Rafael Costa
Foto de capa: Ytallo Barreto/divulgação
O tempo de existência do Unimúsica desperta diferentes reações no público. De um lado, temos a turma do “Nossa, tudo isso?!”, que foi apresentada ao espetáculo um tempinho depois da sua trajetória cultural. Já no outro lado do cenário temos o pessoal do “Parece que foi ontem”, que fazem a exclamação ao se referir aos primeiros passos do Unimúsica e de como ele cresceu ao longo do tempo. O tempo é implacável no diagnóstico: aos 40 anos, o festival de música organizado pelo Departamento de Difusão Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) tem posição consolidada no cenário musical brasileiro, mas sem deixar de olhar para o novo.
A edição do Unimúsica de 2021, que celebra as quatro décadas de histórias com o tema “Música da Presença”, ocorre a partir desta segunda, 27 de setembro e vai até 8 de outubro, no formato online. Explorando as novas linguagens e formas de expressão, o Unimúsica traz performances de nomes como Alvaro RosaCosta (RS), Arthur de Faria (RS), José Miguel Wisnik (SP), Lívia Mattos (BA), Negra Jaque (RS) e Yasmim Salvador (CE) e da rainha da ciranda Lia de Itamaracá (PE). A mestra apresenta no festival Ciranda de Lia, espetáculo gravado em Recife especialmente para o Unimúsica. Um ciclo de conversas, uma série de podcasts e uma mostra discente complementam a programação, que é gratuita e virtual. Confira a lista das atividades e como acessá-las neste link.
O Nonada conversou com a equipe curatorial para falar sobre a edição deste ano e sobre as memórias que o projeto suscita. Neste ano, a curadoria ficou por conta de Ana Fridman, Ana Laura Freitas, Lígia Petrucci, Rui Moreira, Suzi Weber e Valência Losada. Os curadores partem de diferentes áreas culturais, o que trouxe ideias variadas para a programação dos 40 anos do Unimúsica.
Valencia, que é produtora cultural e ex-diretora artística do Theatro São Pedro, relatou que as reuniões de curadoria objetivaram “um motivo de olhar para o agora, mas sem desconsiderar o lugar da memória do evento ao longo de sua trajetória”. A programação do Unimúsica, conforme sua construção, buscou “preservar a identidade do evento, da diversidade, da afetividade, do futuro e da memória”, explica. Para o curador Rui Moreira, fundador da Cia. de dança SeráQuê?, existe uma “caraterística tem um espaço não somente para uma ação consolidada, mas para ação de experimentação e investigação.” Ele destacou como a música consegue estar presente em diferentes dimensões. “Fazer os recortes e escolhas que possam proporcionar ao público uma amplitude da visão é muito importante. Estas dimensões nos animaram no processo de escolha, porque uma coisa ia chamando e empolgando a outra, se misturando e criando afetividade com todo o conjunto dessa programação.”
Falando em diversidade, essa é uma palavra-chave para a curadora do Unimúsica. Para Valencia, a construção do evento aborda uma heterogeneidade cultural. “Criamos uma programação de variedade estética, tentando compor um mosaico de linguagens e também de acordo com geopolítico, ou seja, um vitrine pro que também se faz fora do Rio Grande do Sul e do Brasil. Por isso, esses eixos de diálogo com pessoas de diferentes partes do mundo”.
A afirmação de Valencia vai ao encontro com o depoimento de Rui. “Pensar essa relação de interface da música com outras linguagens artísticas” foi a proposta apresentada a ele quando convidado a integrar a curadoria do evento. Como exemplo, Rui cita a participação da dançarina senegalesa Germaine Acogny e, partindo da roda de conversa com ela, forma-se a harmonia da música, da dança e da encenação. “Elas se completam, elas se misturam”, afirma.
Uma escuta afetiva
Depois de muitas edições, que trouxeram para o palco da universidade ícones como Elza Soares, Luiz Melodia, Dona Ivone Lara, Jards Macalé e Tom Zé, os diálogos e transformações propostas pelo festival impactaram no cenário nacional da música. “Sendo um projeto de uma universidade brasileira, atuamos na perspectiva da difusão do conhecimento e fazendo ele chegar a plateias e gerações diferentes e diversos”, destaca Lígia Petrucci, coordenadora do Departamento de Difusão Cultural da Ufrgs. Mas não são apenas os ouvintes que são impactados pelas apresentações, revela a produtora. “A gente acaba propondo muitos projetos. Muitos artistas se encontraram e começaram a trabalhar a partir do Unimúsica e até hoje muitos trabalhos e hoje tem suas vidas próprias”.
