Arte: Julia Beatriz de Freitas

A trajetória de uma família que ajudou a fundar o Movimento dos Trabalhadores sem Terra

O uso e a ocupação da terra no Brasil construíram e constroem, cotidianamente, o país como lugar de desigualdades sociais, econômicas, de raça e gênero produzidas pelo habitar colonial.  O território brasileiro é demarcado pela priorização da propriedade privada da terra em favor das elites rurais, processo que exclui e destrói saberes, viveres e vidas humanas e não humanas – processo que contribui significativamente para a crise contemporânea enfrentada. São muitos e diversos os humanos que, em segregação e subjugação da lógica do habitar colonial, resistem aos anos e séculos na prática desse exercício. 

Pensar com os pés no chão não nos livra do “problema”, mas nos faz seguir com ele para construir respostas mais comprometidas com futuros possíveis – talvez o Futuro Ancestral advogado por Krenak. Nesta série especial idealizada pela repórter Júlia Beatriz de Freitas, buscamos histórias de Norte a Sul de quem – humanos e não humanos – se aproximam da terra e dos “húmus” de ‘quem coloca os pés no chão’ e contribui para uma cultura alimentar pautada pela justiça social e pela transformação socioambiental.

Júlia Beatriz de Freitas, especial para o Nonada Jornalismo

Julieta não gosta de cozinhar. Não teme dizer isso enquanto serve os pratos na mesa. Depois de horas na cozinha, ela serve uma panela grande cheia de arroz com carne acompanhada de biscoito de polvilho e lentilha. Ao lado, um pote de pepino em conserva. É o almoço para a família e para as visitas em um sábado ensolarado – um dia bonito, como ela define. Julieta conversa com sua irmã sobre as fotos do seu casamento datadas de 1974 e tentam, na interação, lembrar de datas importantes na vida da família.

Depois do almoço, Julieta se retira para um cochilo responsável por recuperar sua energia para o tanto que quer bailar à noite – é como ela diz. Antes de se recolher no quarto, brinca com seu esposo, Leonildo: se ele não quiser dançar com ela, ela dança com outras pessoas. E ri. Horas depois, a senhora de estatura baixa brinca de novo que, por ser sua festa de aniversário, não quer ter muito trabalho na organização do salão. Abraça e sorri para o marido, mais alto – como o volume de seu riso.

É mais um dia de festa no galpão do assentamento Filhos de Sepé, no interior de Viamão, estado do Rio Grande do Sul. Silone, filha do casal e que agora já é mãe, brinca que seu serviço de decoração para festas custa mil reais.  Faz em toda festa – em toda comemoração feita ali. O nome Sepé tem origem clara: vem de Sepé Tiaraju, um líder indígena guarani que viveu no século 18 na região dos Sete Povos das Missões, região noroeste do estado. 

Flores coloridas e ramos de alecrim decoram o centro comunitário do assentamento, um galpão lotado de carteiras estudantis que servem de apoio para tábuas de madeira ao formar mesas grandes, distribuídas de maneira orquestrada para ter espaço para a dança. Leonildo ajuda a montar as mesas, preocupado com a disposição para que ninguém fique de costas ao espaço de movimento e festejo.

No interior, ele conta, a infância e juventude são preenchidas por duas coisas: igreja e futebol – reza e jogo. Foi cedo que Leonildo virou pastorzinho da Igreja Luterana. Logo, líder da ‘juventude’ na área. Organizava reuniões de 50 pessoas, bailões, excursões e partidas do jogo – onde lembra de praticar o exercício, levado para a vida, de apartar brigas. O interior ao qual ele se refere era o município de Iraí, distante mais de 400 quilômetros dali – cidade natal dele e de Julieta.

Leonildo começou a namorar Julieta pouco depois da adolescência. Juntos, pegavam ônibus por 12 quilômetros para frequentar o culto na igreja católica até comprar um fusca. Aí movimentavam mais – ajudavam nas festas, se ‘entrosavam’ na comunidade.

