Thaís Seganfredo
Foto de capa: filme O Processo/divulgação
Quase cinco anos depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, as cineastas Petra Costa, Maria Augusta Ramos, Anna Muylaert e Lô Politi entregaram uma espécie de trilogia involuntária sobre o período histórico, que se completou com o lançamento de Alvorada, agora em junho de 2021. Com estilos e marcas autorais diferentes, os três documentários têm em comum o registro do avanço de uma onda reacionária – nas questões sociais, culturais, ambientais e políticas – que o Brasil vive desde então.
E como uma mulher luta contra um processo já admitido como golpe político até mesmo por seu beneficiário direto? É isto que Alvorada pretende mostrar ao acompanhar os dias de Dilma Rousseff e de seus aliados depois de ela ter sido afastada da Presidência. Com cenas majoritariamente filmadas no Palácio da Alvorada, residência oficial do chefe de Estado, o documentário foca na atmosfera melancólica que tomou conta do espaço, de certa forma satisfazendo uma curiosidade nacional de saber como Dilma havia enfrentado os dias de julgamento.
Mesmo com seus silêncios entrecortados por uma trilha baseada em música erudita em certos momentos, a resignação nunca aparece nas falas da presidenta, ao menos não na frente das câmeras. Seja nas reuniões no palácio seja nas poucas entrevistas das diretoras com Dilma, o que o filme expõe é sempre uma mulher indignada, determinada e consciente de que a história revelaria outros vieses além do pensamento hegemônico antipetista da época. “Acredito que a democracia há de vencer, e isso dá uma imensa tranquilidade. Agora, isso não significa que não se lute”, confessou Dilma às cineastas.
Ainda na sombra do antipetismo, em 2018, a cineasta Maria Augusto Ramos apresentou sua visão sobre o impeachment. Sem qualquer narração em off ou entrevista, Ramos realiza um mergulho denso no processo de investigação no Senado. As cenas foram gravadas nas sessões parlamentares e nas reuniões internas tanto da defesa jurídica como política, com os parlamentares de esquerda. Sua narrativa é construída por meio dos recortes e da montagem do filme, que destaca sobretudo as motivações e implicações políticas do julgamento.
Se o tom de Alvorada é mais intimista, o filme de Ramos é de certa forma um complemento, ao englobar todo o entorno político que pautou o destino de Dilma. O ponto de partida de O Processo já introduz o que seria o fio ideológico que conduziu o golpe: a polarização que tomou as ruas. Ao mostrar os votos dos deputados que aceitaram o pedido de investigação na Câmara com discursos esdrúxulos – inclusive do atual presidente Bolsonaro homenageando o torturador Ustra ao votar -, Ramos insere um tom tragicômico que perpassa todo o documentário.
Em filmes como Juízo (2007), em que ela abordou abusos de autoridade de magistrados, a cineasta já adotava essa marca autoral de fazer com que os absurdos se revelem por si só, pelas próprias personagens e planos escolhidos. Em O Processo, a personagem mais emblemática não é Dilma Rousseff e sim a advogada Janaína Paschoal, co-autora do impeachment, que se emociona, tergiversa e faz discurso político em suas sustentações orais – que deveriam ser jurídicas, diga-se de passagem -, ao mesmo tempo em que dá entrevistas e tira fotos com admiradores.
A persona extravagante de Pascoal, aliás, se opõe à figura sóbria e às falas técnicas de José Eduardo Cardozo, então advogado-geral da União. E é nestes contrastes entre defesa e acusação, parlamentares governistas e de oposição, manifestantes petistas e antipetistas que o jogo político do impeachment ocorreu, embora sempre tenha sido uma partida de cartas marcadas, como todos os agentes já sabiam desde então e como Ramos relembra ao inserir o áudio do senador Romero Jucá e do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado conversando sobre um “acordo, com o Supremo, com tudo” para estancar a Operação Lava-Jato. As consequência do processo, como especulou uma das parlamentares governistas, poderiam levar a um aprofundamento do conservadorismo, inclusive com a prisão de Luís Inácio Lula da Silva.
O que ocorreu depois disso tudo foi pauta para o documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem, lançado em 2019. É justamente no dia da prisão de Lula que inicia o documentário, no qual a própria Petra é também uma personagem. Declaradamente petista, a cineasta foi criticada por ser parcial quando lançou o filme, que ganhou repercussão internacional. Os comentários, contudo, não têm fundamentação, uma vez que o documentário, assim como o jornalismo, sempre envolve um ponto de vista, uma subjetividade. Diferentemente da notícia, no entanto, em que métodos científicos são adotados para que se busque a objetividade dos fatos, na arte tudo é permitido.
Desta forma, Petra, uma artista, constrói seu filme como um ensaio audiovisual, entrecortado pela presença de seu passado e o da sua família, que sempre foi lulista desde os tempos de sindicato. Utilizando da narração em off, Democracia em Vertigem faz uma costura não tão cronológica dos acontecimentos antes e depois do impeachment, saltando do nascimento político de Lula, sua eleição baseada na conciliação de classes no início do século XXI até a eleição de Dilma e a renovação da esperança de Petra na construção de um Brasil melhor, partindo então para a virada de jogo. Eixo temático de toda a narrativa, a consolidação da democracia no país começaria a ruir a partir da reeleição de Dilma (e consequentemente da derrota da direita) e de seu impeachment, segundo a tese de Petra.
Grande parte da força do filme vem do acesso que a cineasta teve a momentos íntimos de Dilma e Lula enquanto analisavam os rumos do país. Acompanhamos na intimidade dois ex-presidentes em momentos de fragilidade, somos testemunhas do que os dois estavam sentindo na pior derrota do PT no Brasil, enquanto adversários políticos como Aécio Neves e Sergio Moro triunfaram.
A construção de sua narrativa é permeada por imagens de arquivo pessoais, entrevistas gravadas nas ruas por ela, com políticos e eleitores petistas e antipetistas, além de vídeos cedidos pelo fotógrafo de Lula, Ricardo Stricher. Até a “mea culpa”, tão cobrada pela mídia, que já havia aparecido de relance em O Processo, está mais forte no documentário de Petra, cuja subjetividade aponta para o dramático.
As escolhas das imagens, o tom de voz da narração e, afinal, o próprio curso dos fatos conferem ao documentário uma atmosfera trágica que culmina na eleição de Jair Bolsonaro à presidência. Assistir ao filme em 2021, no entanto, com Lula elegível, e Dilma absolvida pelo tempo, é como revisitar a história.