Foto: reprodução

Em Vozes de retratos íntimos, Taiasmin Ohnmacht desenrola os fios da história de sua família 

É como se Taiasmin segurasse os fios da própria história em suas mãos. Presente e passado tramam-se em simultâneo Em Vozes de retratos íntimos (editora Taverna, 2021), e a narradora tem a habilidade de navegar em um tempo pessoal e coletivo.  “Vou precisar da tua e da minha imaginação”, diz já nas primeiras páginas do livro, pré-finalista do prêmio Jabuti em 2022. 

Essa espécie de aviso dado nos diz: você, leitora, embarca nestes fios da memória comigo, neste Brasil colonial, racista e escravagista que aparece na história de cada pessoa de sua família. Em outro momento, a narradora-personagem nos lembra: “Como Exu que acerta um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje, quando assumo Ohnmacht acerto ao mesmo tempo passado e futuro”. A trama parece reunir mesmo algumas das qualidades exusíacas: estar em todo lugar ao mesmo tempo, desafiar as barreiras do espaço. De forma que narra, a sensação é que viveu o que a mãe Dora, vó Benedita, pai Alfredo, e avô João viveram. É como se assistisse(mos) o passado de muito perto, esmiuçado. 

“Ser Ohnmacht é algo que preciso inventar e para o qual não encontro nenhuma pista em minha família branca. […] Ohnmacht, para ser meu, precisa ser negro, o meu Ohnmacht precisa abarcar o que há de Adderley em mim, precisa cravar raízes em uma história velada, em muitas histórias veladas, e daí arrancar todos os véus.As imagens precisam ser contadas.” 

Vozes é um livro fotográfico. A todo tempo, lembra o exercício de abrir um álbum e, ao passar as páginas, depara-se com perguntas sobre a história daqueles que vieram antes e que não podem mais falar. Mas também revela e provoca, à medida que atentamos à não existência dessas imagens – sejam fotográficas, ou apenas contadas, a realidade de gerações de famílias negras impedidas de preservarem suas memórias. E cabe a autora, na ponta do fio, criar, imaginar o que foi e o que poderia ter sido. Mistura, então, elementos biográficos e ficcionais. Ela fricciona as lacunas que não foram contadas, como a origem indígena de sua bisavó e a negritude de toda sua família materna. 

Lida com as ausências maternas, paternas, afetivas. Conhecemos a história de sua mãe. Do racismo que começava dentro das palavras de seu pai, um homem branco.  Acessamos as sucessivas ausências paternas – como o avô João, militante comunista, que deixou para trás a família, e o bisavô que violou o corpo de sua avó. Vemos mulheres, geração após geração, dando conta, da casa, da criação, da vida diária em um Brasil que nunca deixou de operar em sua lógica colonial. É como se a autora também nos levasse para o meio dos fios da história do país, desde a imigração, a escravização, a invasão de terras indígenas, a ditadura, até os dias de hoje. As diferentes experiências que os corpos de seus antepassados tiveram revelam sempre a cor de suas peles e as suas origens.  

Taiasmin é psicanalista, escritora da novela Visite o Decorado (2019), e sua escrita transparece uma espécie de processo analítico. Ohnmacht é um de seus sobrenomes e também um dos fios que puxa a narrativa do livro. Como são muitos personagens que a autora nos apresenta, muitas vezes tem-se a sensação de não saber o que é de um e o que é de outro. A transição entre a passagem de uma geração para outra nem sempre é clara, como toda associação livre, e como é o processo de buscar a si a partir do passado.

“E sigo por estas folhas fazendo recortes de pessoas em personagens, não corto mais o vestido, recorto um certo perfil, a tesoura não é a única ferramenta que me acompanha, também uso agulhas, fios, linhas e busco material tanto nas palavras quanto nos silêncios. Talvez a personagem mais silenciosa dessa história seja a mãe de minha avó, desta nem o nome soubemos.” 

Vozes é um livro que fala sobre liberdade e libertação. Seja pela falta, seja pelo contínuo movimento de buscá-las. O título Vozes de retratos íntimos enlaça a trama porque nos faz acessar a intimidade das histórias contadas e refletir sobre as relações étnico-raciais brasileiras. É como se a autora oferecesse a possibilidade do ponto de vista a cada figura de seu álbum da família.                                               

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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