Entrevista: Salma Jô desconstrói seu processo de criação e o papel da arte política na Carne Doce

Entrevista: Ananda Zambi e Marta Karrer

Fotos: Bruno Bujes

Nos dias 26 e 27 de julho, na nova casa de shows Agulha, a banda goiana Carne Doce se apresentou novamente em Porto Alegre, fazendo a felicidade dos amantes da música independente brasileira. Grande parte das pessoas que os viram em março deste ano também estavam nesses shows – é um espetáculo arrebatador que sempre vale a pena ver.

A banda, formada por Salma Jô, Macloys Aquino, João Victor Santana, Ricardo Machado e Aderson Maia surgiu em 2013 e tem dois discos lançados. O último, Princesa (2016), foi eleito um dos melhores do ano por diversos sites especializados, como Rolling Stone, Miojo Indie e Tenho Mais Discos que Amigos. Princesa é um disco forte, que fala de machismo, aborto, solidão e relações amorosas.

Salma Jô é uma deusa no palco, não há como negar. Seus movimentos bruscos, seus cabelos jogados de um lado para o outro e sua voz diferente e super potente hipnotizam quem está à sua volta. Fora dele, é uma mulher gentil, que conversou conosco com disposição e sinceridade sobre cena independente, trajetória musical e cobranças do público. Confira:

 

Nonada – Como vocês enxergam a cena de Goiânia com relação às outras regiões do Brasil?

Salma Jô – Goiânia tem muita banda, mesmo o público não sendo tão grande. Acho que o público é menor que o número de bandas que tem lá. A cena é muito produtiva, nesse sentido das bandas que surgem, por causa dos festivais que tem lá há muito tempo, e aí virou uma cena mais ou menos forte – não necessariamente para as bandas que vão tocar lá. Às vezes é difícil, as bandas vão para lá esperando encontrar um público super fascinado com música independente e não é bem assim. E também nem tem tantos lugares assim para tocar. Tem umas três, quatro casas, mais ou menos, e tem esses três festivais que ocorrem uma vez por ano.

Nonada – Os festivais são o Bananada, o Goiânia Noise Festival e…?

Salma Jô – E o Vaca Amarela. Mas tem muita banda porque esses festivais já tem muito tempo e isso criou uma cultura lá.

A Carne Doce se apresentou no Agulho, novo espaço de Porto Alegre (Foto: Bruno Bujes)

Nonada – Você acha que essa cena pode ser ofuscada pelo movimento sertanejo?

Salma Jô – Na verdade, não conversa. Como se um não soubesse da existência do outro. Não, é lógico que a gente sabe da existência do sertanejo, mas o sertanejo não sabe da existência da música independente, desse cenário, e não tem necessariamente um conflito. Mas eu acho que a cena é forte também porque essas pessoas que não se encontram na cultura do sertanejo se encontram na cena independente.

O João (João Victor Santana, guitarrista e produtor), que veio do interior, disse que quando chegou em Goiânia e ele foi no [Centro Cultural] Martim Cererê, que é um lugar clássico, um teatro que existe desde sempre – desde sempre tem festival lá e shows de rock – ele se viu dentro de um filme, porque ele não imaginava aquele cenário, gente vestida diferente, pessoas gays – que são tratadas como se não existissem na cidade – , todas as pessoas que são rebeldes e estão nesse perfil do sertanejo, de alguma maneira, elas se identificam na cultura do rock. Tem gente de todo tipo.

Nonada – Quem acompanha bastante a cena, já conhece a amizade de vocês com o Boogarins, já que vocês surgiram em um contexto parecido. Cada banda seguiu o seu caminho, mas vocês ainda andam meio juntos. Existe a chance de rolar algo como “Benzin” de novo?

Salma Jô – Não sei. O empecilho maior é da minha parte mesmo, sou muito insegura. Eu tenho muito medo de compor junto. O Dinho (Almeida) é uma pessoa super aberta, super solta, que já foi lá em casa várias vezes para fazer letras. Mas eu ainda fico toda angustiada, até porque o jeito que ele escreve é diferente do meu. O jeito que ele faz a poesia dele é bem diferente, ele fala mais de fuga. Parece que as ideias que eu tenho nunca vão servir pra ele. Inclusive, teve uma vez que ele me pediu ideias para uma letra e eu fiz várias ideias, fiz até uma tabela com várias possibilidades, e disse: “Você faz o que você quiser”. Para mim, compor junto é difícil. Eu fico com vergonha. Eu prefiro ficar isolada, sozinha, aí só quando está pronta eu me arrisco a mostrar para os outros.

Nonada – Vocês têm músicas muito politizadas, como Falo, Artemísia e até Sertão Urbano. Isso cria uma expectativa de que vocês se posicionem o tempo inteiro, como se vocês tivessem que ter opinião sobre tudo?

