Foto: Louise Maria/defensoria Pública do Tocantins

Setor do livro e leitura comemora secretaria própria e aponta desafios para o futuro

Retrocesso imensurável. Políticas públicas inexistentes. Bibliotecas sem investimentos. O cenário durante os quatro anos de governo Bolsonaro foi apocalíptico para quem trabalha na área do livro no Brasil. Com a entrada do novo governo e a recriação do Ministério da Cultura, juntamente com a nova Secretaria de Formação e de Livro e Leitura, agentes do setor esperam que os próximos anos sejam de reconstrução. 

Entre os principais programas da área que deverão ser recuperados está o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Ele existe desde 2006 e se baseia em dois alicerces: a ideia de que o Estado e a sociedade precisam estar conectados para formar leitores e a de que o investimento à leitura e à educação pelo Estado brasileiro devem trabalhar em conjunto. 

Com isso, foram elaborados quatro eixos de ação, verdadeiras diretrizes para a criação de programas e projetos da área: a democratização do acesso ao livro e a leitura, a formação de mediadores de leitura, o incremento do valor simbólico do livro e o incentivo à economia da cadeia produtiva. O PNLL ainda não tem a abrangência merecida e foi praticamente abandonado como política de Estado após a entrada de Michel Temer no poder, avaliam agentes do campo. 

José Castilho, uma das autoridades na área de políticas públicas do livro e um dos criadores do PNLL, analisa o desmonte. “No âmbito da cultura, todos os programas foram paralisados, somado ao esvaziamento da Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, instalada na Secretaria Especial de Cultura no Ministério do Turismo, e que já havia sido rebaixada a Departamento sem recursos e quase sem funcionários no governo Temer. Virou tudo uma fachada sem conteúdo e sem realizações”, critica. 

“No MEC [Ministério da Educação], o outro braço do PNLL, a extinção do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE), que privilegiava o acervo literário para os estudantes, foi substituído por um questionável Programa Nacional do Livro Didático/Literário – PNLD/literário”, explica. O único programa de incentivo à leitura no período foi o Conta para mim, criticado por educadores e diversos profissionais do livro. 

Presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Escrita, a deputada federal Fernanda Melchionna conta que durante o período do governo Bolsonaro o trabalho do grupo foi muito mais de resistência aos retrocessos, à censura e ao desmonte, como a luta contra a censura ao acervo da Fundação Palmares. Agora, projeta quais são os pontos que devem ser prioridades. 

“Cobrar do governo a regulamentação da Política Nacional de Leitura e Escrita, que passa pela implementação do Plano Nacional do Livro e da Leitura, que ficou paralisada durante o governo de Bolsonaro. Depois da censura e guerra ideológica aos livros, promovido pelo governo da extrema direita, é fundamental implementar ações públicas de promoção da literatura brasileira e fomento dos processos de criação, difusão, circulação e intercâmbio literário. É preciso exigir que essa importante política pública saia do papel e vire uma diretriz de Estado e não de governo”, afirma. 

Outros temas que devem entrar em debate são ações para tornar o preço do livro mais acessível e políticas que apoiem a diversidade cultural na área. “Difundir as diversas expressões da literatura brasileira, abarcando a literatura regional, afro-brasileira, indígena, LGBTI+, feminista, entre outras, é essencial”, diz Melchionna. 

Castilho teve participação nos debates que originaram a  Lei 13.696, também conhecida como Lei Castilho, que leva seu nome, em 2018. Ela garante que o Estado brasileiro se comprometa a criar um novo PNLL periodicamente, traçando e estabelecendo metas e ações para o livro, leitura, literatura e biblioteca no país. O que de fato ainda não aconteceu. 

Apesar das dificuldades, o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares, se diz otimista com o atual momento. “Acreditamos que podemos avançar nas conquistas para o mercado editorial e livreiro em nosso país. A criação de uma secretaria específica para essa área foi um pleito de diversas entidades do nosso setor, encaminhado em dezembro do ano passado. Entendemos que, para a implementação de políticas que valorizem o livro e a leitura, seria fundamental termos uma secretaria específica que pudesse articular todos os agentes envolvidos, propor ações, estabelecer metas e avaliar resultados”, aponta o presidente da CBL, entidade que visa promover o mercado brasileiro e cultivar o hábito da leitura. 

