Na foto: Juventude kaingang resgata a cultura tradicional em datas comemorativas (Divulgação/PMPA)
No extremo da Zona Leste de Porto Alegre, quase divisa com Viamão, bem em frente à parada nº 25 da Lomba do Pinheiro, localiza-se a Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Fag Nhin, na Aldeia Kaingang Fag Nhin. Para chegar lá, foi outra história. Por ficar em uma área pouca conhecida por mim, acabei pegando um ônibus que me deixou relativamente perto, o resto do caminho cumpri a pé, cozinhando sob o sol sempre aterrador de dezembro. Mas não importava. Eu estava empolgado. Depois de muito ralar para conseguir uma fonte, consegui o contato do diretor da escola já citada, do povo Kaingang, e ele se mostrou solícito para uma entrevista.
Ao me aproximar do colégio, que fica dentro de uma reserva em que moram 53 famílias (o que dá em torno de 160 pessoas), começava a ficar um pouco apreensivo. É sempre difícil e problemático contar uma realidade que não é nossa: ainda mais na minha condição de jornalista branco, invadindo aquele espaço para “roubar” palavras com o intuito de preencher uma matéria. O que eu poderia fazer no meio disso tudo? Era o que passava na minha cabeça quando avistei Amilton Mello, kaingang, diretor do colégio, que me esperava logo na entrada. Decidi que o melhor a fazer era escutar. Aprender. E, então, escrever da melhor forma que eu pudesse (ou, pelo menos, tentar).
Ao entrar e cumprimentá-lo, logo pude observar a grande figueira que ficava à frente do colégio. “Essa é a marca da aldeia”, ele me disse, pegando duas cadeiras para sentarmos em frente à árvore, em frente ao colégio. Estava tudo tranquilo. O ano letivo já terminara e grande parte dos moradores havia saído para vender os artesanatos, que é maior fonte de renda deles. Amilton é um homem de alta estatura, e que há cinco anos se mudou para Porto Alegre a fim de estudar Educação Física na Ufrgs. Antes, morava na Aldeia da Guarita, localizada no noroeste do Estado, perto da cidade de Tenente Portela.
Experiente, ele leciona no magistério há vinte anos. Começou como professor na Fag Nhin em 2010 e, em 2012, para ajudar a comunidade e a convite da Secretaria, assumiu a função como diretor. “Naquela época, tínhamos apenas os anos iniciais do Fundamental. Eu consegui autorizar e registrar no Conselho Estadual e, a partir daí, a cada ano ela começou a acrescentar uma série. Atualmente já estamos com os nove anos”, explica. O diretor, visivelmente empolgado, também me diz que a primeira turma se formou em 2015, algumas semanas antes da entrevista. Foram cinco alunos, que agora vão ter que sair da comunidade para estudar.
O quadro da escola é composto por 81 alunos, sendo que o número aumenta para 91 com o EJA, em que as aulas são dadas no turno da noite com foco na alfabetização, tanto no português como na língua kaingang. Entre algumas das diferenças da Escola Indígena está o calendário do ano letivo, que começa em fevereiro e vai até novembro. “Nós não fazemos todos os feriados dos calendários, fazemos apenas o que realmente comemoramos. Porém, ela acaba se tornando dia letivo também devido às atividades que são feitas na comunidade e fora dela”, argumenta o diretor. Outro motivo para o ano escolar terminar mais cedo é que a maioria dos indígenas na época do fim do ano viaja para a praia e para outros lugares (como Gramado e o Natal Luz) para vender o artesanato que está estocado. “Não adiantaria a gente ir além, porque íamos ficar sem alunos na Escola. Então, tive que adaptar esse calendário a realidade da comunidade”, diz.
Metades tribais e valores culturais
Atualmente, a escola tem professores formados nas áreas específicas de ensino, contando com doze profissionais. Como o foco da nossa matéria era a relação das artes, fiquei tentando entender como funcionava esse campo na educação diferenciada. Ainda que eles mantenham uma estrutura muito semelhante aos outros colégios, a disciplina de artes segue parte do currículo normal com foco também na tradição da etnia Kaingang. Eles têm o acréscimo de duas matérias: Língua Kaingang e Valores Culturais. “A primeira trabalha exatamente o que propõem: a alfabetização e a fala Kaingang. Já a segunda, trabalha mais com os valores da comunidade, o grafismo, vestimenta, as formas de sobrevivência do povo indígena ao longo dos tempos”, acrescenta Mello. Todo esse trabalho começa nas séries iniciais e vai até o Nono Ano.
A relação da Escola e da Comunidade é de uma verdadeira simbiose, isto é, um depende do outro. Os alunos normalmente já chegam às aulas sabendo muita sobre a própria Cultura, devido ao convívio frequente com os pais (alunos Kaingang não vão à Creche, por exemplo). “A escola tenta se adaptar, conforme vem o aluno. É um trabalho mais direcionado, que expande os seus conhecimentos, apresentando outros povos também, por exemplo”, define Mello. Os professores das séries iniciais são todos da aldeia, com formação em Magistério.
Entre os valores kaingang que Mello me relata estão as metades tribais. Eles se dividem entre KAIRÚ e KAMÉ, e tem muita história em cima disso. “Um dos valores é que não se pode casar com a mesma metade tribal, tem que ser uma com a outra”, conta. Além disso, o KAIRU tem uma forma de grafismo, já o KAMÉ tem outra. “No Kairu é uma forma redonda, já no Kamé são listas. São marcas para identificar as tribos”, explica o diretor. O professor de artes costuma trabalhar tudo isso, somando com o artesanato e a confecção de roupas. Para o artesanato, eles costumam ir atrás das próprias plantas, tendo que se meter a entrar em áreas mais para o interior da cidade.
Quanto a Língua Kaingang, o diretor conta que costuma ser um desafio, porém, mais uma vez, é preciso trabalhar juntamente com a comunidade e adaptar-se ao aluno. Se a língua materna do aluno é o Kaingang, a Escola vai ter que introduzi-lo primeiro nela e depois em língua portuguesa. “Só que a nossa realidade aqui é que tem poucos que não vem falando português de casa. Somente um ou dois não falavam nessa última turma. Então, normalmente, no primeiro e segundo ano alfabetizamos em português e vamos trabalhando oralmente o kaingang. Lá pelo terceiro introduzimos a escrita”, relata. Para registro: Há 29 letras no alfabeto Kaingang, um pouco a mais que o português. Além disso, a pronúncia é diferente: o que está no papel não é exatamente falado igual ao que está escrito.
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No final, Amilton me levou para conhecer alguns locais da Aldeia, o Centro Cultural em que acontecem muitas das atividades artísticas, entre elas, um evento com comida típica indígena toda segunda-feira. Dentro do Centro Cultural, pude observar vários desenhos feitos pelo professor de artes e seus alunos. Penso que ser indígena no Brasil é viver em constante resistência, sobre sua cultura, sobre sua história, e costumes. Descobrir-se e encontrar-se em sociedade que muitas vezes tenta abafar a sua origem. Aperto a mão de Amilton e vou embora, para o calor de novo e para as palavras.
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A educação diferenciada é um dos eixos de luta de diferentes comunidades indígenas e quilombolas no Brasil. Embora a diretriz seja do Ministério da Educação, sua execução cabe aos estados e municípios. No Rio Grande do Sul, há outras aldeias que já possuem esse tipo de escola, como a Aldeia do Cantagalo, de etnia mbyá-guarani.
*Esta reportagem foi originalmente publicada no zine Rua Sete, em 2015.
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