Naira Hofmeister, do Matinal, e Thaís Seganfredo, do Nonada
Foto: Mariano Czarnobai/PMPA
Uma entidade privada registrada em cartório no mesmo endereço físico de um edifício público será a gestora do Porto Alegre em Cena 2021, um dos mais tradicionais eventos culturais da cidade. Não há nenhum contrato entre a prefeitura e a instituição que autorize o uso do Solar Paraíso, um edifício colonial de 1820 restaurado pelo município e sede administrativa do evento. Mas é lá que a Associação Porto Alegre Em Cena funciona, com equipe que mistura servidores públicos com prestadores de serviço. A entidade foi selecionada no último dia 25 de novembro para fazer o projeto do 28º POA em Cena.
Um de seus fundadores é Fernando Zugno, atual diretor do festival e coordenador de Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), um cargo comissionado indicado pelo secretário Luciano Alabarse. Antes que a Associação Porto Alegre Em Cena se apresentasse para concorrer ao edital, Zugno pediu desligamento da entidade privada. “Se eu estou dentro, a associação não pode ser proponente porque eu sou funcionário público”, admite.
Apesar de ter se afastado da entidade, é Zugno, ao lado de Adriana Martins, chefe da Coordenação e Assessoria de Projetos e Captação da SMC, quem tem a tarefa de habilitar e selecionar as empresas concorrentes no edital, conforme Martins confirmou à reportagem, produzida em parceria pelo Nonada – Jornalismo Travessia e pelo Matinal Jornalismo. “É a minha equipe e a coordenação fim do evento”, assinala a assessora. Martins também é uma antiga colaboradora do Porto Alegre em Cena. Assim como Zugno e Miguel Sisto, hoje na gerência do Fumproarte, ela foi levada para o serviço público quando Alabarse foi nomeado titular da SMC, em janeiro de 2017.
Embora os editais da SMC façam referência à lei geral das licitações, há uma legislação federal específica que regula as relações entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, como a Associação Porto Alegre em Cena. As duas listam princípios básicos que devem ser observados neste tipo de relação: isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, julgamento objetivo e probidade administrativa são alguns deles.
“É preciso que, desde os primeiros atos até sua conclusão, se observe princípios muito caros à administração pública, como a impessoalidade, a isonomia e a moralidade. A vinculação, ainda que informal, de servidor da esfera administrativa responsável pelo chamamento público à entidade que participe do certame pode indicar a quebra desses princípios”, assinala o advogado João Carlos Dalmagro Jr., que atua no segmento do direito administrativo sancionador.
A Secretaria da Cultura se manifestou através de nota. “O POA em Cena sempre foi correto, obediente às normas e, principalmente, transparente, tanto que continua sendo beneficiado pelas Leis de Incentivo”, diz o texto, que salienta ainda não haver repasse de verba pública para a entidade. A íntegra da resposta pode ser lida ao final desta reportagem.
Seleção a jato
A Associação Porto Alegre em Cena apresentou seus documentos, candidatando-se ao edital 002/2019 em 24 de novembro. No dia seguinte, sua seleção foi publicada no Diário Oficial de Porto Alegre. Conforme o objeto descrito no chamamento público, será a responsável pela “elaboração, formatação e acompanhamento” do festival – o que inclui representar o festival nos sistemas LIC e Rouanet para captar recursos da iniciativa privada, mas também gerenciar esse dinheiro, sendo a responsável por contratar “empresas, profissionais” e por adquirir “equipamentos e materiais”.
Não foi uma surpresa para ninguém da equipe, porque a associação foi criada sob medida para a tarefa à qual foi selecionada. A entidade privada carrega o evento público no nome e expressa em seu estatuto o propósito de “produzir e realizar, anualmente, o Festival Internacional de Artes Cênicas Porto Alegre em Cena”, uma atividade cuja realização está prevista em lei municipal desde 1995, com recursos do caixa da prefeitura, acrescidos dos valores obtidos via leis de incentivo à cultura e patrocínios. Até o e-mail oficial do festival é o mesmo registrado pela instituição em seu cadastro na Receita Federal.
“Somos uma equipe há muitos anos. Resolvemos fundar uma associação com orientação do próprio secretário Luciano Alabarse para articular melhor o festival, para cuidar dos interesses do Em Cena”, revela Zugno.