Meses depois da festa no galpão do assentamento decorado pela filha, um galpão no centro histórico do Rio de Janeiro abrigaria uma prateleira carregada de dezenas de pacotes de arroz descritos como orgânicos à venda. Escada acima no estabelecimento denominado Armazém do Campo, o som e a dança das pessoas estampadas com bandeiras do Movimento Sem Terra (MST) comemorariam o carnaval. Suor, samba e calor. Embaixo, quilos de arroz produzidos longe dali, no sul do país.

Antes dos pacotes transportados até o Rio, do selo de orgânico e do logo da cooperativa estampados neles – vieram as mãos de Julieta e Leonildo. E muitas outras que se emaranham na terra. 

Leonildo Zang gosta de dança, diz ele depois de comer do almoço preparado por Julieta. Não importa o nível e o engajamento de conversa – quando chamado para o almoço, interrompe a conversa e vai. Tudo pode esperar. Hora do alimento é hora do alimento. Antes, ao sentar-se à mesa para servir não deixa de dizer orgulhoso: “esse arroz é nosso”. É da maior plantação de arroz orgânico da América Latina. 

Essa foi a manchete que viralizou nas redes sociais e notícias sobre o local. O título de maior produção de arroz orgânico da América Latina é carregado por essas famílias produtoras há dez anos, de acordo com um levantamento do Instituto Riograndense de Arroz (Irga).

Foto: Julia Beatriz de Freitas

Diz Leonildo que bom mesmo é um bailão com música gauchesca. Afirma frequentar os da cidade voltados para a terceira idade. Neste ano, entretanto, ao comemorar cinquenta anos de casado com a esposa, deseja algo diferente. “Quero fazer uma viagem bonita”, fala. Talvez para o Uruguai, país vizinho, mais próximo a seu estado que o próprio Rio de Janeiro.

Zang é o sobrenome e apelido de Leonildo. O homem, enquanto gesticula no falar, entrelaça as mãos de unhas grandes, grossas e marcadas de terra. O joelho tem músculos saltados, os quais aponta e credita à prática do futebol, deixada no passado de juventude. Preenche silêncios com histórias e sorrisos fáceis. Disse a uma visitante baiana algo marcante pra ela, que repetiu a frase ouvida: eu não conseguiria ser algo diferente do que sou.

O assentamento onde mora tem uma área de 9,4 mil hectares localizados na Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande, que abarca Pampa e Mata Atlântica, e ocupa cerca de dois terços da bacia hidrográfica do rio Gravataí. A APA foi criada para proteger os ‘banhados’ que formam o rio. Ali ainda sobrevivem os últimos remanescentes no estado do cervo-do-pantanal e conta com populações de 13 espécies de aves ameaçadas de extinção. Fica no município de Viamão, zona metropolitana de Porto Alegre.

Desses mais de 9 mil hectares de assentamento, 2,5 mil hectares estão no Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, uma área protegida dentro da APA; 3,5 mil hectares são de área de várzea e 500 hectares de lâmina d’água de uma barragem.Os 3 mil hectares restantes são de lotes secos, em altitude mais elevada e distantes. O assentamento é acessado principalmente pela RS 040 e é o maior da Reforma Agrária do Rio Grande do Sul.

Vida na cidade

Antes de terem qualquer coisa onde hoje vivem, Leonildo foi um dos escolhidos para fazer um ‘reconhecimento do território’ na área, em 1996. Relatou às famílias escolhidas para o local: não tinha nada. Nenhuma árvore sequer. Era um ‘sertão’ hoje difícil de imaginar no lugar que hoje é circulado por estradas sombreadas por árvores diferentes e cercas frente às flores abundantes das casas no assentamento dos sem-terra.

