No Porto Seco, o público que assiste é o mesmo que desfila

Cobrir os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre foi especial, porque me fez confirmar a mais simples das frases: é importante trabalhar com algo que tu goste. O cansaço sim existiu, os desfiles de Carnaval consistiram em uma maratona de duas noites. Mas, ao longo dos meus 26 anos, os meses de fevereiro ou março sempre foram marcados por acompanhar essa festa. E, afinal de contas, “o Carnaval cansa, mas cura.”

Porto Alegre, RS - 06/02/2016 Desfile Grupo Especial - Estado Maior da Restinga Foto: Betina Carcuchinski/PMPA
Torcida do Estado Maior da Restinga (Foto: Betina Carcuchinski/PMPA)

Lomba do Pinheiro, Vila Pinto, Maria da Conceição, Bom Jesus, Sapucaia do Sul, Rubem Berta, Menino Deus, Gravataí, Centro, Partenon, Restinga, Sarandi e Viamão. Todas essas áreas estavam representadas no Complexo Cultural do Porto Seco, entre os dias 5 e 6. Seguindo a listagem dos bairros, é visível notar que o Carnaval de Porto Alegre se concentra na população de baixa renda da cidade e região metropolitana. Talvez por isso seja uma festa tão pura, divertida e mágica. Ninguém que foi até a passarela um dos pontos extremos da cidade estava contrariado. A mistura de sentimentos prova isso. Há torcida contra a rival e, ao mesmo tempo, cantoria junto com arqui-inimiga. Tristeza e solidariedade quando algo dá errado com outra escola. Desespero quando algo acontece com a sua. No Porto Seco, o público que assiste é o mesmo que desfila.

Complexo Cultural é o nome adequado para o Porto Seco. Uma boa tentativa de explicação para tudo que acontece nas noites de desfile. Os ingressos adquiridos dão acesso à Passarela Carlos Alberto Barcelos, o Roxo (ícone do Carnaval de Porto Alegre). Porém, diversas atividades acontecem antes, simultaneamente e depois de uma apresentação na avenida. Quem não conseguiu comprar as entradas para os desfiles pôde ficar circulando no entorno do espaço. Há uma extensa praça da alimentação, o estande da Secretaria da Saúde, o Butekão do Samba, para quem prefere ouvir pagode, e os barracões que ficam liberados para quem quiser sanar aquela curiosidade: “o que será que vai ter na próxima escola?”. Lá acontecia uma série de ajustes nas fantasias que ainda não estavam prontas, ritmistas contavam e empilhavam instrumentos, pessoas eram maquiadas, começava o posicionamento dos carros e as últimas instruções aos componentes eram dadas. E essa comunicação entre os membros da escola, abastecida por certa de quantidade de álcool, se tornou mais efusiva. Consequentemente se ouvia mais gritos do que conselhos, e se via mais beijos do que abraços.

A primeira noite

Porto Alegre, RS - 05/02/2015 Desfile Grupão - Copacabana Foto: Maia Rubim/PMPA
Fábio Verçoza, ex Rei-Momo de Porto Alegre, é homenageado pela Copacabana (Foto: Maia Rubim/PMPA)

A ordem dos desfiles uniu as duas divisões do Carnaval de Porto Alegre. Na primeira noite, foram quatro escolas do Grupão (divisão mais baixa). Fidalgos e Aristocratas, Academia de Samba Puro, Copacabana e a Academia de Samba Praiana. Além dessas, três entidades do Grupo Especial (principal) se apresentaram. Unidos do Capão, Imperatriz Dona Leopoldina e Acadêmicos do Gravataí. As escolas do Grupão não tinham muito recurso financeiro para realizar seus desfiles, todavia não foram para avenida de cabeça baixa. Acredito que por serem agremiações constituídas de comunidades, o senso de união é bem forte.

