produtora, ou que criou a própria produtora. É muito extenso, impossível de generalizar. 

Nonada – Em um texto do blog  Volume Morto você fala sobre a presença frequente da palavra “sonho” nas músicas das quebradas. É possível relacionar a ideia de sonho com um período que estamos vivendo agora, de troca de governo? Em tuas aulas e pesquisa, você costuma entrelaçar também os períodos sócio-políticos, como os governos Lula no início dos anos 2000, com a produção musical. 

GG Albuquerque – Para mim, os governos do PT foram revolucionários, porque eles tiveram impacto não só por terem colocado políticas de acessibilidade aos meios digitais, em pontos de cultura, criados por Gilberto Gil. O lance de maior acesso digital foi porque as pessoas tinham mais acesso à crédito – a finalidade não era essa, mas aconteceu, e isso incentiva a cultura. Assim como a gente teve as pessoas comendo, teve o Bolsa Família, o acesso à renda, que dava uma dignidade para a sobrevivência. Uma pessoa ter o que comer é óbvio que vai ter impacto em tudo, incluindo a movimentação cultural. Como isso vai se dar agora? Não sei, mas certamente ter um Ministério da Cultura já é um grande avanço.

A questão do uso das músicas periféricas em campanha, é importante ressaltar que ocorreu também com Bolsonaro, e ocorreu com vários políticos conservadores do país. A instrumentalização do funk existe, tanto por políticos de direita quanto de esquerda. O funk sofre preconceito, mas ele também tem valor. Você se afirmar como um funkeiro pode ser descolado. Não é porque você se porta como um funkeiro que vai sempre ser mal visto por todas as pessoas. 

Dito isso, o que tem a ver com sonho? A ideia de sonho que tem nas músicas de ostentação, de certa forma, estão sim ancoradas em um desejo neoliberal. Muitos desses artistas vão pensar por esses valores neoliberais e “tanto faz” essa eleição, o que importa é eles ralarem, e tal. Enquanto outros vão pensar e encontrar sentido na experiência cotidiana, em que o Estado é que vai trocar tiro e matar uma pessoa da comunidade. É complicada uma associação muito direta entre a ideia de eleição e o ideal de sonho que essas músicas representam. Difícil de correlacionar esse resultado agora.

Mas, certamente, não é coincidência que músicas sobre ostentação tenham surgido nos governos Lula, que foi o período de maior acesso à crédito e de aumento do poder de compra. Isso é sintomático. Mas também é muito esquisito a gente ver um momento em que a fome voltou, a miséria cresceu,e ver artistas falando de marcas cada vez mais luxuosas. Se antes se falava da camisa da Abercrombie, Red Label, agora é camisa da Lacoste, Balmain. 

A gente percebe correlações entre o social e as temáticas das letras, mas ele não é um espelho. Porque esse é o lance: a música não é o espelho da sociedade. Ela está ali para criar o delírio, o sonho, para inventar coisas. Do ponto de vista das temáticas, é difícil prever o momento que o funk vai começar a viver. A única correlação que eu poderia estabelecer é que esse governo vai ter algum combate à fome, à miséria, à pobreza, e isso, por sua vez, vai dar condições mais dignas para as pessoas.

Nonada – E já que falamos sobre escutas, o que você tem escutado? 

GG Albuquerque – Eu estou muito impressionado com o novo disco do Poze do Rodo. Eu acho que é um acontecimento para o rap, para o funk e para música brasileira de forma geral. Antes, o funk e o rap se viam de forma esquisita – o rap se afirmava mais consciente do que o funk, mas eles foram se juntando nessa espécie de cultura de cria, cultura da quebrada. Acho que foi o que eu mais ouvi em 2022. 

Também ouvi muito forrozin, chamado em outros lugares como xote funk, e Djs com o Jeff Pl. Isso é, basicamente, versões de músicas de funk com uma levada de pisadinha, do forró. Só que não parece exatamente uma pisadinha, nem como um funk. Eu acho muito hipnótico também pela forma como é criado. Não é uma influência do funk sobre a pisadinha, nem ao contrário. É um compartilhamento da experiência dos métodos de criação. Você vai ver eles usando a ideia de looping, que no funk é central, ou então a capela de vozes para repetir. É muito incrível e é uma música que vem bombando nos interiores do Nordeste. 

https://www.youtube.com/watch?v=LayVB_eB5-0

Nonada – Você trabalha no cruzamento entre áreas, mas é também jornalista. Como o jornalismo influencia a sua pesquisa acadêmica? 

GG Albuquerque – Com certeza muda muito, mas talvez eu não saiba exatamente o quê.  O meu texto é diferente de colegas da universidade – não estou dizendo que é melhor, mas é diferente. Acaba sendo mais ensaístico. Eu acho que o grande lance que o trabalho com o jornalismo muda é ficar de olho em tendências e também fazer entrevistas. Gosto muito de falar com as pessoas e acho que isso que o jornalismo me traz, e que diferencia de outras pesquisas sobre o mesmo tema. 

É algo que estou vendo, inclusive, como uma metodologia, de construir teoricamente a partir do som – que é um grande desafio – e também construir teoricamente a partir das falas, das conversas, das práticas de criação dessas pessoas. O modo que um DJ se refere a um som é importante, não para “usar os termos nativos”, mas porque ele cria um vocabulário, um léxico próprio para descrever fenômenos particulares e poderosos para esses grupos. Os caras chamarem “Twin” de “Twin” é uma coisa importante de teorizar e pensar a partir disso. Escutar, falar com as pessoas, vêm muito do curso de jornalismo. Quando vou nos bailes, sento lá, vou, não fico como observador. 

Nonada – Neste ano, você assina a Co-curadoria do projeto Unimúsica, Rasuras Transversais. A programação conta com nomes como Zudzilla, Jup do Bairro e Tiganá Santana. Como foi esse processo? 

GG Albuquerque – Do ponto de vista prático, o grupo da curadoria se encontrava semanalmente para conversar sobre, primeiro, sobre o conceito que a gente queria trazer e depois encontrar artistas que expressassem esse conceito. A gente tinha uma preocupação compartilhada em relação à negritude ter virado um commodity, de mercado, de as pessoas se aproximarem para vender uma noção de negritude meio estanque, definida, e que desenha até ideias hegemônicas. 

Nós, sendo um grupo de pessoas negras, de diferentes tonalidades, de diferentes trajetórias, intenções, interesses, queríamos trazer isso na proposta curatorial. Essas Rasuras (do título) falam de uma negritude não como algo dado, mas sempre como uma pergunta. E que não se prende a uma definição de “música negra brasileira”, que muitas vezes deixa de lado o funk e o forró. 

Queríamos trazer esse almágama, entendendo que não é só sobre ter artistas negros, mas trazer artistas que provocam uma imaginação, que tenham em seu trabalho não só falar sobre a negritude – pode ser que sim, que falem disso direta ou indiretamente. Mas é mais como esses artistas propõem uma reformulação dos procedimentos e da ideia de música a partir de uma imaginação radical. As rasuras são lugares de indeterminação, de provocação. É mutante, diverso, em um país como o Brasil em que a questão racial é muito complexa. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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