Formigas marcavam presença ali. “Tu plantava uma coisa e a formiga comia na mesma noite”, relembra sobre o passado do lugar onde hoje mora. Centenas de anos antes do Brasil ser Brasil, o português Pero de Magalhães Gândavo atestava a existência do inseto de diferentes formas em escritos coloniais: “toda esta terra do Brasil he coberta de formigas pequenas e grandes[…]”. Densidades de colônias de formigas, sabe-se hoje, crescem e multiplicam-se ainda mais quando a terra é desmatada.

Tempos escassos vêm à memória de Leonildo ao falar do assentamento. Memórias diferentes dos quatro anos de quando a família morou na cidade: uma casa boa e cheia de coisa. Mas também uma vida triste. 

No tempo em que morou na cidade de Iraí, ainda nos anos 1980 capinava lote de ‘rico’, onde há pouca formiga, faz a comparação. Julieta cortava cabelo, ofício que pegou gosto. Por muito tempo, anos depois, a mulher de cabelos encaracolados e curtos cortava os cabelos das mulheres assentadas.

Os patrões para quem trabalhava na cidade contratavam Leonildo com desgosto porque “sabiam de sua posição na cidade”, um reconhecimento construído na área rural ainda antes da vida urbana. 

Era ditadura e naquela época os sindicatos serviam aos patrões, define Leonildo. “Nas comunidades de base fomos descobrindo que o que ensinaram durante vinte anos era tudo mentira. E aí a gente se revoltou com tanta injustiça. E começamos a lutar. Mas era, inicialmente, para mudar o sindicalismo”, diz.

A vida é feita de decisões e eu sou um homem decidido, diz o assentado. A sua primeira grande decisão, relata, foi colocar uma mudança em cima de um caminhão. Saía de onde construiu uma vida – da terra. Quando olhou para trás, chorou. E na hora pensou: lá ficam 16 anos. Foi o tempo que ficou em cima da terra herdada pela companheira. Ganhou uma vaquinha, lembra como marco, e Julieta herdou um pedacinho de terra. Foram três filhos criados em cima dela. Sustento baseado em produção própria, de subsistência, e porcos vendidos. 

Leonildo era jovem quando seu pai se aleijou e todos seus irmãos foram pra cidade trabalhar de empregado. Só ele ficava. “Daí papai faleceu e minha mãe vendeu a propriedade que ela tinha. Foi quando me casei e fui morar com Julieta”, diz. Seguia na roça até que expulsos de lá, iam para a cidade.

Foto: Julia Beatriz de Freitas

Era início dos anos 1980, poucos anos depois da festa de casamento relembrada no almoço, quando o casal presenciou a “chegada” do agro. Toda vez que Leonildo comenta sobre o ‘agro’ acrescenta, com ironia e referência à campanha multimilionária veiculada pela Globo: o agro ‘pop’. O agro é pop? pergunta de forma retórica com um riso misto de deboche e indignação a cada menção.

Chamado de ‘sistema de integração’ pelas famílias agricultoras da área, a chegada da monocultura de grãos (principalmente soja, milho e arroz) pressionava e excluía famílias de pequenas propriedades, como era o caso do casal. “Iamos vender e comercializar com quem? Ou você se integrava e vendia por pouco ou eles não compram de você. E nossa propriedade era pequena para ser integrada. Ficamos de fora do projeto da monocultura. Não tínhamos para quem vender nossos porcos. As dívidas foram aumentando. Quando vi, nossa terra tava hipotecada. Fomos expulsos, do mesmo jeito foram milhões de brasileiros”, comenta.

“Os brasileiros são expulsos das terras que vivem”, traz Leonilda a ideia pro presente, carregada de indignação. Repete com frequência a palavra: expulsos. 

O país, à época,  passava pelo processo de intensificação do êxodo rural fortemente estimulado pela ditadura militar. O governo concedia benefícios e crédito rural para a criação de grandes latifúndios, processo que deixava milhões de famílias à margem da sociedade – obrigadas a irem para a cidade. 

