Saberes ancestrais e espirituais de povos indígenas são tema de documentários brasileiros

Paola Mallmann*

Embora de autores diferentes, dois documentários brasileiros recentes dialogam na busca por visibilizar parte da cosmovisão de diferentes povos indígenas: “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, direção de João Salaviza e Renée Nader Messora; e “Ex-Pajé”, de Luis Bolognesi.

Nas obras, é possível perceber a narrativa centrada na relação indígena com o “tornar-se pajé, xamã”, ou “deixar de ser pajé” – se é que isto é possível. É essa chave xamânica que atrai do início ao fim e de como isso se reflete no estilo dos diretores. Ambos os filmes descortinam um campo da cosmovisão indígena pouco conhecido e visível para os não indígenas, em contraste com as cosmovisões predominantes na realidade atual no Brasil. Nestas obras, o fio condutor principal é a relação com o xamanismo, que se confronta com os impasses subjetivos e sociais dos protagonistas. São obras que transpõem as bordas entre documentário e ficção, mesmo que se filiem na categoria de cinema documental.

No caso de “Chuva…”, o filme assume claramente essa condição de documentário ficcional, onde mesmo se tratando da documentação de vivências reais, há uma estruturação ficcional do roteiro, em que os personagens representam a si mesmos na vida real recriada. Na história, o jovem Ihjãc Krahô não quer se tornar pajé, pois sabe do compromisso coletivo que isso significa e se considera muito novo para renunciar as coisas do mundo e suportar essa tradição. O filme se passa no norte do Tocantis, na aldeia Pedra Branca.

Outro elemento que desencadeia a ação dos personagens é a necessidade identificada pelo protagonista de realizar a festa do tora, para seu pai falecido, assim encerrando o luto e a saudade e liberando o espirito do pai para poder se juntar à aldeia dos mortos. A história tem uma riqueza grande, revelando diversos elementos da cultura viva dos Krahô. Tive a felicidade de trocar algumas ideias com a produtora Isabela Nader, que contou sobre a produção na aldeia, a equipe desenvolve atividades na área do audiovisual desde 2009, e a pré-produção e filmagem do “Chuva…” durou ao todo 09 meses de trabalho, sendo todo o processo de construção da história e escolha dos personagens um contínuo orgânico. Até mesmo após o lançamento do filme e sua premiação do Um Certo Olhar em Cannes, 2017, os diretores e a produtora continuam desenvolvendo atividades, e em contato frequente com o povo Kraho, no Tocantins.

Ex-pajé (Foto – reproduçao)

Já em Ex-pajé, o protagonista que dá nome ao filme, Perpera Suruí, vive sozinho, próximo aos seus sobrinhos e irmãs, na aldeia dos Paiter Suruí, povo indígena que vive em Rondônia e Mato Grosso. Com frequência, as cenas em que ele está observando e se comunicando com os espíritos da floresta atravessam a obra, que narra a história deste homem que passa a trabalhar como zelador da Igreja evangélica que se instalou na comunidade, para poder ser aceito. Ocupação, aliás, ilegal, que tem contado com a conivência dos órgãos públicos.

O que fica evidente é o impacto colonizador da Igreja, que trata de tentar condenar e acabar com as crenças e formas de ritual local. Na história, devido ao incidente da irmã de Perpera, que é picada por uma jararaca na roça, ele retoma momentaneamente sua função de cura e de comunicação com os espíritos da floresta, lembrando de cantos, histórias e estratégias para curar e enfrentar o espírito dos inimigos que queriam levar embora sua irmã. Dentro destes cuidados, está a dieta dos próprios familiares dela, e a necessidade de não consumir alimentos que não o cará e no máximo carne de macaco.

Em determinado momento do filme, Perpera começa a repassar seus ensinamentos ao sobrinho mais novo. O ex-pajé expressa um canto de tristeza e nostalgia, reflete sobre a perda da identidade originária com os mais jovens da aldeia. O passado e o presente se contrastam por imagens filmadas e fotografadas, mostrando o contato dos Pater Suruí com os brancos, em 1969.

Nos dois filmes, a presença curativa do pajé se expressa de maneiras diferentes. Em “Aldeia…”, a intervenção do pajé se dá mais no campo psicológico, já que afronta o jovem, que não quer ser seu substituto e que se percebe doente e enfraquecido. Em decorrência da não aceitação do que seria seu destino, o jovem escapa para a cidade, onde se confronta com uma realidade onde não há lugar para ele.

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (Foto – reproduçao)

Na obra de Luis Bolognesi, a narrativa da recuperação de uma mulher indígena. No caso do ex-pajé, sua comunidade que vai aos cultos evangélicos, em um momento crítico perante o estado grave de saúde da irmã, frente a uma medicina convencional de posto de saúde que não consegue lhe dar garantia de sobrevivência, se vê impelida a apelar às tradições e chamam o ex-pajé na busca da cura. O que pode ser interpretado quase como uma redenção para o ex-pajé, pois ele é levado ao hospital e ela se recupera.

Ambos os filmes adotam a perspectiva de técnicas observacionais, em planos abertos e tempos dilatados, onde procura-se explorar a plasticidade do ambiente, que inclui a floresta e as ações cotidianas nas terras indígenas. Os planos exploram a percepção do espectador da ação que se passa dentro do quadro, renunciando da variação entre enquadramentos, que é a alternância de planos próximos, fechados médios ou de detalhes para dinamizar a narrativas. As sonoridades, em sua maioria cantos diegéticos, criam atmosferas contemplativas e reflexivas ou mesmo meditativas, onde o espectador pode acompanhar os personagens nesta viagem.

Essas produções mostram a densidade das histórias indígenas, a potência de um imaginário que o cinema brasileiro ainda está reconhecendo, histórias que têm demonstrado a força de revelar impasses humanos, vivenciados em padrões culturais aos quais a sociedade branca brasileira ainda é pouco afeita. Os filmes põem em um plano de humildade a cultura não-indígena, ao nos depararmos com uma vasta sabedoria ancestral cujas convenções sociais da sociedade branca dominante não conseguem dar respostas e retornos pertinentes às demandas espirituais e existenciais destas comunidades, que são capazes de se auto regular, tomando por base sua ancestralidade, um patrimônio imaterial em permanente resgate.

(Com a colaboração de Beto Rodrigues)

*Porto alegrense, produtora cultural, pesquisadora com formação em Antropologia, realizadora audiovisual e atriz.  Trabalhadora da Cultura é apaixonada por cinema e estudo culturas indígenas.

Compartilhe
Ler mais sobre
Comunidades tradicionais Processos artísticos Reportagem

Plataforma TePI reúne iniciativas da dramaturgia indígena, que convoca natureza para falar

Comunidades tradicionais Processos artísticos Resenha

Do ventre da árvore do mundo vem “O som do rugido da onça”

Notícias

Guia Nonada – Tem cultura paraense em Porto Alegre e cinema gratuito