Apresentando riqueza em suas fantasias, a Fidalgos foi ao Porto Seco contar a história da líder comunitária da Vila Pinto, Marli Medeiros. Uma promoção e defesa do direito das mulheres sob o tema: “Resgatando sonhos, reciclando vidas: Marli Medeiros”. Com muito azul e amarelo, a Samba Puro mostrou sua própria história, 32 anos de existência na comunidade Maria da Conceição. “Se chorei ou se sorri, o importante é que com a Samba Puro emoções eu vivi”, cantou a escola. Fábio Verçoza reinou por dez anos no Carnaval de Porto Alegre. O ex Rei-Momo da cidade foi homenageado pelas cores azul, rosa e branco da Copacabana, que levou para avenida a frase: “Quem foi rei nunca perde a majestade!”. A tradicional verde e rosa da Capital mostrou a trajetória de Paulo Ferreira, um político que lutou pela cultura no Estado. O tema da Praiana foi “Uma declaração de amor em Verde e Rosa: Paulo Ferreira, um homem do Carnaval.”

Porto Alegre, RS - 05/02/2015 Desfile Grupão - Academia de Samba Praiana Foto: Joel Vargas/PMPA
Academia de Samba Praiana no desfile pelo Grupão (Foto: Joel Vargas/PMPA)

“Samba e Saúde: Nas Garras do Tigre a Parceria Perfeita” foi o tema da Unidos do Capão, de Sapucaia do Sul. Com o tigre (símbolo da escola) se movimentando, o desfile inaugurou o grupo da elite do Carnaval de Porto Alegre. O culto ao corpo, as práticas saudáveis, o bem estar físico, mental e espiritual foram aspectos ressaltados pela escola. De vermelho e branco, a Unidos do Capão fez uma bela apresentação que pode deixá-la no Grupo Especial.

Em seguida, veio a Imperatriz Dona Leopoldina. A representante do bairro Rubem Berta soube aproveitar bem sua proximidade com o Porto Seco. No que anunciaram o início do desfile, as arquibancadas e pistas lotaram. Com certeza foi o grande destaque da primeira noite, não só pela popularidade, mas por cumprir requisitos chave de um desfile de campeã: variedade nas fantasias, animação da escola, samba-enredo que fixa facilmente, bom uso de cores, preenchimento da pista e uma bateria impecável. Além de tudo isso, o tema “Espelho, de filho para pai, a Imperatriz Canta Diogo para João” homenageou a história da família carioca Nogueira. “Espelho” foi uma música de João Nogueira para seu pai, e com a morte de João, Diogo passou a cantá-la, dando sequência ao ciclo. Diogo Nogueira desfilou junto à harmonia (intérpretes e músicos) da escola.

Quem fechou a noite foi a Acadêmicos de Gravataí, cantando “Entre as águas do Pará-Gûasu e da Mirim, Gravataí é Taim”. A onça negra da região metropolitana passou na avenida exaltando a Estação Ecológica do Taim, unidade de conservação de proteção da natureza, no sul do Estado. O desfile apresentou a origem do Taim, segundo a lenda indígena. Um convite para a preservação da fauna e da flora desse patrimônio natural. Eram 6h da manhã passadas quando a Acadêmicos fez o seu encerramento, nas cores são vermelho, o preto e o branco.

A segunda noite

Porto Alegre, RS - 06/02/2016 Desfile Grupo A - Bambas da Orgia Foto: Joel Vargas/PMPA
Passista dos Bambas da Orgia (Foto: Joel Vargas/PMPA)

No sábado, as demais escolas do Grupo Especial foram à passarela. Bambas da Orgia, Estado Maior da Restinga, Embaixadores do Ritmo, Império da Zona Norte, Unidos de Vila Isabel, União da Vila do IAPI e Imperadores do Samba. Com um início conturbado, o Bambas da Orgia atrasou seu desfile devido a um problema em seu abre-alas. O carro estava com um de seus pneus rasgado, assim o eixo do veículo não resistiu à distribuição de peso. Apesar do desfalque, a escola mais antiga de Porto Alegre não perdeu sua animação, ainda com um tema que falava sobre sorriso, “Sorria! Chegou Bambas da Orgia”. A popularidade da escola fez com que alguns contras não tenham sido valorizados pelo público. O samba-enredo e bateria Trovão Azul tiveram que sustentar os prejuízos da noite. Outro fator negativo para a escola, foi o mal-súbito que o vice-presidente, Damião, sofreu na concentração do desfile. Ele foi levado para o hospital no momento do ocorrido e passa bem.