“O Unimúsica sempre esteve no meu calendário afetivo”, conta Valencia quando questionada sobre a identidade do evento a nível nacional. “Acho que a Lígia e a equipe sempre pensaram um evento com muita envergadura, no sentido curatorial, marcado pelo imediatismo, diversidade e pela surpresa.” Ela relata que o Unimúsica sempre trouxe como proposta a possibilidade da ampliação além do conhecimento musical, também se mostrando como “um lugar de produção de subjetividade”.
Entre os momentos marcantes que vivenciou nos últimos anos, Lígia resgatou a memória do show de Elza Soares, em 2016. “Meu coração parecia explodir, foi uma noite impressionante”, sorri. O Salão de Atos da UFRGS cheio (no auditório, cabem mais de 1100 pessoas sentadas) assistiu a Elza cantar, sentada em um trono como uma rainha, que recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela universidade.
Valencia aponta para o que costuma sentir após os shows. “Toda vez que eu saía do Salão de Atos da UFRGS, eu saía melhor. Melhor como sujeito, como pensadora”. Para 2021, como curadora, ela aborda a possibilidade de “criar fios e tecer situações, colocando artistas locais em contato com outras representações de linguagens” e o sentimento de dever cumprido ao ter um olhar holístico para o que a produção conseguiu montar para os 40 do Unimúsica.
Um olhar para o passado
Originado em 1981, no contexto de reabertura política no país, o festival foi uma iniciativa da Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul através do professor de zoologia Ludwig Buckup. Inspirado pelos concertos musicais vistos durante seus estudos na europa, Ludwig tinha o sonho de “trazer a música para o cotidiano da universidade”, que é o que relembra a produtora cultural e coordenadora desde 2002 do Unimúsica, Lígia Petrucci. “Ele chamou a jornalista Clarice Aquistapace e Celso Loureiro Chaves, um jovem professor de música da universidade.” Sob uma perspectiva de fazer da música um espaço de amostragem, o projeto do Unimúsica é elaborado pelos fundadores e ganha vida e integrando o cenário musical de Porto Alegre.
Já nos primeiros anos, o festival atraiu a atenção de artistas da cena. Os gaúchos universais Nei Lisboa e Vitor Ramil são alguns dos nomes citados por Lígia, que chamavam plateias cheias para o Salão de Atos da UFRGS. “No início, eram só estudantes e professores. Eles sentavam até no chão para assistir às apresentações.” Após uma suspensão, o Unimúsica retornou em 1993, em novas curadorias. “Com o tempo, passamos a organizar a estrutura do evento a partir de um certo mote. Foi a partir daqui que nasceram as séries temáticas”, explica Lígia.
Junto com essa transformação, o festival também passou a adotar a realização de ações formativas. Ensaios abertos, workshops, entrevistas e encontros com os artistas integravam a programação entre os concertos, tudo de acordo com a temática. “Tinha anos que era mais pertinente fazer oficinas, outros que ensaios abertos eram mais abrangentes, tivemos também as audições comentadas”, conta Lígia sobre a imensidão da diversidade de atividades que o Unimúsica proporciona anualmente.
Ao retratar os 40 anos do Unimúsica, é inegável resgatar o valor do evento em si como um processo de renovação e amadurecimento a cada edição. Um projeto de uma universidade pública brasileira se estender por anos é um detalhe altamente significativo. Além da valorização da própria universidade e da Fundação Médica do Rio Grande do Sul, a coordenadora Lígia salienta a continuidade do projeto a partir das adaptações na sua trajetória. “Ele pôde perdurar porque foi se transformando ao longo do tempo e respondendo às mudanças sociais históricas e técnicas. Tudo é uma dinâmica. E o Unimúsica assumiu o risco de ir buscando novos jeitos de trazer novas questões sobre a música popular.”
O curador Rui Moreira aborda a capacidade do evento em visualizar o futuro, mas sem deixar de observar o passado, um saber ancestral. “Essa circularidade é muito presente dentro dos conceitos africanos e também dentre os povos originários do Brasil e o evento consegue fazer esse exercício incansavelmente.” Citando o cineasta africano burkinabé, Idrissa Ouedraogo, ele observa que o olhar para frente sem deixar de olhar para trás auxilia muito na “necessidade de compreensão, da função, do pensamento, da ação e da presença”.