De fato, embora a associação em si só tenha sido criada em dezembro de 2018 (o registro oficial do CNPJ só aconteceu em abril do ano passado), seus integrantes trabalham no POA em Cena há muitas edições. Fernando Zugno é diretor-geral do evento desde 2017, nomeado pelo secretário Luciano Alabarse, mas prestou serviços como captador de recursos e coordenador de produção em 2016. No ano anterior, respondeu pela direção-geral de produção.
Já a presidente da Associação Porto Alegre Em Cena é Laura Leão, que trabalha para o festival como terceirizada pelo menos desde 2015, alternando-se entre produção, logística e serviço administrativo. Todos os sete fundadores da entidade exerceram funções de coordenação do evento nas áreas de administração, logística, produção, técnica, programação e planejamento gráfico nos últimos cinco anos.
Apenas um dos integrantes da Associação não aparece mencionado na ficha técnica do Em Cena de 2020. “No momento temos apenas sete associados, pessoas que trabalharam nas últimas edições do festival”, explica Laura Leão sobre a instituição. “Até o momento, não tivemos atividades realizadas como entidade, por isso apenas rateamos despesas de manutenção em suas rotinas administrativas. O primeiro projeto seria a 28ª edição do Porto Alegre em Cena com previsão de realização em 2021. A partir das primeiras experiências administrativas, pretendemos estruturar melhor o estatuto”, complementa.
Associação foi criada no Solar Paraíso
O uso do Solar Paraíso como sede da instituição mesmo antes de ela ter qualquer relação formal com o festival também foi visto como algo natural pelos envolvidos. Reunidos há várias edições no histórico casarão, os integrantes da entidade “assumiram” a manutenção do imóvel, conforme explica Zugno: “É a equipe que cuida da casa, que põe seu dinheiro para consertar quando uma tranca estraga, quando precisa de alguma manutenção no portão. A prefeitura paga a limpeza, mas não tem nem portaria. A Associação foi constituída naquela casa”, ele conta.
O Solar Paraíso é um edifício de arquitetura colonial que fica no bairro Santa Tereza, em uma das travessas do famoso Morro da TV, onde as emissoras locais têm suas sedes. Reconhecido como sítio arqueológico do município em 1994, quando a prefeitura encampou o imóvel, o casarão de fachada branca marcada por oito janelas marrom claro, passou por uma reforma no ano 2000 e, desde então, funciona como sede do festival. A SMC confirmou que não há contrato de cedência do espaço ou qualquer instrumento formalizando o uso.
Segundo a nota emitida pela SMC, “há pelo menos dois anos que se discute criação da Associação pela equipe de produção” do festival e “por isso, (a associação) foi inscrita no endereço onde fica a sede administrativa do festival, conhecido como Solar Paraíso. Destacamos que a Associação do Porto Alegre Em Cena foi criada em conjunto com a própria Secretaria Municipal da Cultura (SMC)”.
Mas isso tampouco está documentado, o que contraria mais uma vez os princípios da administração pública – neste caso, o da publicidade. “Há exigência de transparência, justamente para que os atos possam ser fiscalizados. O registro de uma organização privada, ainda que tenha finalidade social, em endereço no qual se localiza um bem público, sem uma justificativa formal, é, nesse aspecto, irregular”, conclui o advogado João Carlos Dalmagro Jr.
Uma surpresa para a classe artística
A escolha da Associação como gestora do POA em Cena 2021, assim como a própria existência da entidade, surpreendeu integrantes da classe artística, que sequer sabiam do edital aberto para a seleção. “Acredito que só veio a público agora, antes só divulgaram para as empresas parceiras”, declarou uma artista do setor. Ela afirma ter ficado sabendo do edital na última semana de novembro, quando também tomou conhecimento da Associação privada criada para organizar a próxima edição.
O presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Rio Grande do Sul (Sated-RS), Fábio Cunha, afirma que o sindicato também não tinha conhecimento da seleção. “Não sabíamos nem da existência dessa associação, nem do edital. Se teve divulgação, onde está? Que empresas concorreram?”, questiona.
