Editorial: governo usa Lei Rouanet como vetor ideológico contra artistas

Foto: Mário Frias/reprodução

Com uma série de canetadas, o governo Bolsonaro tem usado a Lei Nacional de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) para fins censórios e ideológicos. Sem embasamento técnico ou jurídico, o secretário Mário Frias e seu braço-direito, o capitão da PM André Porciúncula, publicaram nas últimas semanas uma série de portarias que ressoam preceitos variados do governo que vão do aparelhamento religioso à propaganda antivacina. 

As medidas são capitaneadas por Porciúncula, secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura e responsável direto pela Lei Rouanet. O mais novo ataque do policial militar é uma portaria assinada na sexta (5) e divulgada nesta segunda (8) nas redes sociais do secretário. O documento informa que, a partir de agora, projetos culturais financiados pela Lei Rouanet estão proibidos de adotarem passaporte vacinal e podem ter suas contas reprovadas caso não cumpram a ordem. 

A portaria vai além e coloca na briga os prefeitos e governadores que adotam a comprovação para entrada em locais públicos ou privados, determinando que nestes municípios ou estados, os projetos deverão ser obrigatoriamente virtuais. Pelo twitter, Porciúncula disse que o passaporte vacinal é a “nova pauta discriminatória da esquerda mundial”. “Hoje mesmo notificarei todos os que estão adotando tal prática, para que cessem imediatamente, sob pena de multa e bloqueio das contas”, declarou.

De acordo com o jurista Rogério Tadeu Romano, em artigo publicado no site JUS, uma portaria não pode alterar uma Lei, limitando-se a regular processos internos. “Trata-se de ato normativo interno destinado a ordenar os serviços executados por servidores de determinado estabelecimento ou repartição”. As portarias têm natureza diversa a das Medidas Provisórias, que obrigatoriamente precisam ser votadas pelo Congresso em até 60 dias para terem validade.

Esta não foi a primeira vez que o governo interferiu na execução da Lei por meio de medida autoritária. Há uma semana, uma portaria oficializou a censura na Lei Rouanet ao proibir o uso de linguagem neutra (utilizada por pessoas não-binárias) em projetos aprovados pelo governo. Com isso, obras de arte ou eventos culturais que façam uso da linguagem neutra estão proibidas de conseguir financiamento via Lei de Incentivo Nacional. Igualmente, obras que já tenham sido aprovadas pela lei não poderão fazer uso da linguagem censurada.

A justificativa de Porciúncula foi que a linguagem neutra é um “objeto artificial” de cunho ideológico e não deve ser entendido como expressão cultural de um povo. Especialistas em Linguística ouvidos pelo Nonada Jornalismo nessa reportagem, no entanto, afirmam que a linguagem neutra é uma variação natural da Língua Portuguesa. Exemplo ainda mais gritante de uso do sistema como instrumento censório foi a reprovação do Festival Jazz do Capão, decisão que já foi revertida na Justiça. 

Em dezembro de 2020, o governo estabeleceu a meta de avaliar 1440 projetos inscritos no sistema, número que corresponde a cerca de ¼ do aprovado em 2020, quando 4492 projetos foram avaliados. A portaria também estabelece como prioritários projetos ligados a museus e conservação de acervos. Paralelamente, os secretários da Cultura também têm divulgado amplamente nas redes projetos aprovados pela Lei com caráter sociocultural, indicando que o que eles chamam de “elite cultural” não terá mais os mesmos direitos de acesso aos recursos. “Por décadas a Rouanet ficou concentrada em 10% das grandes empresas. Não mais! Vamos devolver a cultura para o homem comum”, afirmou Porciúncula.

Crédito: Secretaria Especial de Cultura

Em julho de 2021, outro golpe na Lei foi apontado como um dos mais graves não apenas por alterar o funcionamento do Programa Nacional de Apoio à Cultura como também incluir o viés ideológico do governo ao tornar como eixos centrais as belas artes e a arte sacra. A decisão alterou completamente a composição da comissão que escolhe os projetos aprovados. 

Com a mudança, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) passou a ser composta por um representante de cada área: belas artes, arte sacra, arte contemporânea, audiovisual, museus e patrimônio. Antes do decreto, a composição ocorria com representantes das áreas das artes cênicas, audiovisual, música, artes visuais, arte digital e eletrônica, patrimônio cultural (inclusive museológico e expressões da cultura negra, indígena e das populações tradicionais); e humanidades. 

A Comissão estava inativa desde o início do ano por ausência de novo edital. André Porciúncula estava centralizando as decisões até então. “Aumenta evidentemente o poder de decisão do secretário, com a indicação dos membros da Cnic. É uma manobra discursiva e legislativa, deixa um escopo mais geral, sem definição dos segmentos”, afirmou ao Nonada o gestor cultural Alexandre Vargas, em julho.

Como resultado, perdem os trabalhadores da cultura, cuja profissão já vem sendo precarizada, e também a economia. Um estudo divulgado pela FGV em 2018 revela que a cada R$ 1 investido via Lei Rouanet, há um retorno de 59% deste valor para o mercado. Nesse mesmo anos, dos R$ 31 bilhões investidos, além do retorno total da verba, foram gerados mais R$ 18 bi. 

Contrariando os dados, em nome de uma suposta democratização do acesso à cultura, os secretários não são muito eficientes em esconder que a atual gestão é movida por interesses políticos que passam por atacar sem argumento os profissionais do setor. “Estamos resgatando a cultura do sequestro político/ideológicos (sic) de décadas e devolvendo ao homem comum”, comentou Mário Frias, mais um vez pelo Twitter.  Em outro post, ameaçou processar a Revista Crusoé após uma matéria que expôs o aparelhamento da pasta. “A Cruzué imputa a mim e ao secretário André Porciuncula o crime de “rachadinha cultural”. Qual o motivo? O aumento em investimentos culturais de projetos cristãos e nas Forças Armadas.”

Os comentários geralmente vêm acompanhados de ataques a artistas diversos, desde grupos de teatro a nomes como Wagner Moura e Caetano Veloso. Sobra ainda espaço para os gestores destilarem comentários LGBTfóbicos e racistas, que são aplaudidos pela legião de seguidores. A julgar pelos discursos raivosos dos secretários nas redes sociais, a linguagem neutra, símbolo linguístico da comunidade LGBTQIA+, é o alvo da vez.

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