Fotos: Louise Soares
Nas rodas de conversas que tenho com amigos, existe um tema que rende bons argumentos, que sustentam o diálogo, falar do momento em que vivemos. Acredito que os últimos anos podem ser caracterizados pelos verbos problematizar, empoderar e representar. As divisões entre direita e esquerda, homem e mulher, negro e branco, cis e trans etc., ficaram mais expostas. Gosto de analisar isso positivamente, pois assim muita coisa linda está surgindo, e está surgindo em grande escala.
Na última quinta-feira (10) o palco do Opinião presenciou a performance de um artista que – dentre diversas definições – deve ser classificado como contemporâneo. Liniker de Barros Ferreira Campos não é “ele”, não é “ela”, é Liniker. E não há um contra-argumento sobre isso. É quase impossível crer na vivência e experiência que Liniker passa. São apenas 20 anos de vida e, ao mesmo tempo, essas duas décadas comprovam uma total exploração sobre si, uma busca – e um encontro – da sua identidade. E essa certeza de saber e de mostrar quem realmente você é, encanta.
Todos estavam boquiabertos com a imagem de Liniker. Descrevendo de maneira tradicional e arcaica, quem estava cantando era um rapaz negro, jovem, bonito e vestido de mulher, com brincos, batom e um vestido amarelo. Descrevendo de maneira atual e livre, quem estava lacrando no show era alguém que expande o conceito sobre gênero, que nos mostra o quanto há de possibilidades no mundo e que isso também não deixa de ser algo único, singular. Que a liberdade assume todas as formas possíveis quando somos sinceros com nós mesmos.
Eram onze horas da noite quando a tela do Opinião subiu, anunciando o início de um show memorável. A maioria do público foi assistir a um fenômeno da internet em 2015 e tinha a certeza de que ouviria três músicas: “Zero”, “Louise du Brésil” e “Caeu”. Essas composições fazem parte do EP Cru, lançado em outubro do ano passado, e que viralizaram, chegando a marca de 1 milhão de visualizações nos videoclipes do projeto, no intervalo de um mês. Então, o a esperança era a de ser surpreendido em um par de horas.
O início não seria menos do que um arraso. A partida foi dada com uma das faixas que estão no álbum, ainda não lançado, Remonta. Pelo que foi apresentado, o trabalho vai ser uma extensão com a mesma qualidade de Cru. O palco estava tomado de swing e descontração logo no começo. As pessoas ainda estavam extasiadas pela presença marcante de Liniker e os Caramelos (banda), todos tentando chegar o mais perto possível, procurando o melhor ângulo a fim de testemunhar e sentir tudo aquilo. A visão era testada quando veio o primeiro lacre, brincando com o olfato e com a audição: “Louise du Brésil” e o refrão passei pra dar um cheiro/Na Luisa mais Louise du Brésil. O arranjo contagiante da música da banda, composto por funk e soul, caramelizou o local. Não teve um corpo que tenha ficado imóvel naquele instante.
Sem uma posição oficial quanto ao nome das músicas que estarão em Remonta, pode ser dito que o nível intimista das letras de Liniker continuam, extremamente focado nas pessoas. Os versos “a personalidade dela parece Poliana” e “você tem flores na cabeça e pétalas no coração” são exemplos. Introspectividade também é uma das faces de quem faz teatro, dessa forma Liniker cantou “Caeu”, e teve a companhia, de suas back vocals e de quem lotou o Opinião.
O show teve espaço para homenagens e referências. Liniker disse que Naná Vasconcelos (1944-2016) é uma influência em sua música, junto de Itamar Assumpção. Então cantou mais uma de suas canções inéditas, mesclando com sucessos da música brasileira, as famigeradas estrofes deixe-me ir preciso andar/preciso andar/vou por aí a procurar, de Cartola, e deixa, deixa, deixa/eu dizer o que penso dessa vida/preciso demais desabafar, de Cláudia. Outro famoso lembrando foi Stevie Wonder com a canção “Isn’t She Lovely”.
Entretanto, desde que Porto Alegre foi escolhida para receber Liniker, uma música já era mais do que esperada: “Zero”. E valeu a pena a espera. Provando ser uma apresentação sensorial, Liniker fez o público experimentar uma das melhores sensações da vida, a de ter o vazio da expectativa completamente preenchido. A pedido de Liniker, as luzes do Opinião foram apagadas, e o jogo de luzes foi arquitetado pelos celulares. Sem exceções, o coro foi mágico na hora de cantar a gente fica mordido, não fica?. Esse foi o segundo lacre, como diz a letra de “Zero”, deixa eu bagunçar você era a ordem da casa.
Seguindo o passo-a-passo de um show, houve bis, despedidas, agradecimentos e selfie da banda com o público. Porém, o diferencial e o grande lacre da noite foi o discurso de Liniker e da back Renata Santos, onde foi ressaltada a importância da representatividade hoje em dia, e enaltecido o empoderamento das minorias. Tudo isso com um tom sincero e divertido dos dois, que fizeram um mantra para o Opinião. Uma das frases que foram repetidas em bom som foi “eu aceito o lacre em minha vida”. Liniker é Liniker. Uma pessoa linda por não ter uma única definição, linda por se permitir ser múltipla, linda pela coragem ao dizer – em qualquer lugar que vá: “vai ter bicha preta sim!”
Soul e circo na primeira Noite Morrostock do ano
A noite era a primeira edição de 2016 das Noites Morrostock. Um festival que acontece há dez anos na Capital e que conseguiu estabelecer um elo entre os participantes da última quinta-feira. Quem abriu os trabalhos foi a gaúcha Mari Martinez acompanhada da banda The Soulmates. A soul music da banda e as letras às vezes amorosas, às vezes nem tanto de Mari, compactuaram com a proposta de quem foi ao Opinião. Passada a performance teatral de Liniker, a Bandinha Di Dá Dó fechou a noite de shows com irreverência e muita interatividade com o público. Os que continuaram na casa após a apresentação principal, se divertiram com as brincadeiras em forma de música palhaços Cotoco, Teimoso Teimosia, Invisível e Zé Docinho.
Mais um excelente texto de meu primogênito.
Você está na profissão certa. Parabéns Airan.
Fotos marcantes. Parabéns Louise.