Era terra de expulsão e banhada a sangue também. Um estudo inédito do pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana, mostra que mais de 1,6 mil foram mortos ou desapareceram do golpe de 1964 até a promulgação da Constituição, em 1988.

Historicamente noticiado pela imprensa brasileira de forma pejorativa, foi ‘o movimento’ que salvou Leonildo e Julieta da cidade, diz ele. 

“Depois, na cidade, a gente começou a organizar o movimento”, diz.

Quando fala ‘movimento’, assim resumido, Leonildo se refere ao movimento que sua família ajudou a fundar: o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Lembra ainda do primeiro encontro que reuniu milhares de famílias em Paraná, em janeiro de 1984.

Hoje o nome é comumente associado, principalmente em meios bolsonaristas,  à invasão de terras, violência e criminalidade – imagem que culminou na abertura da ‘CPI do MST’ em 2023, uma das iniciativas de um grupo de políticos ligados a ideias ultradireitistas. Não teve um relatório final aprovado. Nada virou.

Em um vídeo amplamente divulgado nas redes sociais e como tentativa de chamar atenção para a CPI esvaziada, o ex-ministro de Meio Ambiente e relator da comissão, Ricardo Salles, tenta invadir uma casa de uma família ligada à Frente Nacional de Luta (FNL), outra organização que visa lutar pela moradia digna de famílias brasileiras. De acordo com Salles e os congressistas presentes, a entrada não autorizada teve como objetivo “coletar informações para a investigação”.

O Movimento Sem Terra hoje está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país e conta com cerca de 450 mil famílias inseridas no movimento. Mas para ser sem-terra, dizia Leonildo, às vezes basta não ter terra. A família testemunhou isso quando assentada junto com mais de 350 famílias distante dali. Finalmente com terra, o que era pra ser alívio virou nova luta.

Da luta ao assentamento

“Do dia pra noite, nos traíram”, relembra, referindo-se a um grupo de famílias assentadas que mora em outro setor e tomou decisões sem participação de todos. 

“Chegamos aqui sem governo, sem lei e sem nada e tínhamos que nos virar. Aí os oportunistas chegaram. Em uma noite, os aproveitadores se organizaram por conta e, já que tava dividido, ocuparam os lotes medidos e 32 famílias ficaram sem lote. Essas 32 famílias voltaram de novo a se organizar. E aí fizeram um núcleo, uma base e nós se mudemo aqui pra cima. Ficaram mais perto da água e da luz e gente longe”, conta.

O assentamento foi dividido em setores A, B, C e D, todos localizados em diferentes áreas que influenciavam diretamente na produção agrícola das famílias. A família Zang e as mencionadas por Leonildo moram no setor D, distante do banhado onde era possível produzir o suficiente para a garantia do sustento.

Com cheques pré-datados, as famílias unidas no setor pagavam o ‘rancho’ do supermercado depois de juntos identificarem as necessidades de cada uma das famílias. 

“Fizemos uma vaquinha e compremo uma caminhoneta. E cada dia cada família tirava duas pessoas pra ir encher os litrão lá embaixo na fonte e distribuía para cada uma das casas. Essas famílias começaram a ter um poder, uma força política, que loucura, né?”, conta e ri, mais uma vez. Decidiam persistir em conjunto.

Centenas de anos antes disso, a luta pelo bem-estar coletivo pautava as ações de Sepé Tiaraju. No dia 7 de fevereiro celebra-se o dia do líder que lutou na região que abrigava, muitos anos depois, a família Zang e tantas outras em acampamentos de lona.

Foi na década de 1990 que o governo cedeu parcialmente à pressão e criou o assentamento. “Era muito protesto e bloqueio de rodovia”, conta Leonildo, com orgulho da participação. Abrigava famílias originárias de 115 municípios gaúchos, de maioria localizados na região do Alto Uruguai. Em referência ao herói guarani, o nome: Filhos de Sepé. 

