Teatro de Arena chega aos 50 como símbolo de resistência em Porto Alegre

Fotos: Anselmo Cunha

Atualizada em 5/1/2017

Um jovem ator se levanta no meio da plateia. Ele quer expor sua angústia aos colegas de profissão, que lotam a sala em formato de arena. “Outro dia, estava apresentando uma performance na rua, quando ouvi alguém gritar: ‘vai trabalhar, vagabundo!’ Quando foi que o público deixou de nos entender?” A cena é de 2016, em um dos debates do Festival Palco Giratório, mas poderia ser também da época da ditadura militar. Há 50 anos, estudantes já se reuniam naquele porão nas escadarias da Avenida Borges de Medeiros, em Porto Alegre, para pensar sobre as artes cênicas e sobre a situação política e social do país.

No ano de seu cinquentenário, o Teatro acaba de lançar uma campanha de financiamento coletivo no Catarse voltada à reforma elétrica do prédio, delegando ao público o dever do governo de reformar e manter equipamentos culturais. A campanha, denominada Iluminando o Arena, é atribuída à Associação de Amigos do Teatro de Arena. Com valor total de R$ 30 mil, estão previstas a reforma elétrica da caixa cênica e demais dependências, novas lampadas cênicas e a retirada do ar central.

Símbolo da resistência ao regime militar, o Teatro de Arena mantém as marcas daquela época: um acervo com dezenas de textos, incluindo uma seção de peças censuradas pela ditadura, com palavras riscadas e trechos que deveriam ser alterados na dramaturgia. De acordo com o diretor da instituição, Clóvis Rocha, os documentos devem ser digitalizados e disponibilizados ao público em breve, assim como o acervo de vídeos com entrevistas de atores e diretores, que está arquivado em VHS. “Nós estamos agora fazendo um levantamento com arquivistas e vamos fazer um projeto para catalogar e disponibilizar online esses documentos”, conta.

O Festival Palco Giratório lotou o teatro em debate (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

O Arena completa 50 anos em 2017 com alguns desafios pela frente. Um deles é a manutenção do edital de pesquisa e fomento às artes cênicas, que já originou espetáculos premiados como Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea e Breves Entrevistas com Homens Hediondos, para citar alguns mais recentes. “Poder criar o espetáculo no lugar onde ele vai ser apresentado é fundamental para o tipo de pesquisa que nós do Teatro Sarcáustico fazemos por exemplo, pois entendemos que o espaço também é dramaturgia. Outra importância é financiar trabalhos de pesquisa que não se sustentariam por bilheteria pelo seu caráter mais experimental”, diz Ricardo Zigomático, que dirigiu e atuou em Breves Entrevistas.

Diretora da peça Concentração, Ana Zanandréa denuncia que não recebeu o prêmio no prazo previsto. “O pior problema do teatro de arena é o sucateamento que ele sofre agora por causa do descaso da administração pública. Nós ganhamos um edital, tínhamos o prazo previsto de executá-lo em 2015, e nós executamos, fizemos tudo sem receber o dinheiro. Nós só recebemos a verba em outubro. Ou seja, nós tivemos que fazer um empréstimo e bancar toda a produção pra cumprir com a nossa parte”, conta a diretora do espetáculo, que entrou em cartaz apenas neste ano. “Não sabemos se o edital terá continuidade”, ela completa.

Pouca iluminação nas escadarias da Borges (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

A direção do Teatro diz que o edital não foi lançado em 2016 devido ao atraso na programação causado pela falta de verbas. No lugar, foi lançado um edital de ocupação para grupos que queiram se apresentar no Arena sem nenhum tipo de financiamento durante o ano. O objetivo é selecionar 18 projetos de circo, dança e teatro para entrarem em cartaz no último trimestre, que deverão pagar uma diária de R$ 100 para ocupar o espaço. O governo garante que os prêmios vão voltar em 2017, com a previsão de uma série de atividades em comemoração aos 50 anos do Teatro. Ainda nos próximos meses, segundo o diretor, devem ser lançados dois prêmios de 50 mil reais para montagens inéditas e que contem a história do Teatro de Arena, em qualquer linguagem cênica.

Outro desafio é atrair pessoas para além do público especializado, um problema recorrente na cidade. O Arena tem uma plateia cativa, mas a pouca iluminação nas escadas e relatos de alguns assaltos afastam o potencial de atrair ainda mais pessoas. “Existe muita insegurança naquelas escadas, já foi denunciado no ano passado. Nós já chamamos a Brigada Militar, mas ela não vem”, lamenta Ana. Clóvis confirma que funcionários do teatro já foram assaltados nas redondezas, mas acredita que a solução é ocupar melhor as escadarias. Para Zigomático, “o centro é um lugar bem seguro quando ocupado. Acho que a questão é como atrair mais público para o teatro como um todo, por causa isso, também, a importância do Arena e do seu edital”.

A política na vanguarda da arte 

Mauro Soares é testemunha da resistência através dos tempos (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

As paredes do Arena, cobertas por inúmeros cartazes de espetáculos apresentados nas últimas décadas, são impregnadas por histórias de luta. O teatro surgiu em 1967, a partir da necessidade de um novo espaço para as artes cênicas em Porto Alegre, já que os existentes estavam sempre ocupados. Um porão nas escadarias da Borges de Medeiros, recém-descoberto pelo ator Jairo de Andrade e o Grupo de Teatro Independente, abrigaria uma parte importante da história de Porto Alegre. “Eles mesmos fizeram a reforma. Eles cavaram, tiraram uma pedra que estava no meio do palco, e o teatro inaugurou com a peça O Santo Inquérito, de Dias Gomes”, conta Mauro Soares, que, além de atuar como coadjuvante em várias peças, conhece as origens do Arena, onde atualmente é funcionário.

Assim como no Teatro de Arena de São Paulo, fundado em 1950, a censura da Ditadura Militar violentava com frequência as criações dos artistas, que traziam releituras de nomes como Bertolt Brecht. Ainda assim, o espaço continuou sendo palco também de debates políticos. “Era um clima de bastante efervescência, depois das peças havia muitos debates, os diretórios acadêmicos eram muito vinculados ao Arena. A gente andava em grupos na rua porque se um desaparecesse, os outros saberiam onde ele estava antes. O teatro virou um ponto de encontro”, relembra Mauro.

Cartazes de peças históricas cobrem as paredes do Arena (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

A experimentação e a resistência cultural sobrevivem na história do Arena, por meio dos espetáculos que tomam o palco. Última peça a realizar uma temporada no Teatro, Concentração é um dos exemplos, trazendo questionamentos sobre a manipulação midiática e o fascínio do público pela espetacularização da violência. “Para nós, foi muito significativo realizar esse espetáculo neste teatro, que também é uma arena, fazendo uma referência às arenas romanas onde existiam aqueles espetáculos brutais. Os teatros de arena foram locais de resistência, que sempre buscaram questionar a sociedade e principalmente a política da sociedade”, diz a diretora, Ana Zanandréa.

“O Arena se mostrou um espaço concreto de encontro de idéias tanto nos anos mais duros do nosso país como até hoje. Sua importância enquanto espaço cênico único na cidade de Porto Alegre para se fazer um teatro onde além do artista dialogar e estar muito próximo com a plateia, a própria plateia se enxerga e se confronta”, acredita Zigomático. Se depender dos artistas e do público cativo que encontra naquelas paredes uma espécie de reconforto na luta, o Teatro de Arena continuará resistindo aos golpes.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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