Salma Jô, vocalista e compositora, não se sente pressionada em fazer arte política (Foto: Bruno Bujes)

Salma Jô – Eu não sinto tanto essa cobrança, não. Por exemplo, a gente tem música como “Eu te Odeio” e “Fetiche”, que falam mais de relacionamentos, e as pessoas assimilam bem. “Amiga” também fala de solidão. Quando a gente fala do indivíduo, isso cai bem. Mas no caso do Princesa, por exemplo, eu percebi que as pessoas tiveram uma interpretação geral das coisas, como se eu sempre estivesse fazendo uma denúncia. Como se eu quisesse fazer sempre música feminista. Tipo, em “Cetapensâno” eu não tive muita intenção de ser política, eu tava só pintando um quadro, uma ceninha de dois machões que cometem um ato falho, mas eu não estava querendo necessariamente ser crítica. Mas aí as pessoas ficam esperando essa crítica e ficam caçando essa crítica onde às vezes nem tem. Mas eu não sinto a cobrança de ser necessariamente política não.

Nonada – Na vida pessoal também não?

Salma Jô – Não… acho que se a gente fizesse um terceiro disco, por exemplo, só de relação amorosa, acho que também não seria um problema.

Nonada – Eu sempre ouço falar que as letras são tuas e tu gosta de ter controle sobre elas. Como isso se encaixa no instrumental? Como tudo casa no final?

Salma Jô – Então, eu acho que eu intimido os meninos (risos), eles ficam intimidados comigo. Tanto é que eles nem falam nada das letras. Quando eu dou uma letra, está acabado. Eu simplesmente chego e concedo a palavra final nas letras (risos). É meio pesado isso, eu não sei como eu faço isso, mas eu faço. O Aderson (Maia, baixista), por exemplo, já se ofereceu para fazer uma letra, mas eu não dei espaço. Porque as letras são minha grande contribuição na banda, então não quero dar espaço para ninguém (risos), porque eu acho que eu faço bem. E por eu ter feito isso, isso virou a marca do Carne Doce. O meu jeito de fazer letra virou o jeitinho Carne Doce de ser.

Nonada – Quais foram as maiores diferenças entre os álbuns Carne Doce e Princesa?

Salma Jô – Eu acho que eu amadureci mais, para cantar e para escrever – apesar de que no segundo disco você ainda fica mais apreensivo. No primeiro disco, quando ninguém te conhece, você pode fazer tudo. E às vezes você pode até fazer as coisas nesse desespero de que ninguém te conhece: xingar mais, ou ser mais agressivo, ser mais expansivo ou falar de tudo ao mesmo tempo. Eu acho que tem mais disso no primeiro disco, uma coisa meio perdida, meio apavorada e meio angustiada para falar. Do tipo “virei cantora e vou falar tudo o que estava na minha cabeça até agora”. Mas no segundo disco já tem uma responsabilidade, você já atingiu as pessoas, e elas já tão esperando alguma coisa, tem que manter esse público e ampliar mais público…e tudo fica mais sério. Tudo ficou mais sério no segundo disco.

O primeiro álbum da banda foi eleito o melhor do ano por vários sites especializados (Foto: Bruno Bujes)

Nonada – Você acha que essa seriedade contribuiu para colocar o “Princesa” em tantas listas de fins de ano, como a da Rolling Stone e a da Tenho Mais Discos que Amigos?

Salma Jô – Sim, mas a gente também já tinha aparecido mais, tem esse peso. Porque o primeiro disco também foi bem, ele também apareceu em algumas listas, mas a gente ainda era desconhecido para alguns críticos, para alguns jornalistas, talvez alguns tivessem um pé atrás. A gente conquistou muita gente através do show mais do que do disco. No segundo as pessoas estavam mais abertas a gostar da gente também. Mas por que ele foi tão bem? Os meninos amadureceram muito, a banda ficou mais afinada para compor junto, ficou mais fácil, mais tranquilo, mais bonito. Acho que os arranjos ficaram bem melhores, apesar das músicas ficarem longas, o que é um problema pra fazer as pessoas escutarem. Ficou mais criativo mesmo. Fez sentido a gente ter sido bem criticado (risos).

Nonada – Quais os momentos que vocês destacam na trajetória de vocês que fizeram a banda chegar até aqui?

Salma Jô – Tocar aqui no sul foi muito importante. A gente tocou uma primeira vez aqui em Porto Alegre e na segunda vez a gente esgotou uma data, e teve que criar outra. Esses sinais são muito fortes para gente falar: “Tá dando muito certo, a gente consegue atingir as pessoas, o nosso show é bom”. Ter chegado em São Paulo e conquistado uma galera foi muito importante, e no Rio de Janeiro também. A gente tem uma segurança de chegar lá e tocar de novo. E é muito importante estar em São Paulo, porque é lá que estão os produtores, os principais jornalistas, você tem que impressionar essa galera mesmo para repercutir. Os festivais que a gente faz, o Bananada… todas as nossas participações no Bananada, mas principalmente essa última foi muito superação. A gente deixou de fazer bonito como banda local para fazer bonito no festival como um todo, impressionar como banda grande do festival. Tocar no SESC Pompeia foi muito importante, no Circo Voador também.

 

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