Mas antes dele, em 1985, vinha a lona.

Era a segunda decisão tomada com firmeza pela família: deixaram a casa montada na cidade, com acesso à água, energia e recursos e rumaram ao acampamento onde mais de 1,5 mil famílias ocuparam uma área em Santo Antônio das Missões, município 100 quilômetros distante de Iraí. Pisaram na terra onde antes pisou Sepé Tiaraju, conhecida por ser terra banhada de sangue de populações indígenas, massacrados em missões jesuíticas hoje referenciadas em memoriais turísticos no local.

“O Brasil é terra indígena”, diz Zang, que afirma hoje se inspirar nas palavras do intelectual indígena Ailton Krenak. A família Zang acampou nas Missões por dois anos antes de serem assentados. Os filhos, jovens, se criavam nas formações e eventos do movimento, que tomava força. Estavam à serviço, como define.

O filho mais velho, Huli, não estava mais acampado, diz ele. O jovem estava à serviço do movimento. “Eu e Julieta estávamos a serviço do movimento também”, diz. “Era marcha de quarenta dias na estrada, dormindo em chão de ginásio e em conversas com os mais pobres, acolhidos por sindicatos e igrejas.”.

Formação de base. Campanha para eleger Olívio Dutra com panfleto e conversa. “Martin, o mais novo, tocava violão com doze anos. Silone, a do meio, estudava na cidade e dava aula para as crianças no acampamento. Era o lugar de esperança”, lembra Leonildo.

Foto: Julia Beatriz de Freitas

Moravam sob uma lona amarela, capaz de absorver menos calor do que a preta – a mais comum. Era calor nos dias capazes de derreter velinhas, as responsáveis pela iluminação à noite, período que o sereno chegava. “Mas a gente vivia feliz”, comenta. O arrependimento nunca foi uma opção, comenta – sabia que estava no lugar certo.

Mas o acampamento ‘era’ vida boa perto do que vinha em seguida, diz Leonildo. “Porque lá tu tá organizado e a sociedade até apoia você no acampamento. Agora quando tu chega na terra, tu perde organização, tu é atirado. E a sociedade em cima, fazendo abaixo assinado, querendo nos expulsar daqui. Aqui nada crescia. Quando plantavam, as formigas comiam. Era só grama e formiga esse lugar”, comenta. Não tinha sombra, então a primeira coisa que fizeram era óbvia, para eles: plantar árvore. A filha Silone, nessa época, já estava grávida.

Famílias acostumadas a produzir feijão, soja e milho, além de criar gado e porco, se depararam com uma região produtiva alagada, de várzea. Dentro do assentamento, conflito. Fora também. Zang se levanta ao contar e encena pra representar a chave de braço que deu em um guarda do Banco do Brasil, no município de Viamão, em um dos protestos organizados pelos assentados à época. Tentavam invadir o banco onde eram, sem motivo aparente, impedidos de entrar. Iam atrás de crédito, dificultado à época e também hoje para agricultores familiares e assentados.

Se atualmente moradores de Viamão conseguem passar de carro até a cidade sem pagar pedágio pela rodovia que entra no município, devem a conquista a alguns desses protestos dos assentados, que não aceitaram a taxa. “Fomos ocupar o pedágio, fizemos barulho”, lembra.  A má fama dos assentados crescia. Conta ele que criaram um programa diário de rádio dedicado a difamar os novos moradores do município. s portas para serviços na cidade ou apoio de qualquer tipo eram fechadas. 

A situação se somava às regras de conservação da área protegida por lei, diferente de outros assentamentos. “Não pode plantar no banhado. Não pode caçar, nem queimar”, lembra o agricultor dos verbos imperativos ouvidos à chegada das famílias. Conviviam com uma contradição: a falta de árvores contra o calor e a proteção de área onde tinha produtividade. 