“Da sabedoria busquei a humildade. Da humildade clamei por Justiça. Sou Negro, sou Rei, Kabecilê Kaô, sou Restinga!”. Homofobia, racismo e desigualdade foram tratados pela Estado Maior da Restinga. A tricolor da zona sul sempre leva um grande público para o Porto Seco. Pelo menos cinco ônibus-minhocão lotados desembarcam no Complexo Cultural toda vez que a escola se apresenta. Dessa vez não foi diferente. As alegorias e fantasias da Restinga não foram as melhores da noite, mas a bateria soube ditar o ritmo que enredo exigia: Ouço o rufar de um tambor/Anunciando um novo tempo de esperança/É o trovão de Xangô/Igualdade, justiça e amor. E quem veio do outro lado da cidade para torcer pela Restinga cantou todo o samba durante os 55 minutos de desfile.

Porto Alegre, RS - 06/02/2016 Desfile Grupo Especial - Embaixadores do Ritmo Foto: Maia Rubim/PMPA
Os sonhos da Embaixadores do Ritmo na avenida (Foto: Maia Rubim/PMPA)

Mesmo sem nunca ter vencido um Carnaval, a Embaixadores do Ritmo está incomodando as principais escolas da elite de Porto Alegre. A atual vice-campeã foi com o tema “Pintando os Sonhos na Passarela”, um conto sobre a infância, seus sonhos, ilusão e imaginação. A Embaixadores fez um desfile prestando atenção em todos os detalhes técnicos, então provavelmente voltará na terça-feira para o desfile das campeãs.

Minha grande aposta para vencedora da edição deste ano: Império da Zona Norte. Os leões alados da zona norte foram muito bem no Porto Seco. A avenida foi tomada pela sátira à morte apresentada no tema “Sua hora vai chegar… Melhor é morrer de sambar”. A cada carro, fantasia, componente deu para perceber que tinha muita vontade de vencer o Carnaval. Algo que normalmente não é comentado nos desfiles de Porto Alegre, mas é muito vivo no Rio de Janeiro é o luxo. E a Império da Zona Norte trouxe esse luxo para o Porto Seco. Sem falar que todos que assistiram ao desfile e que não conheciam o samba aprenderam na hora. Viver… sendo aprendiz/A cada instante, intensamente/Morrer de amor, sentir o sabor/De ser feliz.

“Brava Gente Guerreira, as Mãos que Alimentam a Nação Brasileira” foi a escolha da Unidos de Vila Isabel. A Tricolor de Viamão homenageou o já falecido deputado Adão Pretto, político que defendeu a reforma agrária no país. Um tema que não foi fácil de explorar, mas a Vila deu tudo de si na luta pelo enredo de 2016. Entre os convidados da escola para a avenida, estava o ex Governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra.

A União da Vila do IAPI pediu para ser vista, fez com que todos prestassem atenção na passarela. Esse era o objetivo da escola que falou sobre óculos. “Visão da vida, a Vila definida em lentes bifocais: Abra seus olhos a alegria vem aí!” foi o tema apresentado nas cores azul, vermelho e branco. Destaque para a alegoria que falava do apresentador Chacrinha, eternizado por seus óculos quadrados. O boneco que fazia alusão ao artista foi o de maior altura da noite.

Porto Alegre, RS - 06/02/2016 Desfile Grupo Especial - Imperadores do Samba Foto: Joel Vargas/PMPA
A Imperadores do Samba levantou o público no Porto Seco (Foto: Joel Vargas/PMPA)

Já eram mais de 5h da manhã quando a Imperadores do Samba foi anunciada. E não adianta, essa é a escola do povo. O frisson que a Imperadores causa na avenida é de se arrepiar, e o apelido de mar vermelho e branco pode ser visto pessoalmente. A bi-campeã do Carnaval de Porto Alegre fez um desfile praticamente perfeito, do início ao fim. Nenhum componente parou de cantar os versos do tema “Vida vai, vida vem, qual é o segredo que a vida tem?”. O tri campeonato de alguma escola ainda é inédito desde que os desfiles se mudaram para o Porto Seco, em 2003. Entretanto, a Imperadores do Samba pode sim quebrar esse recorde.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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