João Teixeira*
A denúncia do racismo estrutural e a história de resistência do povo negro e periférico pautam o trabalho do multiartista Dona Conceição, de 32 anos. Nascido e criado em Alvorada (RS), ele é compositor, percussionista, poeta, cineasta, ator e performer. Na carreira, foi indicado a algumas premiações com o seu primeiro álbum, Asè de Fala, lançado em 2018.
Suas composições abordam questões como o corpo negro, a liberdade religiosa, territorialidade e memória. O artista ganhou o prêmio Carolina Maria de Jesus, pela Festa Literária das Periferias, no Rio de Janeiro, e o prêmio e troféu Memória de Resistência, também no Rio. Desde 2020, sua vida artística e pessoal tem passado por grandes mudanças. Tornou-se pai da pequena Serena, de dois anos, e trabalha em seu primeiro roteiro cinematográfico de ficção.
Conversamos com o músico no início de junho. Confira a entrevista:
Como iniciou sua carreira e de que maneira você imaginou trabalhar com o que trabalha hoje?
Dona Conceição – Sou nascido e criado em um terreno de batuque africano aqui em Alvorada. Então, é uma família muito musical. Fui musicalizado desde criança, na informalidade. Eu acabei mesmo entrando para uma escola de música, um projeto social, que é onde a maior parte dos músicos de periferia começam, lá pelos meus 10 anos. O projeto, em parceria da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) com o governo do Estado, chamava-se “Ouviravida”. Juntamente com 500 crianças, foi onde realmente aprendi música até meus 15 anos.
Depois, comecei a dar aula em um projeto de inclusão social chamado “Nação Periférica”. Através do meu empenho, passei na prova de seleção do Conservatório de música da OSPA, então já estava estudando música em um lugar que me destinava à carreira de músico mesmo. Fiquei cinco anos na carreira de educador, professor.
Perto dos meus 20 anos, olhei para minha história, para o que eu tinha produzido já e, principalmente, para meus medos, de subir em cima do palco e mostrar as coisas que eu tinha escrito. Então consegui resolver isso e, entre meus 25 e 28 anos, eu decidi começar com essa carreira de artista.
Você atua como compositor, percussionista, poeta, cineasta, ator e performer. Como é ser um multiartista, trabalhar nestas diferentes áreas?
Dona Conceição – Sempre gostei muito de estudar. A curiosidade movia meu interesse e eu vou até as últimas para descobrir. Acho que a arte e a música foram uma das primeiras coisas que eu senti a curiosidade e fui desvendar. Logo em seguida veio a questão do teatro, então acabei fazendo cursos de formação. Trabalhei como ator no teatro, depois com a publicidade e mais recentemente no cinema. A performance [eu fiz] muito mais no lugar de provocar na sociedade questionamentos, que para mim fazia todo sentido.
Esse lugar de multiartista que falamos vem muito de uma pessoa inquieta e curiosa. Depois que a é sanada, eu queria passar isso para o resto das pessoas de alguma forma. Criar obras que possam ser ponte para um conhecimento é importante. Pontes entre as relações estéticas e as relações humanas.
O que você julga ser mais importante na música que você produz? Quais os significados que possuem na sua vida?
Dona Conceição – O que eu julgo mais importante para qualquer artista que está compondo é tentar buscar o sentido daquilo que está sendo feito. Como eu tenho visto até hoje, nesta curta passagem de tempo, é que quando alguma coisa faz muito sentido para mim, ela acaba chegando em alguém de alguma maneira. Às vezes o que faz sentido para a gente é um cenário imaginário, mas, ainda assim, faz sentido para alguém que está compondo. A necessidade de colocar para fora é incontrolável. Quero construir algo que seja tão resistente ao tempo que daqui a alguns anos o que eu escrevi e cantei ainda esteja ecoando por aí.
Nunca pensei em criar um ritmo, uma música que estourasse. Eu busco construir uma obra, coisas que tenham sentido na minha vida. Não tenho dúvida que o que eu canto vai fazer sentido daqui alguns anos ainda. Infelizmente, por muito tempo, vamos ver coisas que eu não gostaria de cantar. Acho que o principal, para mim, é a arte ter um sentido fundamental. Tento olhar como uma bússola para me nortear sobre tudo que eu ando fazendo.
