ILustração de O Avesso da Pele (Antônio Obá/Companhia das letras)

Em ano eleitoral, cerceamento à liberdade artística segue no Brasil

Obras podem causar estranheza, raiva, tristeza ou alegria: tudo depende de quem vê. Mas ainda que suscitar emoção ao espectador seja uma característica do fazer artístico, temáticas de certas exposições e trabalhos têm levado à censura e boicote. 

O Brasil tem sido prova disso, especialmente desde 2017, quando a exposição Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira foi censurada após pressão de políticos e eleitores da extrema direita. Só nos últimos cinco anos, pelo menos cem casos de censura direta a artistas foram mapeados pelo Observatório da Censura à Arte e centenas de casos de perseguição judicial ou administrativa a artistas pelo poder público foram identificadas pelo Mapa da Censura do Movimento Brasileiro pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE).

Denise Dora, advogada e co-idealizadora do MOBILE, explica que, após 2016, “se observa uma organização do setor conservador na sociedade brasileira. Os grandes movimentos de censura às exposições começam antes das eleições de 2018. O episódio da Queermuseu aqui no Rio Grande do Sul, também a perseguição da peça O Evangelho Segundo Jesus Cristo [estrelada por uma atriz trans], tudo isso acontece durante 2017 e 2018”, lembra ela.

Nos últimos meses, o Nonada registrou no Observatório de Censura à Arte casos de censura provocados por prefeituras ou governos de estados. Na última semana, os governos do Paraná, de Goiás e do Mato Grosso do Sul decidiram recolher o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, das bibliotecas escolares estaduais. A censura ocorreu poucos dias após o livro ser atacado pela diretora de uma escola no interior do Rio Grande do Sul com falas distorcidas sobre a obra e acusações de que ela teria pornografia, o que não ocorre na obra. A obra havia sido recomendada pelo Programa Nacional do Livro Didático ainda no último governo fededral.

O cantor Johnny Hooker foi alvo de censura em duas cidades diferentes nos últimos meses (Foto: divulgação)

Na mesma semana, um show do cantor Johnny Hooker que aconteceria no sábado em Niterói (RJ) foi cancelado pela prefeitura após campanha que inflamou notícias falsas contra o cantor. Parlamentares de extrema direita circularam vídeos antigos no qual o cantor defendia a peça “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”. Outro show de Johnny em Boa Vista (RR) em setembro de 2023 também foi cancelado pelo mesmo motivo. “Vale lembrar que JH venceu todos os processos judiciais relacionados às falas do vídeo, publicado de maneira descontextualizada”, diz a equipe em nota.

Em Campina Grande (PB), o prefeito chegou a proibir blocos de carnaval de desfilarem em áreas públicas. O decreto considerava que essas datas deveriam ser exclusivas para a realização do “Carnaval da Paz”, que reúne “vários encontros religiosos sobre fé, espiritualidade e autoconhecimento”. O prefeito voltou atrás de sua decisão após a repercussão e atuação da Defensoria Pública. 

 Também ocorreram tentativas de censura, a exemplo da Pinacoteca do Ceará, que foi alvo de uma campanha de fake news por parte de uma vereadora. A parlamentar gravou vídeos mostrando obras e acusando o equipamento cultural de expor crianças à nudez, mas não informou que cada trabalho exposto no museu é acompanhado de uma placa com classificação indicativa. 

“Quando o Estado é censor, a censura assume uma característica muito mais intensa, porque o Estado tem seus mecanismos, inclusive extrajudiciais, de fazer isso, medidas administrativas, medidas coercitivas que envolvem os contratos”, avalia Denise Dora, em referência ao governo Bolsonaro. No período, houve censura direta por parte do Planalto, por exemplo o cancelamento de um edital da Ancine que premiava filmes LGBTQIA+ em agosto de 2018. A arte com temática LGBTQIA+, antirracista ou com críticas ao aparato policial estão entre as de maior ocorrência no Observatório.