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), à época, apresentou um parecer sobre o modelo produtivo adequado para o assentamento para que o objetivo de proteção do ecossistema da APA fosse cumprido.  estudo que resultou no parecer foi realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, no mesmo ano, o instituto elaborou o documento denominado de “Compromissos para a Viabilização do Assentamento Rural da Fazenda Santa Fé, da Incobrasa, em Viamão”, onde foram estabelecidos os parâmetros para a implantação do assentamento.

Era de difícil assimilação a nova situação. Os assentados sabiam onde estavam e, como parte do compromisso de nova moradia, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o compromisso de seguir as regras de proteção ambiental. As dificuldades de produzir e, assim, se sustentar, entretanto, alimentaram conflitos internos e externos. 

Pressionados e em adaptação, as mais de 300 famílias assentadas em área de quase 10 mil hectares dentro do assentamento começaram um processo de divisão entre os que acreditavam em um modelo de produção coletivo e outro exploratório do local onde estavam. A maior parte não tinha o conhecimento técnico para a produção de base agroecológica, impulsionada pelo próprio MST, mas que exige um conhecimento técnico.

O agro viu a brecha. “O agro conhecia a realidade da terra e água daquele lugar, que é uma riqueza. Aí eles convenceram os agricultores a ceder a terra para eles plantarem”, conta. Os assentados começaram a trabalhar como empregados na cidade e ganharam esse valor de “arrendamento”. O preço era baixo, de acordo com Leonildo: se davam 200 sacos de arroz por ano, plantavam “lá embaixo”, refere-se à área própria para o plantio de arroz no local, e colhiam mais de 4 mil sacas na safra.

Mas as famílias que acreditavam no movimento coletivo e no assentamento, o destino da esperança cultivada nos acampamentos de lona, persistiam. “Tirava empréstimo, conseguia recurso pra puxar a água por bomba para cá, buscamos apoio”, disse. Na China, algumas espécies de peixe “limpam” a terra no plantio de arroz e se recolhem na hora da colheita, conta Leonildo.

Os assentados passaram a descobrir novidades sobre os grãos e a terra onde moravam. “Tira o arroz vermelho, tira o mato e vai comendo dentro da água”, comenta sobre o peixe na plantação. Foi essa empolgação que resultou na criação da Associação Arroz e Peixe – o primeiro projeto de arroz do assentamento. Exótico, entretanto, o peixe da espécie carpa foi descartado pelas famílias pelas regras da unidade de conservação.

Foto: Alexandre Garcia/MST

Solução e desafios se alternavam. Eventualmente, as próprias regras de proteção da unidade agiram a favor dos assentados. “Foi a lei ambiental que fez com que viessem aqui e tirassem esse agro que tava plantando com veneno”, diz. Foi uma intervenção do Ministério Público (MP) que, com base nas regras de conservação e uso da área protegida, diminuiu a pressão do agronegócio sobre os assentados.

As famílias “de cima”, como define, passaram então a se organizar como entidade jurídica e grupo organizado.  Primeiro, um grupo de pastores da Alemanha arrecadou dinheiro de amigos para eles – foi o primeiro pavilhão para reuniões.  Depois, uma fundação apoiou o projeto de arroz orgânico com 40 mil reais. Era o dinheiro que chamava atenção e fazia cativar as pessoas para a associação. A escassez ainda predominava e qualquer sinal de retorno financeiro chamava atenção. Com o valor conquistado, veio a compra de sementes. 

Logo, um projeto de 2,5 mil reais para construir o primeiro barraco, onde as reuniões aconteciam. Compra de tijolo para todo mundo. Compra de comida para todo mundo. “Sempre acreditando na força da organização”, comenta. Organização é a referência do movimento. Divididos em núcleos dentro dos acampamentos, as famílias sem-terra aprenderam a chegar em decisões coletivas e distribuir tarefas nos anos debaixo da lona.