Você resiste e denuncia o racismo e o genocídio da juventude negra através da arte, do seu trabalho. Por que decidiu trabalhar nesse tema?
Dona Conceição – Eu falo sobre isso porque eu preciso. Se eu deixar de falar sobre racismo e genocídio, não vai parar de bater na minha porta, na porta da minha filha, dos meus irmãos, das minhas irmãs, dos meus amigos. Um hora esse sistema estrutural vai nos encontrar e pode ser de uma maneira fatal, ou na falta de emprego e de reconhecimento.A escolha de eu falar sobre isso ou não pode ser de certa forma uma escolha individual. Mas algumas pessoas escolhem a luta coletiva. Esse é o meu caso.
Como é ser um artista negro no Rio Grande do Sul?
Dona Conceição – Tem uma lógica capitalista que é de competição. Muitos devem pensar que como somos poucos no Rio Grande do Sul, deve ser muito fácil ser preto e viver de música porque devem se destacar. Isso eu já ouvi falar aqui no Rio Grande do Sul. Como é uma coisa estrutural, e eu observo muito essas coisas, o racismo está na fala das pessoas, nos gestos que podem tocar no meu corpo, no modo de olhar de desdém sobre aquilo que você faz, não citar seu trabalho ou quando você é o único negro em um ambiente. Como somos muito poucos e na música todo mundo se conhece, é muito difícil tu não conhecer o trabalho de outros.
Tem muitas dificuldades por ser preto e artista no Rio Grande do Sul. Primeiro porque tivemos vários episódios de assassinato em massa. Foi o último estado a abolir a escravidão. Fora todos os massacres, guerras e as situações das famílias. Estamos falando de genocídio mesmo, de assassinato. Isso não muda porque o pensamento de muitos só se aprimorou com a tecnologia, mas não deixam de pensar que a gente é menos importante.
O estado tem esse requinte de crueldade que alguns outros lugares do Brasil não têm. Falta referência porque somos menos de 20% da população do Rio Grande do Sul. Então acaba que elas são poucas e quando existem não são citadas. Por isso que as pessoas, muitas vezes, nem acham que sou daqui, associam meu trabalho muito mais a outros lugares do país, justamente porque não tem muitas pessoas que falem sobre isso por aqui. E temos artistas e obras fantásticas que mereciam todo apoio, mas não têm e acabam desistindo do trabalho, por ter uma vida prática.
Aqui no estado tem esse grande precipício para artistas como eu e é preciso um pensar coletivo. É muito difícil que eu esteja sozinho em meus trabalhos. Inclusive temos que dar responsabilidades às pessoas brancas. A sociedade é feita de pessoas negras e pessoas brancas, e cada um tem seu lugar e poder de fala. É muito difícil entrar nesse diálogo aqui no estado.
Como é trabalhar com o cinema? Qual foi teu encanto nessa área?
Dona Conceição – Acho que veio muito em razão do teatro, o lance da atuação. O fato de conseguir eternizar as mensagens e a obra fonográfica tem por sua vez esse propósito. Comecei a me interessar pela questão do cinema, mais específico da atuação, produção e escrita em função disso. Acabei indo para o Rio de Janeiro e tendo contato com diretores e diretoras e isso me acendeu. Eu já trabalhava com teatro, atuação, mas não com cinema.
Na Publicidade e Propaganda não se tem a liberdade de opinião, de como quer a câmera, o conceito da obra. Quando se é diretor, roteirista, você pode compor a obra da maneira que você pensa, e isso sempre me instigou. É um lugar de poder muito difícil de estar. O cinema e o audiovisual são algo mais recente na minha vida, digo oito a nove anos, mas eu já mergulhei de cabeça mesmo porque as pessoas não me reconhecem só pelo trabalho de músico.
Outro assunto bem pertinente para ti é a religiosidade. Como você enxerga o aumento da intolerância/perseguição religiosa no Brasil?
