Poetas vivos: arte e educação como revolução

Ester Caetano

Foto: Diego Sena/divulgação

É pelo terrorismo lírico que o coletivo Poetas Vivos faz a sua revolução. O grupo de poetas une performance combativa, resistência e atuação cultural, em uma iniciativa afrocentrada que fomenta a arte e a educação negra periférica. Com morada em Porto Alegre e atuação nacional, o coletivo se formou em 2018, quando os integrantes viram que, através do slam e da coletividade, seus trabalhos poderiam ser potencializados e adentrar espaços diversificados que antes não tinham contato com a poesia falada e a arte de rua.

Ao longo de quase três anos de existência, o Slam do Poetas Vivos já esteve presente nos mais importantes eventos e campeonatos de poesia falada no Brasil. Desde sempre, o grupo envereda pela produção musical, lançando singles como “Toma Rajada!” e “ME POUPE/JAMES BONDE”.

Com atuação também no desenvolvimento de oficinas, palestras, batalhas de poesia e freestyle, eles desenvolveram sua potência artística para a visibilidade enquanto produtores de conhecimento envolvendo temas como a educação para as relações étnicos raciais, racismo, a desigualdade econômica, social e ambiental. Pela poesia rimada dos Poetas Vivos, muitas crianças e adolescentes entendem como o racismo funciona e como eles podem usar ferramentas de mobilização, resistência e luta, como o próprio slam. 

Os versos não raro visam a conscientização da população sobre o sistema opressor e racista que paira sobre a sociedade e encontram caminhos nas intervenções culturais em ruas, becos e bares. Mas, sobretudo, chegam através de oficinas em escolas, colocando em evidência o fortalecimento da identidade étnico-racial nas crianças e nos jovens presentes no ambiente escolar. As rimas combativas reivindicam temas como o cumprimento da Lei 10.639/2003, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todo âmbito escolar.

Natália Pagot, uma das integrantes do grupo, pondera que os espaços não são dados. É necessário construir, germinar a terra para poder colher inclusão e respeito. Nesse sentido, a questão financeira e a validação do trabalho como arte ainda são as principais dificuldades que o grupo enfrenta. Natália conta que sempre foi preciso fazer vaquinhas para conseguir levar as apresentações para os espaços, nas salas de aula e eventos. Mas o que mais marca é o não reconhecimento. “As pessoas não reconhecerem o nosso trabalho, acham que a gente tá de vagabundagem e que não é sério, porque nós somos jovens, porque nós somos periféricos”.

Hoje, eles usam da maturidade e experiência para conseguir driblar esses empecilhos e criar portfólio. “A gente sempre foi muito atencioso com o horário, fizemos portfólio, fizemos vários documentos para que dessem mais seriedade para o nosso trabalho e essa seriedade foi o que conseguiu fazer com que o nosso trabalho andasse”, revela. 

A artista pontua que a aceitação do trabalho do coletivo é maior em Porto Alegre, onde eles estão cercados de pessoas que os protegem do impacto do racismo. Já nas cidades do interior, as pessoas têm dificuldade para compreender a luta antirracista, e por vezes enxergam os integrantes do coletivo como indolentes e não como profissionais da arte. “Acredito que a gente vive em uma bolha. Nós vivemos em uma bolha onde o nosso trabalho é bem aceito, reconhecido. E isso foi feito com muita luta”, acrescenta.

As portas que o grupo hoje abre são a continuação dos que já passaram por eles e fizeram com que a cultura negra ganhasse mais evidência no Rio Grande do Sul. Não porque antes não existiam, mas pela cultura antirracista que emerge em espaços onde antes não existia um diálogo. “A cultura negra sempre existiu, assim como as pessoas negras no Rio Grande do Sul sempre existiram. Só que a mídia faz um grande trabalho de silenciamento, de apagamento. Com as questões que estão colocadas hoje, no século 21, não dá mais para a televisão, os jornais, ignorarem a nossa existência, ignorarem o nosso trabalho”, avalia. 

Resistência na pandemia

Com a pandemia de covid-19, as rodas de poesia, as oficinas em escolas e as intervenções culturais nas ruas e periferias da cidade foram suspensas. Foi preciso pensar em como continuar. Os poetas agiram rápido e  usaram as lives como palco para as rodas de batalha, construindo saraus beneficentes em conjunto com escolas. Porém, nem sempre no setor cultural tudo anda conforme se deseja. Natalia conta que, como a batalha de slam dura em média de duas a três horas, o público acabava não ficando tão engajado como no início e o propósito da poesia estava se perdendo. “O slam é uma ferramenta muito importante de empoderamento e de oportunidade para os jovens, e durante a pandemia acabou que a gente não tinha essa base para ser base de alguém.”

Decidiram então priorizar a saúde mental dos artistas, e o afastamento das redes sociais teve grande papel neste processo. Mesmo com o slam suspenso, as atividades internas continuaram a todo vapor. Nos últimos anos, o grupo vem produzindo um EP, um documentário e um projeto que abrange as três áreas de atuação do Poetas Vivos: educação, literatura e música.

No mês de julho, o grupo realiza o projeto Poetas Vivos – Formando Multiplicadores de Cidadania,  uma formação voltada a educadores sociais, agentes culturais e professores de escolas da rede pública de ensino, com o objetivo de debater temas emergentes na sociedade. A formação evidencia a arte de rua, como o slam e o Hip Hop, como ferramentas para o debate sobre o racismo, questões de gênero, LGBTfobia, saúde mental, autoestima e relações interpessoais na escola. Como tiveram que paralisar as atividades na escola, eles pensaram na multiplicação de seu trabalho. “pensamos em como que a gente pode capacitar esses professores para que eles não precisem, necessariamente, de um de nós para falar sobre as relações étnico-raciais, para tratar temas sobre racismo e LGBTfobia”, explica Natália. O projeto, bem como grande parte do sustento do coletivo neste período da pandemia, vem da Lei Aldir Blanc. As inscrições estão abertas neste link.

Mesmo vivendo em um período em que não falta tema para as produções, como a atuação do governo Bolsonaro, Natália conta que o Poetas Vivos escolheu falar sobre amor, saúde e autoestima. O cansaço tomou a arte de combate, a poesia que sangra e choca a realidade se perdeu em tanta negatividade e menosprezo sobre a realidade. 

O jogo do slam vai para além das vertentes de colisão, é um certame de resistência, brincadeira, literatura, de palavras e sobretudo dos sentimentos e pessoas, diz Natália. Esse ano, o grupo está buscando ser um espaço de alívio, de conforto e empoderamento. “Os resistentes também amam. Amar também é revolução, amar também é um ato de luta contra esse sistema, contra esse desgoverno, sobre esse homem [Bolsonaro] que não tem amor à vida, não tem amor à natureza, não tem amor aos seus eleitores, aos seus cidadãos, não tem amor a ninguém. Então amar enquanto corpo preto é muita revolução”, acredita. 

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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