A maior plantação de arroz orgânico da América Latina

Hoje a Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária (Coperav), selo que estampa muitos dos pacotes de arroz orgânico distribuídos Brasil afora e fundada por Leonildo, conta mais de 70 famílias. A Associação dos Moradores do Assentamento Filhos de Sepé (AAFISE), em 2015, anunciava:

“Todas as atividades agrícolas desenvolvidas no assentamento são de base agroecológica, o que qualifica as condições ambientais. Todo o cultivo de arroz e parte da produção de frutas e hortaliças são certificados como produção orgânica. Este cenário é fruto de um conjunto de ações de diversos atores envolvidos no desencadeamento da Reforma Agrária, desenvolvidas desde o início da cogitação da criação deste assentamento”, relatavam. 

A certificação do arroz orgânico no assentamento é realizada em todas as etapas de produção e ocorre por meio de dois mecanismos. Uma é certificação por auditoria realizada pela empresa certificadora privada IMO (Instituto de Mercado Ecológico), e a outra por meio de certificação participativa, realizada através do Sistema Participativo de Garantia (SPG), mecanismo previsto pela lei onde os próprios assentados são responsáveis pela verificação das normas uns dos outros.

A produção de arroz orgânico virou referência e se estendeu a outros assentamentos.  Hoje ocorre em 22 assentamentos localizados em nove municípios das regiões Metropolitana, Sul, Centro Sul e Fronteira Oeste do estado do Rio Grande do Sul. 

O cultivo é feito por 352 famílias, que estão organizadas em sete cooperativas da Reforma Agrária. Algumas delas: a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes (Coopat), Terra Livre, Cooperativa dos Produtores Orgânicos de Reforma Agrária de Viamão (Cooperav), Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentamentos de Charqueadas (Copac) e Cooperativa Sete de Julho.

Cooperação. “A luta continua até hoje, mas ela baixou pelo governo violento que mandava matar mesmo [Bolsonaro]. Fomos jogar mais força nos assentamentos, se fortalecer lá e não nos acampamentos. Foi a estratégia. A base ficou fraca. Agora tá retomando de novo”, comenta Zang.

Distante milhares de quilômetros do assentamento Filhos de Sepé, em outro bioma, região e clima, no acampamento São Francisco, localizado no município de Vitória de Santo Antão (PE), ninguém dorme a noite inteira.  Esse é o início de uma reportagem publicada pela Repórter Brasil em janeiro de 2024, um ano depois da posse do presidente Lula, cuja relação de aproximação com o movimento é de idas e vindas.

O “medo” da reforma agrária representado pelo presidente fez com que a violência se agravasse na área rural. As famílias assentadas no acampamento em questão aguardam há 29 anos pela desapropriação da área, já vistoriada e considerada improdutiva pelo Incra.

Leonildo entende a sensação. “Eu fui um cabra marcado para morrer muitas vezes já. E tô aí né, escapando”, diz, rindo, sobre seu passado. Quando morrer, quer que seja ali: onde sempre soube que ficaria. “Aqui é meu lugar”,  reafirma.

“Eu plantei o primeiro pé de arroz orgânico de Viamão”, conta ele com orgulho. Hoje, são 1600 hectares. “Os maiores do planeta. Uma história, né?”. Ele credita isso a buscar entendimento das coisas, que nunca deve parar. Foi o conhecimento técnico sobre a produção de arroz orgânico que os levou até ali, com apoio de instituições de ensino como o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), que promovia cursos e capacitação sobre o assunto.

Entender as coisas exige estudo e curiosidade. “Como uma uva fica doce, de onde ela busca o açúcar? Como o limão é azedo? E a água dentro da uva, onde ela busca? Como ela reage ao mundo, como ela vive?”, Leonildo põe todas essas questões à mesa. Isso é a vida, diz Leonildo: entender as coisas e os seres.

