Ouvidoria: 20 perguntas para Santiago

O Brasil era outro quando entrevistamos Santiago pela primeira vez, em 2011. O Facebook ainda não era tão dominante em nossas vidas, o fascismo estava escondido e o país rumava social e economicamente para um futuro cheio de sonhos. Dez anos depois, voltamos a convidar o cartunista, premiado internacionalmente, para uma entrevista. Desta vez, foi para a série Ouvidoria, composta por 20 perguntas fixas. 

Por telefone, Santiago falou com o Nonada sobre as dificuldades de financiamento para as artes gráficas na era das redes sociais, ratificou que, para ele, a esquerda e o centro têm responsabilidade direta na eleição de Bolsonaro e ainda revelou que seu filme preferido é West Side Story. Nós também fugimos um pouco do script para perguntar ao cartunista o que ele pensa do avanço da censura no país, como mostra nosso Observatório de Censura à Arte. “Há todo esse clima de amedrontamento que vem se criando, e também um medo que esse governo possa endurecer mais ainda”, comentou Santiago. 

Leia a íntegra abaixo e confira aqui as outras entrevistas da série Ouvidoria

Quando e como começou a sua carreira?

A minha carreira profissional começa em 1975, quando fui contratado pela Folha da Tarde como ilustrador do jornal. Claro que minha atividade como desenhista começa quando criança com 13 anos de idade, eu desenhava muito, nunca parei de desenhar. Mas profissionalmente o marco é 1975. Trabalhei até o fechamento desse jornal e depois continuei em outras publicações.

Quais as obras considera as principais na sua carreira?

Essa é uma pergunta bem difícil de fazer porque eu já tenho quarenta e poucos anos de profissão e eu fiz no mínimo um desenho por dia na minha vida toda. Eu devo ter produzido alguns milhares de desenhos, é difícil saber o que foi melhor. Têm aqueles que ganharam prêmios, que foram importantes em minha vida. Estou preparando um livro com o que eu acho que fiz de melhor, o “the best of Santiago”, que são os que eu gosto mais. Deve ter umas 130 páginas. 

Como você descreveria a sua essência enquanto artista?  

Eu acho que a obrigação do artista é mostrar o que vê, o que está em torno dele. Principalmente no desenho gráfico, o importante é denunciar, levantar os problemas e transformá-los em uma peça. Foi o que fiz durante a minha vida inteira, levantar problemas, levantar a ponta do tapete e mostrar que a sujeira está embaixo. A denúncia vem de um sentimento forte de indignação, indignação com tudo que ocorre por aí. É claro que também tem momentos que o desenhista de humor quer fazer apenas humor, fazer graça. Mas nos principais momentos, eu tive que fazer denúncia, a denúncia é realmente uma balizadora importante na vida de um cartunista.

O que mais te irrita na cena cultural?

Bom, o que mais me irrita é a cena política, eu não chego a militar muito nas coisas que ocorrem na cultura. Na cena cultural, me irrita o predatismo cultural. A indignação vem quando essa cena cultural foi impregnada pelo comercialismo, pelo marketing, por temas que são mais para venda do que mais para o pensamento e debate. Mas enfim, na arte a gente não pode dizer “isso é certo, aquilo é errado”. Arte é arte. Arte é criação e todas as manifestações têm que ser bem-vindas. 

Quais qualidades são imprescindíveis para um artista? 

Ao artista visual, óbvio que é a capacidade de manejar com as ferramentas do desenho, da pintura ou das cores. No caso do desenhista de humor, especificamente na minha área, o que eu acho imprescindível é que esse desenhista tenha capacidade de inventar situações engraçadas, humorísticas, satíricas e, ao mesmo tempo, colocar em desenho de uma forma compreensível e com valores estéticos. Eu sempre tentei me aperfeiçoar nos meus desenhos para que eu possa dar ao leitor essa ideia de que o cartum também é um desenho bonito, que ele pode até cortar e colar na parede. Também devo sempre ressaltar que é muito importante que, junto com esse humor, venha uma crítica também, porque o trabalho do desenhista de humor consiste em dar ao leitor uma pílula dourada. Ele pensa que vai se divertir, mas no segundo momento tem um retrogosto, que é o fato de ele ficar pensando no que foi proposto. 

