A insurreição das musas: Bárbara Santos na Festipoa Literária

por Priscila Pasko
Fotos: Louise Soares e Douglas Freitas

Há meses Camaradas – fantasia para dueto, camerata, camarim, atentado e passeata vinha sendo anunciado pelas redes sociais. O show integrou a programação da 11ª FestiPoa Literária, em Porto Alegre, no dia 03 de maio, no Salão de Atos da Ufrgs. O espetáculo, diziam os meios de comunicação, tratava-se de um projeto de Chico César, no qual o compositor e cantor paraibano cantaria parte de seu repertório, enquanto a atriz, também paraibana, Bárbara Santos, recitaria e performaria os poemas de Versos pornográficos (Confraria do vento, 2015) escritos pelo cantor e compositor. Constatação que, em parte, não deixa de ser verídica.

A relativização que faço diz respeito às notícias que ignoraram por completo a coautoria do espetáculo e, por que não considerar, o protagonismo de Bárbara no palco [perdoe-me, Chico, continuo sendo uma admiradora inconteste de suas músicas – letras, palavras, metáforas que me arrebatam – mas, aqui, meu olhar se dirige à Bárbara]. Camaradas consiste num trabalho conjunto e de importante peso autoral da parte de Bárbara, que ressignifica, empresta outra forma e sentido aos poemas por ela lidos.

Foi a quarta vez que o casal e parceiros de palco apresentaram o espetáculo. Mas a origem de Camaradas começa em 2015:  quando Chico César publicou Versos pornográficos, um pouco depois do cantor ter lançado o elogiado Estado de poesia:

“As pessoas perguntavam ‘quem é Bárbara que inspirou Estado de poesia?’ Foi um projeto que sempre fiz parte, como musa. Fiquei meio sem saber qual era o meu lugar naquilo tudo, era muita novidade para mim. Logo depois, Chico lançou Versos pornográficos e eu me senti totalmente excluída do livro e da obra [os poemas datavam antes do casal se conhecer]. Então eu fui de uma inclusão total, para algo de ‘isso não tem nada a ver comigo’. Daí pensei, ‘nossa que coisa mais careta’, né? Fiquei me revendo e revendo as minhas ideias. E, como eu estava me sentindo excluída, decidi me apropriar deste livro. Teve a ver com um processo de individuação bem pessoal mesmo. Como se eu precisasse trabalhar algumas coisas dentro de mim.”

A partir desse ponto, Bárbara conta que começou a selecionar os poemas, entre os que teriam ou não a ver com ela, os que considerava fálicos demais ou aqueles em que ela se via dizendo a outras mulheres. E de um sentimento de ciúmes, exclusão e rejeição da obra, Bárbara apropriou-se dela. Eureka, garota, eureka.

Foto: Louise Soares

Já que o assunto surgiu, o de musa, quis saber a opinião de Bárbara. Muitas mulheres, e mulheres artistas, vêm discutindo e refutando este papel – ou deixando de enaltecê-lo. Contudo, ao assisti-la no palco, percebemos que atriz sai deste lugar, inventando um outro, mais autoral e partilhado:

“O [disco] Estado de poesia me emocionou profundamente, profundamente. Foi a coisa mais linda que alguém fez para mim. Mas a situação de eu não falar sobre isso publicamente, me incomodava. E eu tinha, sim, uma vontade real de sair do lugar da musa que não fala. As pessoas chegavam para mim e diziam ‘nossa, mas você é tão isso, tão aquilo’, mas eu não sou! (risos). Elas escutavam o que o poeta falava e faziam uma imagem sobre mim que não correspondia à realidade. Até me perguntei durante o processo do Camaradas: ‘será que eu estou colocando estas mulheres [mencionadas nos poemas] no lugar onde eu não gostaria de estar?’. Mas achei que não, eu não precisava radicalizar. Ali, eu estou expressando uma sororidade, um outro tipo de acesso de afeto. Mas este lugar da musa silenciosa me incomodou bastante. E o Chico falou disso numa entrevista nesta semana. Que, para ele, [o Camaradas] é revolucionário também na medida em que eu saio do lugar de musa para o lugar de parceira e artista. Para nós, o Camaradas tem este lugar de revolução pessoal, de pensar que a gente chegou num estágio em que somos um casal, mas que também desejamos ser parceiros artísticos.”

É justamente neste ponto que a atriz desata um nó e produz uma amarração única. Nas primeiras leituras de Versos pornográficos, Bárbara experimentou. Disse ter passado por um momento de afirmação pessoal e artística. A partir daí, reinterpretou os poemas.