“Estavam contando que ninguém ia descobrir ou que iam fazer vista grossa”, opinou a integrante de um grupo teatral que não quis se identificar. Os artistas que ouvimos temem ser reconhecidos e excluídos de seleções do festival, que anualmente lança concursos para escolher grupos de teatro locais para a mostra.
Em nota à Matinal e ao Nonada, a SMC informou que o edital foi publicado no Diário Oficial do município em fevereiro de 2019. Essa é de fato a exigência prevista na lei 13.019/2014, que regula contratos com organizações da sociedade civil. Por outro lado, a lei das Licitações, mencionada no texto publicado no Diário Oficial com as regras do certame, determina que “os avisos contendo os resumos dos editais deverão ser publicados com antecedência em jornal diário de grande circulação no Estado e também, se houver, em jornal de circulação no Município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alienado ou alugado o bem.” Questionada sobre em que meios o edital foi publicado, a SMC citou apenas o DO.
Além de selecionar a Associação Porto Alegre em Cena para organizar a edição do ano que vem do festival de teatro, o edital 002/2019 selecionou empresas para organizarem outros eventos do calendário cultural da prefeitura, como o réveillon. Com duração de dois anos, permitiu escolher também o realizador do POA em Cena 2020, a empresa Primeira Fila Produções, de Letícia Vieira. A produtora já havia sido selecionada em editais semelhantes para as edições de 2017, 2018 e 2019 do festival. Segundo a prefeitura, “o edital é aberto para qualquer produtor cultural que atender aos pré-requisitos estabelecidos. Temos inúmeros produtores já cadastrados.”
Curadoria coletiva nunca foi cumprida
O Festival Porto Alegre em Cena foi idealizado a partir de uma demanda dos artistas em 1994 na gestão do iluminador João Acir, então presidente do Sated. A ideia dos artistas era conectar Porto Alegre com o que de mais importante ocorria nas artes cênicas em âmbito mundial.
A proposta foi aceita pela prefeitura e concretizada por Luciano Alabarse, na época coordenador de Artes Cênicas da SMC. No ano seguinte, a Lei 7590/95 instituiu oficialmente o festival, determinando que o evento deveria ser realizado anualmente, com recursos municipais e de outras fontes, e contando com espetáculos de artes cênicas locais e de outros estados.
Segundo a lei, a seleção dos espetáculos da mostra deveria ser compartilhada entre o Sated-RS, o Departamento de Artes Dramáticas (DAD) da UFRGS e a prefeitura, mas previa também a participação de outros profissionais, de forma facultativa.
Fábio Cunha diz que essa determinação não tem sido cumprida e que, desde 2010, a entidade reivindica participação efetiva no evento. “Há uma longa e antiga briga do Sated com o POA em Cena, antes mesmo da minha gestão. É uma relação que há muito tempo se perdeu. Em 2019 e 2018, depois de muita luta, fomos chamados pelo Luciano [Alabarse] para compor a comissão, mas, em 2020, não fomos convidados”.
O Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS tampouco tem sido convidado. “Consultei algumas professoras e verificamos que os professores e as professoras do DAD não costumam participar”, contou a coordenadora da Comissão de Graduação em Teatro, Cláudia M. Sachs, em resposta por e-mail.
Prestígio artístico é amplamente reconhecido
O atual secretário municipal de Cultura, Luciano Alabarse, comandou a execução do festival e a seleção dos grupos do Em Cena por 14 edições, desde 1995. Foi em sua gestão como coordenador de Artes Cênicas que a iniciativa nasceu, e ele se manteve à frente do evento desde então. Somente em quatro edições, ficou de fora: entre 2001 e 2002, a coordenação foi assumida pelo diretor teatral Marcos Barreto e, em 2003 e 2004, pelo pesquisador Ramiro Silveira.
O trabalho de curadoria de Alabarse conferiu prestígio à iniciativa, fazendo do POA em Cena um dos festivais internacionais de artes cênicas mais relevantes e celebrados no país. Em 1997, quando o festival ainda engatinhava, ele trouxe aos palcos da capital o grupo catalão La Fura dels Baus, apontado como um dos mais influentes do século 20 por ter revolucionado a estética do teatro contemporâneo. Foi também sob seu comando que o Em Cena ficou famoso por grandes feitos, como a vinda inédita e exclusiva no Brasil de espetáculos como Le Costume (2000), do britânico Peter Brook, e a montagem de Hamlet (2001), do lituano Eimuntas Nekrosius, um dos maiores especialistas em William Shakespeare no mundo. Em 2009, o Ministério do Turismo reconheceu o Em Cena como um dos eventos que mais geram fluxo turístico no país.