Vitor lembra que a instituição vai continuar defendendo os principais objetivos do mercado: a defesa dos direitos autorais, da propriedade intelectual, a ampliação e o fomento ao hábito da leitura, o fortalecimento das livrarias físicas e, de forma ampla, o desenvolvimento do setor e a defesa do livro em todas as suas vertentes.

Já Castilho defende que a prioridade deve ser a implementação da Lei que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita, instrumento de organização vertical e horizontal de restauração dos programas públicos de todo o setor por intermédio de um novo PNLL decenal. “E também a prioridade de investimentos nas bibliotecas de acesso público (públicas, escolares, comunitárias), hoje em franco processo de resistência para se manterem atuantes e principais instrumentos de democratização do acesso à leitura para os brasileiros e brasileiras”, acredita. 

Para ele, o PNLL é um plano vencedor enquanto política pública. “Suas bases conceituais e seus quatro eixos estão capilarizados entre todos os integrantes e ativistas do livro, da leitura e das bibliotecas. Mesmo ainda contando com um número pequeno de municípios que têm o seu Plano Municipal do Livro e Leitura – PMLL, hoje em torno de 160 Planos, todas as cidades e estados que desenvolvem programas e ações de livro e leitura o fazem tendo como base o PNLL implantado entre 2006 e 2010. Mesmo com toda a destruição bolsonarista e o desprezo do governo Temer que desidratou o setor e a política pública, pesquisas realizadas em 2021 e 2022 constatam essa permanência”, diz.

 Mais bibliotecas, mais visões críticas

Acervo da biblioteca Cirandar é recheado de clássicos e lançamentos da literatura nacional (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Para os eixos do PNLL funcionarem, é preciso de mais investimentos em espaços como bibliotecas em seus diversos formatos, além de profissionais qualificados para atuar nos ambientes, como os mediadores de leitura. Gislene Rodrigues, presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia da 10ª Região, acredita que entre as prioridades deve-se estar, além da retomada dos programas de leitura, também o estabelecimento de novas políticas públicas. 

“Isso estaria relacionado ao cumprimento da lei 12.244 com a efetiva universalização das bibliotecas escolares, bem como o fortalecimento e criação de um Plano Nacional de Bibliotecas Escolares, prevendo inclusive a inserção da educação midiática e informacional tendo com o intuito de diminuir a incidência e os danos que a desinformação tem causado no debate público e para a sociedade de forma geral”, acredita. 

Melchionna, que também é graduada em Biblioteconomia, concorda e lembra da importância da bibliodiversidade e da formação de mediadores para uma educação mais crítica. “Na última audiência pública que realizamos em 2022 na Câmara dos Deputados, encaminhamos a necessidade de uma reunião com o novo secretário sobre a Lei de Universalização da Bibliotecas, assim como a criação de um grupo de trabalho para institucionalizar parâmetros nacionais para bibliotecas escolares, pensando nas diversas realidades regionais, e a busca pelo Plano Nacional da Biblioteca na Escola, com o Ministério da Educação garantindo partes dos acervos e os municípios com infraestrutura e pessoal”, diz. 

A pesquisa Hábitos Culturais  realizada em 2022 pelo Itaú Cultural mostrou que as bibliotecas aparecem como um dos destinos mais visitados no período analisado, ao lado do cinema e exposições. Segundo a pesquisa O Brasil que Lê, realizada no início do ano, 76% dos espaços e projetos com foco em leitura sofrem com a falta de verba no país.

Para Gislene a questão de uma educação crítica, além da leitura em si, passa pelo fortalecimento das bibliotecas comunitárias. “O fortalecimento de espaços como as bibliotecas comunitárias, que colocam a periferia no centro são fundamentais para que a leitura possa ser disseminada na sociedade brasileira e torne-se instrumento de construção de senso crítico e, principalmente, ético dentro do lugar social e nas interações e debates de ideias tão necessários em um país plural e democrático como o Brasil”, conclui. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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