“Por isso o agro é terrivelmente criminoso: ele mata os seres que a gente não enxerga. E a maior parte do planeta a gente não enxerga. Sem os microorganismos, as bactérias, os fungos, não temos planeta. O que seria de nós se nós não apodrecemos? Se não tivesse os fungo pra comer nosso corpo? A não ser que queime nós. Mas aí vira fumaça e vira o que?”, pergunta – e logo se responde: vira algo.

Em junho de 2020, Martin Zang, o filho mais novo do casal, cantava a canção do cearense Belchior “Como nossos pais”  em vídeo na página de Facebook do MST em uma ação cultural promovida pelo movimento durante a pandemia, que afetava seriamente as famílias assentadas e acampadas. Huli Zang hoje é o presidente da Coperav e técnico de processos gerenciais do IFRS, campus de Viamão. Cursa uma pós-graduação em agroecologia.

No dia do aniversário de sua mãe, Huli chega cedo pra comemoração. Também é sorridente como os pais – na camisa, o selo da cooperativa. Julieta depois da cozinha e do cochilo, comemora seu aniversário. Se desculpa pelas palavras não ditas – precisava descansar.  No galpão, um cartaz antigo dispõe uma edição antiga da Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, realizada anualmente pelos assentados.

A tristeza vem quando Leonildo assiste televisão. Das novelas às notícias da economia, tudo parece para ele perpassar pela questão central da sua vida: a terra. Vê com outros olhos as notícias supostamente positivas sobre o Produto Internacional Bruto (PIB): se o PIB sobe, a qualidade de vida das pessoas cai, diz ele. A crise climática é uma realidade brutal e, de acordo com o assentado, anunciada há tempos pelos povos que estão na terra – seja indígenas ou famílias sem-terra. 

O avanço de igrejas neopentecostais no assentamento também preocupa Leonildo. Hoje são 29 igrejas de denominações evangélicas diferentes no assentamento. “E os jovens não participam de outras correntes, não participam de outras coisas e não se misturam”, comenta. Tudo na vida, para o assentado, se mistura.

Foto: Julia Beatriz de Freitas

“No acampamento era uma lona amarela, falta de energia, de água e de luz. Chão batido. E tava sempre alegre. Aqui tenho conforto, ar-condicionado. Mas por vezes me falta alegria”, diz.  Mas tem certeza que está onde deveria estar. 

Sua esperança cumprida e seu sonho realizado: agora repassado à geração.A casa de Silone, sua filha, fica ao lado da sua. É lá onde ela cria Amanda, sua neta. “Moro em cima dessa terra até virar cinza, que vão ser jogadas aqui”, diz. 

Na parede de frente à mesa onde se alimentam, ao lado das fotos emolduradas, um quadro de madeira com a bandeira do MST ao meio diz, em espanhol: un deseo no cambia nada, una decisión cambia todo. 

Agora, Leonildo quer organizar as atividades culturais e esportivas para os mais velhos, como ele – criar um centro cultural no assentamento. O idoso pratica yoga e capoeira sempre, conta com orgulho das práticas. Também não para de estudar os seres ao redor para entender melhor o que tá ali, na terra. O movimento segue. 

As festas, mesmo as que ele não dance ou participe em caso de viagem e cansaço, têm que continuar. É com riso e dança que se faz luta, diz Leonildo. E a luta, mostra Zang, se faz junto com os outros seres – com tudo o que tá ao redor. Não se ri sozinho. 

Júlia Beatriz

Júlia Beatriz é jornalista socioambiental. Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), trabalha com comunicação socioambiental em organizações não governamentais com foco na Amazônia desde 2019. É autora dos livro-reportagens “Doce Sobrevida: a apicultura como alternativa no assentamento Taquaral” e ‘Norte de Mato Grosso, sul da Amazônia: sonhos e resistências da agricultura familiar no arco do desmatamento’. Busca, em seu trabalho, fortalecer palavras e histórias pela desconstrução da falsa dicotomia entre humanidade e natureza, tarefa urgente em tempos de crise climática.

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