Boa parte desse trabalho foi feito com a equipe reunida hoje sob a Associação POA Em Cena, que venceu o edital. É por isso que seus integrantes e os membros da secretaria defendem tanto a iniciativa.
“A gente tem um compromisso com o festival, somos uma empresa especializada”, alega Zugno. Em sua defesa, o diretor do festival lembra, por exemplo, que “levanta a bola e cabeceia”: trabalha tanto na parte artística do evento como na busca por patrocínios. Para a edição 2020, ele conquistou um apoio inédito de uma empresa que nunca havia participado.
A nota da SMC também reforça o mesmo ponto de vista. “Em um cenário cada vez mais adverso para a produção cultural, não somente em Porto Alegre, mas no Brasil, o POA Em Cena tem se mantido como destaque, fomentando a cadeia produtiva da cultura. O orçamento pode diminuir, os patrocínios podem minguar, mas a dedicação incansável dessa equipe até hoje, que não desiste de manter um dos maiores festivais de artes cênicas do país, deveria ser comemorada e aplaudida. Sem esta entrega hercúlea não estaríamos sequer debatendo sobre o evento, pois bem possivelmente o POA Em Cena não existiria mais”.
Íntegra da nota da Secretaria Municipal de Cultura
Destacamos que a Associação do Porto Alegre Em Cena foi criada em conjunto com a própria Secretaria Municipal da Cultura (SMC). O objetivo é para que uma entidade sem fins lucrativos, composta pela equipe que há anos se dedica à organização e cuidados com o Festival, criasse condições para que o POA Em Cena não dependesse, nem de produtoras privadas, nem do poder público, para a sua realização. A dedicação dessa equipe tem mantido a qualidade artística do Festival e sua continuidade.
Destacamos que a Associação ainda não atuou em nenhuma edição do festival, muito menos captou patrocínios, recebeu verbas ou efetivou contratos, o que deve ocorrer somente em 2021. Cabe destacar também que a SMC mantém um edital aberto para que qualquer produtor cultural, que atender aos pré-requisitos estabelecidos, também se inscreva como proponente do Em Cena. Há inúmeros produtores já cadastrados, incluindo os habilitados na edição de 2020. O POA Em Cena sempre foi correto, obediente às normas e, principalmente, transparente, tanto que continua sendo beneficiado pelas Leis de Incentivo.
Durante todos esses anos, a verba municipal foi diminuindo devido à realidade financeira enfrentada, mas a equipe do Em Cena se empenhou para dar condições de realizá-lo em toda sua qualidade e excelência. Pensando neste cenário, há pelo menos dois anos que se discute criação da Associação pela equipe de produção e,que por isso, foi inscrita no endereço onde fica a sede administrativa do festival, conhecido como Solar Paraíso. Importante frisar que não há contratos entre a Prefeitura e a Associação, que recém foi criada e até o presente momento não realizou um sequer projeto, não gerando qualquer entrada de verba para a Associação ou seus membros.
A Prefeitura tem repassado ao projeto os 10% previstos pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC), em relação ao valor aprovado. Não há repasses de verba orçamentária da Prefeitura para a Associação. Não há contratos municipais entre os integrantes da Associação e a Prefeitura. Os trabalhadores autônomos do Em Cena não são funcionários públicos, não têm vínculo contratual com o Município e recebem conforme tabela aprovada pela LIC, constando nas prestações de conta anuais do evento.
Em um cenário cada vez mais adverso para a produção cultural, não somente em Porto Alegre, mas no Brasil, o POA Em Cena tem se mantido como destaque, fomentando a cadeia produtiva da cultura. O orçamento pode diminuir, os patrocínios podem minguar, mas a dedicação incansável dessa equipe até hoje, que não desiste de manter um dos maiores festivais de artes cênicas do país, deveria ser comemorada e aplaudida. Sem esta entrega Hercúlea não estaríamos sequer debatendo sobre o evento, pois bem possivelmente o POA Em Cena não existiria mais.