Todo este contexto faz com que o cerceamento à liberdade artística continue sendo incentivada e perpetrada pelo rastro do Bolsonarismo na política. “Quando essas forças conservadoras tomam o poder de Estado, através do governo federal, a censura se reorganiza de novo, muito fortemente. Passa de novo a contar com instrumentos do Estado, como destruição de equipamentos culturais, cancelamento de contratos, cancelamento de financiamento via as leis de incentivo à cultura, difamação de artistas a partir da fala de autoridades. Então tem todos esses elementos que fazem com que ela apareça novamente, mas ela sempre está aí”, diz a especialista.

Mesmo em governos mais progressistas, a censura pode continuar, aponta Denise. “A criminalização contra artistas de rua, que fazem grafite, produzem funk, participam e produzem rodas de slams, especialmente artistas que vivem na periferia das cidades, combina com discriminação racial, discriminação contra a pobreza, isso sempre aconteceu, nunca deixou de acontecer”.

Exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A capoeira, por exemplo, misto de dança, música e arte marcial, expressão cultural desenvolvida por descendentes de pessoas escravizadas no Brasil, foi criminalizada até 1937. Uma pessoa flagrada praticando-a poderia ser encarcerada por até 6 meses. Até os dias de hoje ela segue visada — em matéria recente, o Nonada mostrou como casos de censura e apropriação cultural da prática por grupos evangélicos têm preocupado capoeiristas em várias cidades do país.

Embora com ações afirmativas aparecendo timidamente em editais e em leis de incentivo, pessoas que não estão nos círculos dominantes continuam segregadas. Burocracia e linguagem difícil estão entre as principais reclamações. Os trabalhadores da cultura, além de se depararem com a censura, também enfrentam precarização do trabalho no setor. Segundo dados do Observatório Itaú Cultural, 2,7 milhões de pessoas que trabalham no setor cultural no Brasil são informais, ou seja, estão sem carteira assinada ou direitos trabalhistas garantidos.

Mesmo a economia criativa movimentando 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB), que ultrapassa o setor automotivo, isso não se traduz em melhores condições de vida. Baixos salários, insegurança financeira, dependência de editais e financiamentos são fatores que causam incerteza em relação ao futuro dos artistas brasileiros. O cerceamento à sua prática artística também ofusca as possibilidades de trabalho digno.

Além do Estado, empresas privadas também atuam como censoras. “Quando elas deixam de patrocinar, deixam de financiar, também atuam pela censura. Esse foi o caso do banco Santander, que retirou uma exposição a partir de uma manifestação pública dizendo que determinada obra atacava a moral e os bons costumes”, diz Dora.

O caso citado é o da Queermuseu, onde a instituição financeira concordou com protestos contra obras, mesmo depois de a exposição ter sido aprovada e aberta. O banco alegou que as obras exibidas desrespeitavam símbolos e crenças, e não seriam condizentes com a visão de mundo da organização.

Outro caso envolvendo uma empresa privada foi o cancelamento do show do cantor Bruno Camurati em junho de 2022. A apresentação foi cancelada sem explicações pelo festival de música gospel Halleluya dias após o cantor se declarar homossexual nas redes sociais. Não houve explicação por parte da empresa Eventos Shalom, responsável pela realização do evento.

Em novembro de 2023, diversas organizações realizaram o seminário “Princípios Interamericanos sobre Liberdade de Expressão Artística e Direitos dos Artistas e Profissionais da Cultura”, em Washington, nos Estados Unidos. Guilherme Varella, do MOBILE, apresentou o trabalho do movimento: “analisamos mais de 600 casos e percebemos que foi claramente um fenômeno estruturado e sistemático que não era pontual, não eram casos que estavam só no Executivo, ou só no Judiciário, ou só em um Estado ou em uma cidade, mas era um fenômeno que tinha um alinhamento político-ideológico”.

A conclusão dos relatores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (CIDH) foi que é preciso avançar na construção de princípios, políticas públicas sólidas, bem como em padrões jurídicos robustos no mundo todo, para que a liberdade artística não fique à mercê de governos autoritários. “Essa conceitualização normativa precisa impactar a realidade, trazer transformações sociais que possibilitem a incorporação desses princípios e que sejam resistentes a situações complicadas na democracia”, sugeriu o relator Javier Palummo.

“Acho que devemos estar muito atentos, alerta, e mobilizar forças para garantir o direito de artistas e das artistas se manifestarem, independente de quem são os governos”, defende Dora.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
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