“Anseios”, de bell hooks: uma aula magna de crítica cultural

Thaís Seganfredo
Foto: Divulgação

Não é novidade que nos espaços culturais, midiático e de sociabilidade na internet, palavras como antirracismo, interseccionalidade e representatividade são cada vez mais urgentes tanto na produção simbólica como na recepção desses produtos, sejam eles um livro, videoclipe, um filme ou até mesmo um tweet. O livro Anseios: raça, gênero e políticas culturais, da crítica cultural e teórica feminista bell hooks, é uma ótima leitura para quem quer se aprofundar no estudo desses conceitos. 

A obra traz uma série de ensaios, textos nos quais hooks discorre com fluidez sobre cultura em diferentes instâncias: os estudos culturais na academia, a cultura popular americana, além de obras do cinema e da literatura. O livro foi lançado no Brasil em 2019, pela Elefante, e tem tradução de Jamile Pinheiro Dias.

Sempre com uma lente decolonial, a escritora contribuiu para a revisão de conceitos como alteridade, protagonismo e autonomia em espaços culturais nos últimos 20 anos, propondo uma visão interseccional ao pensar a cultura. Na infância, bell hooks estudou em um escola pública no contexto da segregação racial. Formada em literatura inglesa na Universidade de Stanford, Wisconsin e o doutorado na Universidade da Califórnia. 

Sua vivência como intelectual, no entanto, não a impediu de construir textos acessíveis, que dialogam com o público em geral. Ainda que os textos de Anseios tenham sido publicados pela primeira vez há cerca de duas décadas – boa parte deles na Z Magazine – , o livro ecoa debates atuais na esfera pública do país. Afinal, foi nos últimos anos que a crítica cultural feminista e antirracista ganhou novo fôlego nas universidades, na mídia e nas expressões artísticas brasileiras. 

A atualidade dos ensaios impressiona, na medida em que as reflexões de hooks esmiúçam questões da crítica cultural que podem fazer muitos jornalistas, comunicólogos, e profissionais da cultura questionarem se os discursos com os quais trabalham são verdadeiramente progressistas. O que é ser de fato antirracista, feminista e radical, no sentido de buscar a transformação social? Para hooks, “quando críticos brancos escrevem sobre cultura negra, porque é um assunto que está ‘em alta’, sem se perguntar se seu trabalho ajuda ou não a perpetuar e manter a dominação racista, eles contribuem para a comoditização da “negritude” que é tão peculiar nas estratégias pós-modernas de colonização.”

Anseios traz muitas provocações, inclusive com uma visão analítica (ou poderíamos chamar de uma aula de crítica cultural) sobre o agora clássico cult Faça a Coisa Certa, de Spike Lee (1989), ao apontar arquétipos reforçados pelo filme e até mesmo um certo conservadorismo. Neste sentido, uma das linhas que tecem os ensaios é a avaliação de hooks sobre o peso da representatividade negra em expressões artísticas. Trata-se de uma reflexão longe de ser superada no Brasil, não apenas porque o país carece de políticas culturais que de fato representem nosso quadro social, mas também porque este é apenas o primeiro passo para uma construção antirracista.

Como apontava hooks 20 anos atrás (!), representatividade é importante, mas não é suficiente. Uma proposta cultural verdadeiramente contra-hegemônica (outra linha que compõe a tessitura de Anseios, em contraposição ao que a autora nomeou “supremacia branca”) possibilita diferentes espaços de fala  – sobretudo a mulheres negras -, abraça diferentes potencialidades narrativas e estéticas e liberta discursos de estereótipos e trajetórias pré-determinadas. 

Um dos exemplos que a autora traz para refletir sobre a supremacia branca é o debate sobre alteridade – ou seja, pensar o outro, a diferença -, conceito que era tendência em meio aos estudos culturais nas universidades quando hooks publicou os ensaios. Já naquela época,  ela escrevia sobre quem era esse “outro” dos estudos acadêmicos, conceito inserido no contexto da busca por um maior pluralismo cultural e que, por isso, permitia a inclusão de temas como o antirracismo e o feminismo. 

hooks destaca que o “outro” quase sempre era entendido como o não-branco nesses espaços, o que resultava (e ainda resulta no Brasil) quase sempre em estudos brancos sobre outras etnias, com exceção de alguns pensadores negros, que deixaram um legado pós-colonial para o campo, como Cornel West e Zora Neale Hurston. “Quem participa das discussões contemporâneas sobre cultura  com ênfase na diferença e na alteridade, mas não questiona as próprias perspectivas, o lugar do qual escreve em uma cultura de dominação, pode facilmente fazer dessa disciplina potencialmente radical um novo terreno etnográfico, um campo de estudo no qual antigas práticas sejam simultaneamente criticadas, reencenadas e mantidas”, escreveu. 

Marcantes também são os ensaios nos quais a escritora aborda, sob uma perspectiva da história e da crítica de arte, movimentos estéticos negros dos Estados Unidos (“Uma estética na negritude: estranha e opositiva”) e ainda os textos nos quais ela traz relatos familiares e discorre sobre o imperativo de se valoriza a cultura popular americana (“Heranças estéticas: história feita à mão”). Além das resenhas críticas a livros e filmes incluídos entre os ensaios, há espaço para uma pluralidade de outros temas entrelaçados nos escritos de hooks, como o conceito de margem, a interseccionalidade, o machismo e a sexualidade.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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