Qual o momento de maior dificuldade que já passou na carreira? 

Eu nunca fui censurado externamente, mas internamente, dentro dos jornais que eu passei, sempre me incomodou muito ser censurado, ser cortado. Às vezes, quando eu era cortado pelos editores, tinha um diálogo legal, ele me explicava “olha, isso aqui pode dar problema, todo mundo vai parar na cadeia, vai ser  todo mundo torturado.”  Eu aceitava quando havia uma justificativa.

Agora, quando havia censura por motivos comerciais, que um anunciante poderia ficar magoado, isso são momentos de dificuldade, de desgosto. Aconteceu muito na minha carreira, inventam uma desculpa idiota mas na verdade estão querendo preservar um anunciante, um motivo puramente econômico.  No tempo da Folha da Tarde, houve desenho que não passou, mas você sabia que o problema era que aquele político era amigo da casa. O pior era isso, eles não diziam diretamente, então as censuras sempre foram momentos de dificuldades, embora eu ressalte que não houve censura externa. Tive colegas anteriores à minha chegada que foram à  Polícia Federal e  até colegas que sofreram processos. Isso não ocorreu comigo, as minhas broncas eram internas, sempre com os editores. 

E de maior felicidade?

A maior facilidade para os desenhistas de humor é sempre quando tu consegue criar. Se tem um momento de muita angústia é quando tu fica na prancheta rabiscando, rabiscando e não consegue achar uma ideia que seja uma ideia adequada, que tenha a mesma carga de humor e de crítica. Quando tu consegue essa ideia e dá aquele click, isso é um momento de felicidade.

Um artista não deve…

Eu acho que o artista não deve se dobrar a questões econômicas, da mídia, fazer coisas para vender. Acho que o maior pecado é fazer coisa para vender. A gente tem que desenhar, independentemente se vai fazer amigos ou inimigos. Não podemos trabalhar como relações públicas. Se alguém se sentir ofendido porque eu critiquei a corrupção, acho ótimo, quero que ele se ofenda, é para ele mesmo que estou falando. Então é mais ou menos isso que eu acho, a gente não deve se dobrar às vontades do público. Se não, a gente vira o Roberto Carlos fazendo música para nichos de mercado escolhidos, [por exemplo] “agora vou fazer uma música só para agradar as mocinhas de óculos.” Isso aí é comércio, não é mais arte. A gente tem que criar coisas que levem as pessoas debater. Se algum leitor não se agradar, problema dele. 

5 coisas que mais te inspiram a criar

Em primeiro lugar, a política. Ela não me inspira, ela me obriga a criar, porque é um tema que está aí, um tema que está incomodando a todo momento, incomodando mesmo. Produziu um monstro chamado Bolsonaro, um genocida. Mas também tem outros temas que eu trabalhei durante a minha vida, ecologia porque também é um problema, é um tema que me causa indignação, os ataques à ecologia e os crimes ecológicos. Boa parte dos meus desenhos que foram premiados internacionalmente, eu ganhei tratando da ecologia. É raro, mas quando a gente consegue fazer um desenho que tem mais poesia que humor é muito bonito, a gente poder ter essa satisfação de se comparar à condição de um poeta. Outro tema que me dá muita satisfação é o nosso regionalismo gaúcho, tanto que eu criei um personagem chamado Macanudo,que é um típico do interior de fronteira. No quinto item, vou colocar os desenhos que fiz quando eu desenhava por puro humor, por pura graça, sem criticar nada. Eu estava querendo me divertir e divertir o leitor, é muito importante a gente rir também.