No ensaio The blank page” and the issues of female creativity, a escritora e crítica literária feminista americana Susan Gubar, aborda o conto da dinamarquesa Karen Blixen [The blank page], discorrendo as questões autorais e reflexões sobre o papel do narrador. Em suma, o conto trata de um convento da ordem das carmelitas que cultiva linho para a fabricação de tecidos nobres em Portugal.  A tela é tão boa que é usada como lençol nupcial nas casas reais. Acontece que, depois da noite de bodas, os lençóis são exibidos publicamente, dando fé à virgindade da princesa. Logo este lençol é recolhido pelo convento e emoldurado em uma galeria junto a outros. Ali, placas identificam o nome da princesa e sua respectiva mancha de sangue. No entanto, as peregrinas que visitam a galeria e as freiras ficam fascinadas por um lençol emoldurado: o único sem placa e sem nome, branco, limpo. Suponhamos aqui as inúmeras interpretações e possibilidades de leituras. Uma página em branco que fala tanto quanto àquela escrita.

Em determinada passagem do ensaio, Gubar, em referência ao conto de Blixen, nos lembra que muitas mulheres experimentam o próprio corpo como único meio disponível para a arte e que, assim, a distância entre a artista e a sua arte aos poucos se vê radicalmente diminuída. Além disso, a crítica aponta as metáforas ressonantes do corpo da mulher, indicando o sangue como uma destas representações. Não por acaso, durante a leitura deste ensaio, recordo que os únicos dois poemas de autoria de Bárbara, que fazem parte do Camaradas, falam justamente sobre menstruação: resíduo biográfico de uma existência, como afirmaria Gubar. Um dos poemas se chama Absorvente noturna, e a outra, esta que segue, ainda sem nome:

Vermelho nele pele e roupas
vermelho no chão rastro em gotas
vermelho na cama colchão e colcha
quando ela menstrua a casa toda sangra

Pergunto à Bárbara se a resposta à palavra pode ser o corpo, já que é ele que performa no palco e ressignifica o sentido do poema. Ela acredita que sim, e percebe isso de uma maneira mais evidente nas poesias que considera mais fálicas, como:

ereto agora
o cetro em ti poria
como se fora pura e puta poesia
recitar e excitar
até que esporraria
tudo em teus grandes lábios de veludo
depois ao cubo
ao cu iria
titilando as tetas de biquinhos duros como setas
aí meu amor em ti
eu de mim me acabaria

Foto: Douglas Freitas

“Chico me disse que os versos haviam sido transformados em ‘outra coisa’. Eu falei que essa era a ideia mesmo. Transformar em algo que eu me identificasse e tivesse a ver com os meus processos. Meu corpo de mulher coloca esta poesia em outro lugar. É muito diferente de um homem falar que está ereto, que está esporrando, e uma mulher falar isso. Dentro deste micro processo de falar destas poesias mais fálicas, uma obra que me influenciou muito foi de Beatriz B. Preciado, O manifesto contrassexual. Eu falo esta poesia do Chico, por exemplo, masturbando o meu braço, que tem a ver com esta descoberta dos falos no corpo de qualquer pessoa. No meu corpo, do que é fálico em mim, tem a ver com minha subjetividade de mulher, onde eu posso ser fálica.”

coloque-se em meu colo
colada em meu falo
calada em minha fala
engula minha gula com gula
até o talo
(…)

Sim, sem sombra de dúvidas Bárbara protagoniza uma das performances mais impactantes, e belas, do espetáculo. É neste poema, e no seguinte, que o tema da masturbação se faz presente. Percebe-se na passagem o cuidado com que Camaradas é pensado, pois é durante tais leituras que Chico César sai do palco e Bárbara fica sozinha, um instante apenas dela. Como a própria diz: em mim, me bolino só.

Beatriz Preciado, filósofa mencionada por Bárbara, defende a desterritorialização das zonas de prazer e subversão das fronteiras genitais. Para ela, no marco do contrato contrassexual, os corpos enxergam a si mesmos não como homens ou mulheres, mas sim como corpos falantes e reconhecem os outros como corpos falantes. “O corpo, que dependia de uma ordem orgânica hierarquizante e diferenciável, transforma-se em pura horizontalidade, em superfície plana onde os órgãos e as citações se deslocam em velocidade variável. O dildo realiza aí sua verdade; é efeito múltiplo e não origem única”, expõe Preciado.

