Há 70 anos, Abdias Nascimento transformava questionamentos sobre identidade negra em arte

Airan Albino

Foto: IPEAFRO

“Agora me libertei. Para sempre. Sou um negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade, da compaixão de vocês”. Em 1951, Abdias Nascimento escreveu esse texto para o personagem Dr. Emanuel, da peça Sortilégio – Mistério Negro. O trecho verbaliza a tomada de consciência sobre o mundo branco no qual Emanuel está inserido, entendendo que sua liberdade está na rejeição dos elementos da cultura branca.

A peça é não-linear e acontece em um terreiro, mostrando os conflitos de Emanuel (Abdias Nascimento), um homem negro que está fugindo da polícia após ter assassinado sua esposa. Ele é formado em Direito e casado com uma mulher branca, Margarida (Helba Nogueira). Acreditando que ela tenha perdido a virgindade antes de o conhecer, ele é tomado pelo ciúme e a estrangula. Quem insinua a traição e afirma que o filho que Margarida esperava não era de Emanuel é Efigênia (Léa Garcia), uma mulher negra. Ela, o verdadeiro amor do protagonista, o afastou por não ter interesse em se relacionar com homens negros, pois seu desejo era se embranquecer.

Sortilégio ficou durante seis anos proibida de ser apresentada ao público, devido à censura do governo Vargas (1951-1954) e de seus sucessores até que, em agosto de 1957, teve sua estreia no Rio de Janeiro. A peça de Abdias Nascimento foi produzida especialmente para o Teatro Experimental do Negro (TEN), um projeto de reação contra o embranquecimento, criado em 1944. O TEN teve como seus objetivos resgatar os valores da cultura africana, por meio da arte e da educação; ir contra os papeis estereotipados de personagens negros nas artes cênicas; erradicar dos palcos brasileiros atores brancos maquilados de pretos.

Foto: IPEAFRO

Abdias nasceu em Franca, cidade do interior de São Paulo. Entretanto, foi no Rio que ele se aprofundou no engajamento político voltado para pessoas negras. Morando no morro da Mangueira e em Duque de Caxias, ele se aproximou do samba e do candomblé observando uma relação mais estreita de cultura negra entre moradores. Abdias ficou amigo de figuras como o maestro e regente da Orquestra Afro-Brasileira, Abigail Moura, que assina a música de Sortilégio – Mistério Negro.

Além das reflexões de Emanuel, pontos são cantados como fio condutor da trama. As canções de evocação das religiões de matriz africana fazem reverência aos orixás e seus símbolos, tornando-se elementos marcantes para cada personagem. O Ponto de Iansã aparece quando Emanuel se lembra da relação complexa que tem com Efigênia, do auto-ódio de ambos, estabelecendo uma relação de provocação e ciúme, algo próximo do simbolismo da deusa dos raios e trovões. O Ponto de Iemanjá é cantado ao apresentar Margarida, uma mulher branca que é devota da protetora das águas, fato que deixa Emanuel irritado com a apropriação da religião negra.

Emanuel é um instrumento da construção da identidade do afrodescendente no Brasil. Em seus pensamentos no terreiro, ele se pergunta sobre Exu, o mais humano dos deuses, por ser o deus das contradições. Fica em dúvida se os anos de faculdade foram úteis, rezando por um deus branco, chamando a religião cristã de uma feitiçaria de branco. “Não blasfema, meu filho, tirei seu nome da Bíblia. Emanuel quer dizer Deus conosco. Deus está ouvindo? Com Deus não se brinca”, diz uma voz no espetáculo.

Foto: IPEAFRO

O único caminho de libertação encontrado pelo personagem foi se despir. Ao som dos pontos de Oxumaré, buscando reatar os laços com a cultura negra; de Ogun, para que trilhasse o caminho certo; de Exu, se entregando ao mensageiro e ponte entre os humanos e os orixás, Emanuel tira todas suas peças de roupa. Calmo e decidido, ele surge com a lança de Exu e é sacrificado pelas filhas de santo do terreiro.

Uma das críticas que o espetáculo recebeu foi de Nelson Rodrigues, para o jornal Última Hora, em 26 de agosto de 1957. “Aí está Sortilégio’, o seu mistério, que vive, justamente, do seu dilaceramento do negro. […] Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo.”

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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