Acredita em arte sem política?         

É difícil fazer uma arte despolitizada, talvez nas artes plásticas. Eu sou fã do Jackson Pollock, ele criava quadros atirando tintas nas telas, de forma aleatória e criava coisas bastante bonitas. No nosso desenho de humor, é meio difícil trabalhar sem política, quase sempre a política está nos puxando para dentro da folha de desenho para comentar aqueles fatos. 

Qual seria o melhor modelo de financiamento da arte?

Essa pergunta é muito boa. A gente vive esse momento crucial do como financiar a arte. A minha arte sempre foi financiada por revistas, jornais, sempre teve empresa, pessoas pagando pelo que a gente fazia. Isso infelizmente, tragicamente e drasticamente sumiu. Com a internet, ninguém nos paga para desenhar. Desde que surgiu a internet, a gente tem debatido esse problema crucial, que é a sobrevivência desse artista. Para mim, felizmente esse problema se apresentou no momento em que eu estou aposentado pelo INSS. Agora, para as novas gerações, a modinha agora é tudo grátis na internet, e a gente tem caído nessa grande canalhice que é o tal do Facebook. Eu acho uma completa canalhice, porque tem um americano, canalha bandido que fica ganhando do nosso desenho, vende anúncio e não paga nada para nós e a gente produz material de caráter jornalístico profissional para ele ganhar dinheiro e ele ganha milhões e nao paga nada pra gente, uma exploração quase escravagista. Não sei como inventar um modelo ou coisa parecida que deve remunerar o artista. Até quando teremos que ficar mostrando os desenhos através da vitrine, porque senão ficamos esquecidos. Eu vejo que muita gente que produz cultura e material jornalístico tendo que trabalhar de graça. A gente está retrocedendo anos na escala evolutiva da sociedade. Voltamos a trabalhar gratuitamente, como fazíamos na adolescência, que queríamos só mostrar os desenhos.

Então, qual o modelo de financiamento de cultura? Eu não sei, mas a gente tem que pensar muito isso, debater muito. A minha última experiência foi a de financiar o meu próprio livro, juntei dinheiro e financiei o meu próprio livro e eu mesmo vendi. Foi bom pra mim, porque eu não tive nenhum intermediário, as pessoas pagavam direto para mim e eu tive um resultado econômico. Na internet, talvez a pessoa tenha que fazer um blog vendendo um anúncio, mas o anúncio também é problemático, porque limita o artista, porque se o seu anunciante é um  vendedor de carne não tem como denunciar carne podre. Se for um vendedor de remédio, tu não vai fazer nenhuma crítica ao comércio de medicamentos. Infelizmente, ainda não chegamos a conclusão nenhuma. Eu acho fundamental que a pessoa trabalhe e seja paga pelo que fez. Trabalho escravo, sem remuneração, é um retrocesso na civilização.

Existe cultura gaúcha?

Eu acho que existe sim, nós somos um povo, como diz o Vitor Ramil, nós temos o frio e toda essa coisa de fronteira, do campo. Nós temos essa miscigenação, com os negros, italianos, alemães, poloneses, que criou uma fisionomia da nossa cultura. Temos autores que são já ícones, Erico Verissimo, Josué Guimarães, esses caras todos da literatura, da música, do teatro, da pintura, como Vasco Prado, Xico Stockinger o Iberê. Claro que a cultura gaúcha destoa também para essas coisas meio malucas, os CTGs, o MTG  [Movimento Tradicionalista Gaúcho], dando formas muito conservadoras, mas enfim, eu diria que a gente tem uma fisionomia de cultura.

Que conselho você daria a Jair Bolsonaro? 