Por sua vez, Valencia define que a visão sobre o tecido social atual construído pelo corpo curatorial junto com a coordenação representa uma forma de visualização do futuro. “Não dá pra gente pensar uma ação que não esteja comprometida com a diversidade e pluralidade. A cultura é o lugar de maior fertilidade e mais rápido de identificarmos transformações.”
Ainda dentro da perspectiva histórica, as atividades do Unimúsica sempre foram realizadas dentro dos muros da UFRGS. Entretanto, em 2002, o Parque da Redenção serviu como cenário para um palco a céu aberto. Lígia relembra que “havia duas turmas de percussão: uma turma no campus do Vale e outra no campus Centro. Assim, realizamos uma orquestra de percussão, que foi um espetáculo na Redenção”.
Questionada sobre o envolvimento de outras universidades dentro do projeto Unimúsica, a coordenadora relata que existem planos para isso, que tiveram início em 2008, mas não conseguiram concretizar. “Mas ainda está no horizonte, uma perspectiva do futuro” A relação estreita com universidades como a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) se torna uma possibilidade de uma amplitude do Unimúsica.
Antes formado por professores e alunos, atualmente o público do Unimúsica são pessoas de diferentes inspirações e classes. A colaboradora do Nonada e pesquisadora Laura Galli, enquanto bolsista do Unimúsica em 2010, realizou um estudo sobre o público do evento, o que mostrou uma variedade de pessoas em termos de faixa etária, econômica e círculos culturais, assim como escolas públicas e privadas. Dentro do contexto do público do Unimúsica, Lígia relembra as visitas da Escola Municipal Maria Lygia, que, inspirada no evento da UFRGS, montou um grupo musical para apresentações. “O Unimúsica sempre teve essas iniciativas de integração com outras instituições”.
O toque na tela
Com a pandemia de Covid-19, a consequência da falta de público forçou artistas a migrarem do presencial para a modalidade virtual de forma a não perder o vínculo com espectadores e cumprir com regras sanitárias. O Unimúsica também transitou do presencial para o online e as transmissões ao vivo foram as principais ferramentas do evento realizado em 2020, o Forrobodó.
Ainda que a vacinação esteja em andamento, o formato online será novamente a forma de comunicação com o público. Herdando a experiência do ano passado, com Forrobodó, que evidenciou as mulheres instrumentistas, Lígia relembra: “foi um pouco no susto. A gente teve que aprender a produzir espetáculos virtuais e acabamos por estruturar um formato híbrido, ou seja, as artistas dentro da sala virtual em tempo real, mas as performances pré-gravadas.”
Na edição de 2020, o Unimúsica abraçou as diferenças técnicas das artistas. Nem todas tinham experiência do registro a partir do celular ao gravar em casa. Assim como já tinham outras que tinham um estúdio dentro de casa. Então esse foi uma dos pontos que a equipe do Unimúsica observou. “Sabíamos que teríamos essas diferenças, mas ficou muito legal. Tínhamos uma diversidade. Um mosaico de inspirações e instrumentos.” Já para a edição deste ano, Lígia adianta que a ideia é a criação de peças audiovisuais para falar da presença. A parceria com estúdios locais, outras cidades e a própria UFRGS TV, com equipes distribuídas em prol da cultura promovida pelo Unimúsica.
Pensando nas ausências e adaptações que devem ou não permanecer, a curadora Valencia Lousada avalia como insubstituível o encontro que o evento proporciona, na medida em que a pandemia impôs o rompimento do vínculo fundamental para o artista com a não presença. “Todos nós que trabalhamos com arte nos vimos diante desse dilema: ou nos adaptamos a essa linguagem híbrida do improviso ou a gente não faz. E não fazer é um tipo de morte”.
Por essa perspectiva, Valencia descreve que para ela, a diferença de 2020, como espectadora, para 2021, como curadora, é a adaptação ao “novo normal” que é a interação entre telas”. Mas a produtora espera que em 2022, as condições permitam que as apresentações sejam presenciais.
Já Rui Moreira destaca que tanto em aspectos técnicos quanto estéticos, entende-se que a ação, quando repetida muitas vezes, tende a ser um método de aprendizado. “A própria relação de gravações, qualidade de estúdio, captação de imagens, pensamento em relação aos convites para o público docente, todas essas ações que estão se repetindo, elas são frutos de um acúmulo de experiência.”