O corpo como depoimento

No cenário do espetáculo Camaradas, assinado por Marisa Bentivegna, estão as ilustrações da húngura Sári Szántó – as mesmas que fazem parte do livro Versos pornográficos, de Chico César. Elas estampam tecidos estendidos em cordas e distribuídos em cena. O jogo de luz no decorrer do espetáculo, oscila entre a possível penumbra de uma madrugada quase desperta, ao dia mais radiante que nasce lá fora. O movimento do sol e da lua enquanto Chico e Bárbara Santos, corpos esquecidos do tempo, criam as próprias horas. Os dois pufs brancos que também compõe o cenário e o figurino de tons claros fazem alusão a um quarto de casal: morno, aconchegante, ocioso, lascivo.

De certa forma, Bárbara, por meio da interpretação dos poemas converte o privado em público, dissolve a cama no palco. Ela concorda, por isso diz que está “performando”, inclusive a sua relação com Chico e os estágios do processo de individuação, de se rever dentro da relação.

“A gente fala que, no Camaradas, eu estou como performer porque muita coisa é, na verdade, um depoimento. O corpo que dou para a poesia é um depoimento sobre mim e sobre o que eu penso a partir daquelas palavras. A poesia tem esta faceta de ser aberta, de você ter uma multiplicidade de interpretações e de significados. A gente vive este lugar de aceitação do outro, sabe? Eu falando as poesias para estas mulheres há três anos e meio era de um jeito, agora é de outro. Faz realmente mais sentido quando eu digo:

debora tem uma flor rosa entre as pernas
ela é toda um pouco rosa mas a flor é mais
essa flor é onde debora é mais cheirosa

Peguei todas as obras nas quais os poemas falavam das musas que inspiravam Chico e decidi me declarar para essas mulheres. Tem a ver também com um processo super pessoal de pensar o amor mais livre, includente, que aceite os afetos do outro, que foram construídos e que não se acaba, se transforma na vida do outro, desta pessoa que eu me relaciono. Então, falar essas poesias e dar corpo a elas foram transformando a minha subjetividade. Tem esse lance do amor de uma maneira mais livre, de um relacionamento aberto. Eu trago isso nas poesias que falam de outras mulheres, e foi um jeito também de eu me resolver com isso.”

Foto: Douglas Freitas

Em um pequeno ensaio intitulado O texto feminino na literatura, de autoria de Márcia Denser, a escritora expõe a importância da perspectiva da mulher na ficção – para ser mais exata, na literatura brasileira, a partir da década de 1980. Marcia, ao se referir à prosa erótica, lembra que o erotismo é sempre tido como algo “tremendo”, “incestuoso”, “hoteleiro”, “adúltero”, “aidético”, “gerontológico” e “impúbere”. Marcia questiona as conotações nada alegres e pergunta por que o erotismo não é associado à ternura, à simplicidade, à naturalidade, ao amor. É provável, penso eu, que tal relação sombria fale mais a respeito do nosso puritanismo, falta de ludicidade e culto à violência do que imaginamos.

Quero saber de Bárbara a sua opinião a respeito do trecho mencionado acima. Ela conta que um dos momentos que mais gosta em Camaradas são as poesias dirigidas às mulheres:

“Mirar alguém na plateia e dizer ‘pronto, essa vai ser minha Amanda, ou essa vai ser minha Cristina’. É um momento com menos recurso artístico. Apenas a palavra. É o momento do afeto, de estabelecer a relação com esta pessoa com quem estou falando, e isso me comove de uma maneira muito fantástica. Eu percebo a relação afetuosa que é estabelecida ali com a plateia. Dentro do espetáculo do Camaradas, eu me vejo meio como fazendo uma serenata. Sabe aquela coisa bem brega e romântica? Mas, como eu sou uma mulher, e como essa poesia e essas mulheres não eram amores meus, eu as trouxe para mim, numa necessidade de me incluir na relação dos outros. Eu vejo como um afeto revolucionário deste ponto de vista.

Não apenas o afeto parece adotar um caráter transformador, o corpo e a sua expressão também – haja vista o fechamento de exposições artísticas aqui no Brasil e as tentativas de censura a performances nas quais o corpo se manifesta. Bárbara diz que tem enxergado muitos os seus privilégios físicos, o de não incomodar em determinados lugares, por exemplo, por corresponder a algum tipo de padrão heteronormativo.