(risos) Que ele vá brincar de Getúlio Vargas, pegue as pistolas que ele tem em casa, localize a zona do coração e aperte o gatilho, seria a melhor solução para esse país. Enfim, eu to brincando, mas o conselho que eu daria para esse cara é ir embora, passe a bola mesmo, passe para o outro medíocre que é o outro fascista, vice dele, mas que é um fascista um pouco menos fascista que ele, com mais racionalidade. Acho que não existiu uma tragédia pior que a eleição desse cara. E nem quero falar de agora, quero falar das eleições lá de 2018. Eu vou estar velhinho, numa cama morrendo, falando a mesma coisa, que foi culpa do centro e da esquerda deixar criar esse monstro. Tinha que ter havido em 2018 uma aliança de centro-esquerda para barrar esse monstro e não houve. Houve vaidade e egoísmo, e se deixou criar um monstro que caminhou muito livre, teve uma estrada muito livre para trilhar.

Todo artista tem de ir aonde o povo está?

Isso é muito bom. Onde o povo está, onde está a massa, não onde está o marketing. Isso é muito bom, a linguagem do povo, as manifestações do povo. Também não se pode esquecer que esse povo foi o que votou nesse monstro que está aí, o Bolsonaro. Mas esse povo tem muitas coisas boas, que a gente tem que reviver, a gente tem que ouvir para que a gente possa entender o que eles querem que a gente denuncie. Uma das grandes satisfações do artista é quando alguém da massa diz “aquele desenho que tu fez diz exatamente o que eu queria dizer mas não conseguia”. É isso, a gente foi onde o povo estava. 

Ser brasileiro é…

…sofrer diariamente essas loucuras que o nosso país apresenta. Sofrer, ser brasileiro pobre, ser brasileiro operário. Essa massa que está sofrendo precisa repensar muita coisa, por exemplo elegendo uma besta completa. O povo elegeu e criou esse monstro, vai ter que pensar e vai ter que sofrer.

O que você mudaria no jornalismo cultural? 

Não sei, não tenho a visão de um editor, de um curador. Acho que tudo é um panelão que tem que ser mexido, tem que ter debate, nada que seja colocado como dogmas. Vamos chegar a decisões todos juntos e eu acho que o jornalismo em geral tem que promover isso.

Um livro: 

Eu acho muito complicado eleger um livro, eu não tenho um livro que mudou a minha vida, mas acho que um livro importante que já fui ler depois de adulto é O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Acho um monumento da nossa literatura. Talvez eu possa falar desse, mas eu não sou muito definitivo nessa questão. Às vezes eu costumo até brincar que o que mudou a minha vida não foi um livro, foi um manual de desenho. Eu era menino no interior e eu encomendei um manual de desenho dos EUA. Isso mexeu muito comigo, foi quando eu vi como eu poderia me tornar um profissional do desenho e ali, nos meus 16 anos, eu decidi que seria desenhista. Posso até morrer de fome, mas eu vou ser desenhista. Era um manual que eu tenho até hoje aqui guardadinho como uma espécie de relíquia.

Um espetáculo: 

Cinema pra mim é fundamental, eu sou louco por cinema, uma vez eu achei que tinha visto todos os filmes que valeria a pena, e eu percebi que tem ainda muita coisa para ser visto. Eu faria uma lista de uns 20 filmes que eu vi, mas no teatro eu não vi tantas peças.  

Um álbum: 

Tudo que Chico Buarque fez, pra mim é maravilhoso. O Caetano também. Eu ouço agora muita música renascentista, barroca, Bach, Vivaldi. A música barroca me traz muito repouso e muito conforto, além de gêneros como o chorinho e a própria Música Popular Brasileira.

Um filme: 

Tem um filme que revi várias vezes que gosto muito que é um musical, que é a transposição do Romeu e Julieta para o cenário urbano. É um filme chamado West Side Story, um musical que renovou gênero, com dança moderna, temas sociais, luta de classe. É um filme com muitos pontos maravilhosos, a música, coreografia e o debate sobre o imigrante e sobre o racismo.

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