Por Pedro Palaoro
A música independente tem escrito capítulos cada vez mais interessantes sobre os artistas que batalham para viver unicamente de sua arte. Com a popularização da tecnologia, as oportunidades de difundir arte autoral nunca mais foram como antes, e nesse cenário os selos de música independente tem papel fundamental lubrificando as cenas que habitam.
Cidades como Porto Alegre sofreram baques em suas cenas de música autoral na última década, após inúmeros bares e casas de show fecharem ou irem a falência. A queda de público foi a grande justificativa para isso acontecer, na época, segundo donos de bares e músicos. Mas como é de se imaginar, as cenas de música autoral simplesmente não desapareceram, mas tiveram que se reestruturar.
O público começou a escolher mais os shows para ir, pois a internet passou a ser a fonte primordial para descoberta de novos artistas, fossem eles locais ou não. E foi justamente pelas vias digitais que nasceu um novo modo de se fazer música independente, com artistas hiperconectados diretamente com seus fãs e selos independentes que alicerçam toda uma estrutura para que a música vá além dos bits virtuais.
Polos de cultura colaborativa
Há alguns anos selos fonográficos não podiam ser considerados mais do que um nicho de uma cena artística. Hoje, como explica Mario Arruda, do selo Lezma Records (que tem no catálogo bandas como a Chimi Churris), a produção de shows, festivais e a produção musical propriamente dita acaba sendo totalmente colaborativa — e não se está forçando ao usar esse termo tão citado ultimamente.
A colaboração a que Mario se refere não se resume a chamar artistas semelhantes para alugar um espaço em comum e fazer uma festa. O tipo de cena independente que a Lezma Records participa busca unir artistas de todas as plataformas e estilos, seja música, vídeo ou artes plásticas para realmente aglomerar público também de modo colaborativo. Cada artista leva seus fãs, e no final todo mundo se conecta. Isso tem acontecido cada vez mais em casas abandonas ou terrenos que geralmente não são utilizados para espetáculos ou aglomerações.
Como na KinoBeat, festival de música eletrônica do qual a Lezma participou colocando a banda Supervão, do próprio Mario, para tocar em um dos cômodos da Casa Frasca, um antigo casarão da Avenida Independência. Lá, além de DJs e bandas, havia artistas plásticos e visuais, fotógrafos e outros inúmeros tipos de colaboradores diferentes ornamentando o ambiente.
Veja abaixo um dos vídeos dos evento:
Assim como a Lezma Records, baseada na região de Porto Alegre, a Honey Bomb, de Caxias do Sul, tem o mesmo entendimento desse novo tipo de cena. Eduardo Panozzo, da Honey Bomb, considera que “é papel do artista fazer a cena, mas isso envolve mais do que simplesmente tocar, também tem que produzir e organizar os eventos” para que a cena não seja de algum modo bancada por alguém e realmente haja uma colaboração artística.
A Honey Bomb fez parte da fundação da Casa Paralela, um local em Caxias do Sul no qual se fazem festas, e as bandas de música autoral podem tocar. Segundo Eduardo, quando a HB surgiu existiam muito mais locais para bandas cover tocarem e isso dificultava um pouco quem queria fazer sua própria música.
Para Eduardo, cidades maiores têm uma maior dificuldade de criar cenas mais mistas, pois existem nichos muito segmentados, o que acaba afastando as pessoas e os artistas em si, diferentemente de cidade menores. O interessante é que foi exatamente quebrando essa regra e chamando artistas das mais diferentes matizes que a Lezma e seus parceiros estão conseguindo reerguer uma cena que por anos ficou desacreditada.
Um pouco diferente da Lezma e Honey Bomb, a Marquise51 é um selo de Porto Alegre com quase dez anos de serviço a artistas e festivais pelo estado. No casting da Marquise51, estão Acústicos & Valvulados, Tenente Cascavel, Identidade, Replicantes e festivais como Morrostock e Grito Rock e tantos outros. Por contarem com tantos artistas do primeiro escalão da música estadual em seu casting, poderiam muito bem serem confundidos com uma iniciativa tradicional, mas vão muito além.
Lucas Hanke, do Marquise51, comenta que hoje “é um grande desafio fazer as pessoas ouvirem novos artistas,” e cita a importância da internet na divulgação artística. Nesse sentido, o Marquise51 hoje se define como uma central criativa que acolhe produtores culturais de todas as estirpes e nichos de mercado, somando inúmeras possibilidades de serviços a artistas, e é nessa colaboração que eles buscam fortalecer o cenário cultural em um nível ainda mais profissional.
Viver de arte
Para muitos artistas, a cena de música independente sempre foi muito importante para manter o sonho de viver de sua arte, mas essa não é uma realidade conquistada por todos. Nesse sentido, a cena colaborativa se torna uma opção muito atraente para artistas que buscam se manter permanentemente circulando pelo cenário artístico.
Ao contar como funciona a relação dos selos com os artistas, Eduardo confidencia que é complexo para os músicos entenderem como funciona o lançamento de um artista na cena — “a parte mais difícil de ser produtor musical é ser psicólogo” — afirma brincando quando menciona a ansiedade inerente aos novos músicos. E conclui, que depois de alguns anos de experiência, que às vezes viver da sua arte é simplesmente “não gastar para viver,” pois compreende que é uma carreira que depende da entrega pessoal.
Mario compartilha muito do pensamento de Eduardo ao comparar a cena de música independente a uma engrenagem: “não basta apenas passar pela engrenagem, é preciso fazer parte dela,” e conta que o Lezma Records hoje não vive propriamente dos shows e festivais, mas se utiliza deles para investir no selo e consequentemente em equipamentos que virão a serem utilizados nesses eventos, e acredita que os artistas podem tirar ensinamentos disso.
Ecoando além das fronteiras
Esse investimento que a Lezma acaba fazendo no cenário musical não é apenas material e de presença, mas também intelectual. Mario, que além de idealizador da Lezma é bolsista na UFRGS, conta que na universidade estuda para tentar compreender a rede cultural existente hoje e como ela vem quebrando paradigmas e limitações antes intransponíveis.
Os limites a que Mario se refere não estão apenas nos conceitos de espaço e meio cultural, mas também com relação ao conteúdo e aos tipos de manifestações que ecoam com essas iniciativas culturais. Ele considera que o crescimento de um cenário musical independente potencializa a própria existência de arte independente, já que hoje, no discurso do cenário independente estão presentes diversas questões sociais em voga.
As questões que vão de encontro à oratória de Mario também são citadas por Lucas, ao considerar o cenário cultural atual. Temas como diversidade sexual, ecologia e preocupação com demandas sociais urbanas podem ser vistos em grande parte dos artistas que hoje se baseiam em redes culturais independentes, como Liniker.
Liniker, citado diretamente por Lucas e Eduardo, é um artista que pode ser incluído nesse complexo discurso que floresce no cenário autoral de arte. Artista nato, proveniente da periferia e autodeclarado gay, ele é um símbolo da convergência emergente da cultura com as questões sociais e políticas. E a colaboração? A colaboração cultural nada mais é que o reflexo da necessidade de fusão e mixagem de todos os sentimentos, sons, imagens e cheiros que só a arte pode proporcionar.
Ouça:
HoneyBomb Records: https://honeybombrecords.bandcamp.com/
Lezma Records: http://lezmarecords.com.br/
Marquise51: http://marquise51.com.br/bandas/