Dona Conceição – Estamos falando de uma guerra de narrativa. As igrejas, principalmente as neopentecostais, são disseminadoras de ódio. Quando falamos de “tolerar”, é uma palavra absurda. Na sociedade em que vivemos, pedir para ser tolerado. Não, né. Eu não quero ser tolerado, quero ser respeitado, assim como eu respeito os cristãos. Não vou espalhar mentiras sobre a religião de vocês, não vou culpar todo lixo da sociedade por causa da religião de vocês. Não façam isso com minha história.
É evidente que a elevada do fascismo no Brasil, a elevada de todo lixo que a sociedade colocou para fora tem a ver com essa igreja neopentecostal. Tem que ter um elemento que associa a minha religião ao demônio, ao inferno. Não existe demônio na cosmovisão africana. Os nossos deuses pregam a caridade, o bem viver, o cuidado à natureza.
Quando estamos falando de narrativa é isso, tu precisa pegar um elemento de narrativa que seja antagonista para conseguir detonar. Se não existir uma batalha, uma guerra, não serve para eles. Tem que existir algo para combater. Como se a felicidade e a vitória só importassem se a gente destruir algo. Destruir é mais fácil de construir.
Esse movimento neopentecostal evangélico no Brasil não só tomou conta aqui como tomou conta de boa parte da América Latina, boa parte do continente africano. As pessoas precisam ir para outros lugares levar ideias melhores que as outras, estilo capitalismo. Não tem explicação racional para esse tipo de atitude. Intolerância religiosa é um ponto grave e não existe outro jeito de mudar senão através da educação, da cultura.
No Carnaval, enxergamos uma grande representação dos Orixás. Houve uma desmistificação a respeito de Exú, sobre sua grande perseguição. Qual a mensagem da música “Saudação a Exú” e seu posicionamento sobre?
Dona Conceição – Essa música foi feita em 2017, quando estava chegando em Paris, na França. Eu falava pouco francês e estava perdido no saguão do aeroporto. Um homem, possivelmente senegalês, me orientou para que eu pudesse sair. Ele estava com um chapéu metade vermelho e metade preto. Na mesma hora escrevi a música “Saudação a Exú”.
Eu coloco o seguinte: “Eu vim saudar a força do caminho, meu caminho caminhar”. Acredito que o Orixá da comunicação, Orixá dos caminhos, estava ali comigo de alguma forma e se manifestou naquele gesto para que eu não ficasse com medo, mostrando que eu não estava sozinho. Naquela hora, a música não ia entrar no meu disco, mas mandei para o meu produtor e ele me falou que essa música tinha que estar. Então acabou sendo a primeira música do meu disco. Ela simboliza para mim a ideia de que esse mundo invisível, que nos rodeia, não está abdicado de tomar decisões e estamos a todo tempo sendo estimulados.
A retratação de Exú no Carnaval me deixa muito feliz porque enxergamos as referências positivas dos Orixás. O Carnaval sempre foi um lugar de muita reflexão das questões sociais, mas atualmente tem tomado maiores proporções. Eu fiquei muito feliz de ver e acho que o Carnaval cumpre com a função de dar referências estéticas às matrizes africanas.
Se parar para observar, quantos sambas-enredos – tanto no Carnaval do Rio/São Paulo quanto aqui de Porto Alegre – colocaram sempre os Orixás como elementos retratados com beleza e respeito. Isso não é uma coisa recente, sempre aconteceu no Brasil. O que não se tinha era uma percepção da grande mídia em relação a assuntos como esse.
Por fim, o que você almeja para sua carreira e qual o seu maior objetivo?
Dona Conceição – O objetivo é que a gente sempre crie instrumentos para combater o racismo, para que tenhamos mais pessoas negras em lugares de poder. Meus projetos futuros acabam dialogando com isso. Tenho o projeto de realizar o filme musical de ficção, que é um longa-metragem, com trilha sonora original, chamado “Samba de Morte”. É um longo projeto. Pretendo realizar nos próximos três anos. Ele tem consumido a maior parte da minha energia criativa e acho que vai ser inédito.
* João Teixeira, estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.