por Ronald Augusto*
Quando a pessoa negra faz literatura negra? Sempre? Apenas quando se reconhece negra? Quando lança mão de elementos da cultura afro? Quando faz ativismo (ou escreve) contra o racismo? E quando esses quesitos são atendidos de forma intermitente? Quem é o autor ativista daqueles que não têm voz? Coisas que me parecem controversas: o poeta do povo negro, o Dante negro. Um dia resgatarei o poeta do povo branco, o Solano Trindade branco.
Escritores e escritoras tais como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Machado de Assis, Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus são considerados precursores da literatura negra no Brasil. Não obstante tópicos como escravidão e preconceito de raça estejam presentes em suas obras, à época esses autores não se reivindicavam e, de resto, não havia quem os reivindicasse como representantes desta literatura. Não havia o conceito de literatura negra.
A partir do final da década de 1970 é que surge um movimento de escritores dispostos a assumir sua negritude bem como a defesa de uma literatura negra.
A produção literária de negros e negras se explica apenas como “denúncia do racismo” ou como resgate de uma vaga ancestralidade? Parece-me que não. No entanto, é assim que ela vem sendo autorizada pelo sistema e pelo mercado literários. Contudo, talvez seja imperioso observarmos e reconhecermos a singularidade de linguagem de cada autor negro. Eles são artistas e não apenas intelectuais que convocamos para nos ensinar a combater o racismo. Qual o receio de reconhecer nos textos destes escritores sejam eles do passado, sejam eles do presente, valores estéticos relativamente independentes dos compromissos políticos?
Insistir na imagem segundo a qual a força desta literatura estaria em seu engajamento contra o racismo, talvez só nos leve a pensar que a literatura sancionada acaba criando uma espécie de reserva de mercado para os escritores brancos, porque em relação a eles é aceitável conduzir o debate para o campo estético. Diante desse quadro, uma obra literária produzida por escritor negro que não se apresente explicitamente como um instrumento de luta antirracista, será considerada um desvio antinaturalista.
Estes questionamentos têm por objetivo estabelecer critérios de leitura mais amplos relativamente aos textos literários levados a efeito por pessoas negras. Neste sentido, quanto mais atentarmos para aquelas criações que não se conformam ao modelo conceitual da literatura negra ou afro-brasileira, esse ponto de vista, em alguma medida, servirá para – e em benefício do diálogo – pôr em xeque o próprio conceito de literatura negra, ampliando assim o seu escopo.
A partir de que modelos ou de que marcadores eu situo esse ou aquele escritor como um legítimo representante da vertente? Nas décadas de 80/90 os gestos de vanguarda do poeta Arnaldo Xavier (1948-2004) eram vistos com desconfiança por parte dos ativistas da literatura negra. Era como se experimentalismos ou rupturas formais não estivessem implicados ou não fossem genuínos em uma escritura negra. À época os conteúdos sociológicos e políticos eram mais encarecidos na construção do conceito e na consecução dos textos criativos. Hoje o viés combativo ainda tem força, mas observo que mais escritores e escritoras, através de seus poemas e narrativas menos convencionais, vêm alargando os limites do conceito. A ideia de uma literatura negra se constitui em uma espécie de intervenção de cunho antológico lato sensu, isso porque ela acaba fazendo as vezes de uma plataforma seletiva que retém em suas malhas valorativas apenas os textos daqueles escritores confirmadores do modelo ou conformados ao modelo.
Um poeta importante para dar prestígio ao conceito, Oliveira Silveira, se dizia: poeta, negro. Então há um modo de usar na mesma frase a expressão “Oliveira é um poeta” e a palavra “negro”, basta acrescentar uma vírgula entre os dois termos. Oliveira Silveira poeta, negro.
Por que insisto na ideia de que o sujeito negro que escreve não perde nada se não for reconhecido como um escritor negro? Primeiro é importante dizer que apelar à sua figura como um autor negro não o deprime nem o torna mais relevante. O que vem depois da vírgula neste caso é apenas secundário. Ainda que o que a poesia por acaso venha nos comunicar não tenha a ver com enunciação, a questão se resume ao seguinte: o que se quer ler na literatura de um escritor, negro? O que seus poemas e ficções nos sugerem? Estamos dispostos a ouvir, de fato, a poética desses autores e autoras? Qual a sua poética? Ouvimos a sua música? Estamos dispostos a dar ouvidos ao seu estilo?
Essas indagações são desdobramentos de questões propostas pela escritora Djaimila Pereira de Almeida no livro O que é ser uma escritora negra hoje de acordo comigo – ensaios. No pequeno livro editado no Brasil, Djaimilia discute a tensão entre os termos “escritora negra” e “uma mulher negra que escreve”. A partir das consequências advindas da assunção do conceito de escritor negro o que a autora nos oferece de mais valioso são perguntas para as quais ela não tem repostas. Na verdade, Djaimilia interpela o sistema literário e a recepção contemporânea, ou um possível modo contemporâneo no que diz respeito às formas de pensar por meio do discurso literário. Que tipo de música queremos ouvir ou estamos mais predispostos a ouvir no jogo de consagrações e apagamentos da literatura praticada hoje?
*Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Mestre e doutorando em Letras na mesma instituição.