“Perceber que você está neste lugar de privilégio é a chave. Porque a pessoa que não corresponde a este padrão, que tem uma aparência queer, percebe isso no dia a dia. A chave é quando uma maioria que se comporta de uma maneira heteronormativa se percebe neste lugar de privilégio, de ela ser respeitada porque é uma mulher cis ou um homem cis. Ao mesmo tempo, pequenas coisas, como ter um sovaco cabeludo, por exemplo, choca de uma maneira (risos). Então o corpo é o principal território político. Nestas frestas, onde a heteronormatividade não comporta, é que a gente percebe. Temos que estar muito atentos aos ruídos que a gente causa, quando acontece uma falha no sistema de signos da heteronormatividade.”

Enquanto converso com a atriz, retomo mentalmente o ensaio de Marcia Denser, quando ela escreve que, a partir dos anos 1960, as escritoras brasileiras – e podemos pensar aqui nas mulheres feministas de forma mais abrangente – “começam a repensar a sexualidade feminina como um elemento fundamental da identidade, principalmente considerando o controle social exercido sobre seu corpo que ocorre através da história (e até hoje!)”. Pergunto à Bárbara se, para ela, a sexualidade feminina é um elemento fundamental de sua identidade:

“De uma maneira pessoal, sim. Para mim, isso é muito importante hoje. E é com esse olhar que vejo o mundo. Mas isso é muito a partir da minha perspectiva. Acho que a gente está num momento onde a sexualidade é política também. Você expor isso, não velar é uma atitude política. A medida que você não esconde isso, você está performando no mundo e, por performar o mundo, transformando ele através da sua ação. Seja fazer carinho em uma amiga, seja andar de mãos dadas com uma namorada ou namorado. Até mesmo o amor entre um homem e uma mulher que é mais aceito, um amor heteronormativo.

A gente tem vivido no Brasil um momento de tanta falta de amor. O afeto é revolucionário no mundo, nas suas múltiplas formas, e a gente aceitar esta multiplicidade de eroticidade é também abrir uma visão política para um mundo múltiplo, diverso, para várias possibilidades de existência. É um assunto que, pessoalmente, é muito recorrente em mim e na minha obra artística. E é justamente neste tema que eu me junto ao Chico para fazer um trabalho junto.

Foto: Louise Soares

Bárbara formou-se em ciências religiosas na UFPB, e mora em São Paulo desde 2014. Lá, participa do coletivo Estopô Balaio  – projeto que conta em sua maioria com artistas migrantes – e do coletivo de cinema Arenga, uma parceria de Bárbara com as amigas Anna Zêpa e Ana Carolina Marinho. O trio decidiu se unir para fazer o próprio cinema:

“Eu estava cansada de fazer cach, agradar diretor. Todos os diretores são homens, eu não queria mais ficar correndo atrás (risos). Nos inscrevemos num edital em São Paulo e, no fim das contas, passamos em primeiro lugar, eu fui a proponente [o nome provisório do curta-metragem é Entre margens]. Eu só havia trabalhado em alguns filmes como atriz, na Paraíba. A Ana Carolina Marinho é parceira do cineasta Cristiano Burlan, então já tinha trabalhado em produção e roteiro também, mas nunca dirigido ou escrito sozinha um roteiro. A Ana Zêpa é produtora e atriz. Se juntaram a nós duas meninas fantásticas, que é a Cris Lyra, que vai fazer a direção de fotografia, e a Alice Assal, que ficará responsável pela direção de arte. No projeto, propomos que toda a equipe fosse composta por mulheres, a única exceção é um homem que faz parte como ator. Começamos a gravar em junho.”

Exceto os espíritos mais pudicos presentes na plateia, que se incomodaram com a nudez dos artistas no palco (ah, sim, a dupla fica sem roupa na primeira parte do espetáculo), o clima foi de extrema empatia e troca entre o público e a dupla. Pois, além do “sarau amoral”, como Chico César denominou o evento, temas da atual política nacional (esta sim, motivo de rubor e constrangimento) foram lembrados. Manifestações de “Lula Livre”, “Fora Temer” e “Marielle, presente” marcaram alguns momentos.

O grande mérito, a meu ver, do espetáculo Camaradas é a ternura que ele provoca. Bárbara e Chico expõem de maneira poética e delicada o amor que dialoga com o sexo, aquele que se lambuza de tanto querer. Discorrem, os artistas, sobre o gozo do corpo e a alegria de saber-se amar e ser amado. E, bem se sabe, que, uma vez na vida tendo vivenciado isso, já terá valido a pena.

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