Por Lilian Rocha, escritora
Sou uma escritora com 58 anos de idade, que publicou o seu primeiro livro em 2013, com 47 anos, apesar de ter iniciado a minha história literária desde a mais tenra idade. Quando criança, sonhava em ser escritora. Aos 10 anos, li em um dia o livro O Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, que meu pai havia comprado para a minha irmã mais velha, no Círculo do Livro. Naquele dia, percebi que sabia fazer aquilo.
Comecei a escrever contos de suspense, no meu caderno da escola. Datilografava o material em uma máquina de escrever Olivetti linda, verde prateada, com teclas com fundo preto e letras prateadas. Ela era do meu pai, que era oficial de justiça e a utilizava em seus mandados judiciais. Eu chegava da escola, almoçava e depois a cozinha virava o meu escritório, onde datilografava os meus contos. O tempo passou e no segundo-grau (ensino médio) me apaixonei pela poesia e segui por este gênero literário até a vida adulta.
Transito por outros caminhos profissionais, tenho formação em Análises Clínicas, trabalhei por mais de trinta e dois anos nessa profissão, mas jamais deixei de escrever poemas e narrativas curtas. Nos últimos 13 anos, tive a necessidade de focar na minha produção literária, retomar o sonho de criança de ser escritora, um grande desafio. Comecei a frequentar os inúmeros saraus de Porto Alegre e utilizar cada vez mais os meus poemas em cursos de Educação Biocêntrica e Neuromusicologia que eu administrava pelo Brasil e América Latina.
As redes sociais também foram uma forma de ter um termômetro da minha produção e os retornos positivos começaram a chegar. Ainda não conhecia os caminhos da cadeia do livro em meados de 2011, 2012 e, ao mesmo tempo, achava que era algo distante da minha realidade, visto que a escrita de mulheres ou a de autoria negra não era tão prestigiada no meio editorial.
Outro fato que cabe destacar é o de que ao redor da palavra “escritora” havia todo um simbolismo que para a maioria das pessoas era algo inatingível. Havia também quesitos necessários para a escrita: tempo, local específico, silencioso, confortável, um computador ou notebook de boa qualidade à disposição, sem preocupações, apenas sentar e escrever e todo o mundo lá fora que respeitasse esse momento. Tais condições eram uma falácia para uma mulher negra, de classe média baixa, que tinha de lutar pela sobrevivência em uma sociedade que não valorizava a literatura e que lia cada vez menos. Os desafios estavam postos, e eu me perguntava – como superá-los?
A primeira dificuldade foi compreender o funcionamento da cadeia do livro, uma vez que a mesma não se fundamenta unicamente na publicação da obra, envolve múltiplas etapas, sendo necessário conhecer o passo a passo. Na vida corrida que levamos precisamos encontrar tempo, lugar, temas, amigos leitores, amigos críticos, só críticos, revisores, capistas, ilustradores, editores, profissionais de comunicação, divulgadores, mediadores, professores, distribuidores, livreiros, contadores de história, eventos literários, instituições, escolas, bibliotecas, influencers literários… Há uma infinidade de coisas a fazer.
Nos dias de hoje, não basta encontrar um tema, sentar-se, criar personagens e ambientes, dedicar um tempo precioso para a escrita, revisar, enviar para amigos apreciarem e criticarem, revisar novamente, concluir, encaminhar para uma editora, ou publicar de forma independente; buscar outros caminhos possíveis (editais, cooperativado, e-books…).
As escritoras iniciantes não terão chance em médias ou grandes editoras que possuem curadoria e que realizam a publicação da obra pagando os direitos autorais, geralmente 10 %; algumas “ousam oferecer menos” do pouco já pago. As editoras que têm maior penetração no mercado, com uma maior distribuição em livrarias, divulgação nas várias mídias, assessoria de imprensa, com participação em eventos literários, ganhadoras de prêmios importantes, ampla distribuição de livros em escolas e bibliotecas, buscam autoras conhecidas por um público leitor.
Há muitas escritoras independentes que bancam as suas publicações em pequenas editoras ou gráficas, porém elas não divulgam nem distribuem, ficando ao cargo da escritora tornar conhecida a sua obra, o que é uma tarefa difícil, pois não é convidada para grandes feiras, eventos literários, e não tem nenhum tipo de assessoria. Muitas estão se fortalecendo em coletivos, em feiras independentes e sites de venda com a expectativa de mostrar a sua produção literária. Tenho um amigo que brinca que nos dias de hoje há mais escritores que leitores. Isso é bom ou ruim? – me pergunto. É bom, pois a escrita revela a diversidade de uma sociedade, será ruim se for de má qualidade e não acrescentar nada à existência.
O meio literário é competitivo, como qualquer outro meio profissional. Lamentavelmente algumas pessoas não consideram a arte da escrita uma profissão. Soma-se a isso o fato de que há colegas que aceitam realizar atividades literárias sem a devida remuneração, tratando como hobby o que para muitos (as) é profissão. Infelizmente, a profissão de escritor (a) não está devidamente regulamentada, é uma urgência a ser enfrentada para a valorização desse ofício.
Publicar é um grande desafio, é importante perceber o significado da materialização de um legado literário; é necessário assumir a posição do saber, principalmente, de mulheres, sejam negras, brancas, indígenas. É necessário sair do anonimato e alçar o nosso lugar de direito na literatura brasileira. Cada vez mais, as escritoras se lançam no mercado editorial, mas são poucas que conseguem projeção e ganham prêmios literários importantes.
No Brasil, a partir da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017, os focos de luz se voltaram para a escrita realizada por mulheres e de autoria negra, o que espero que não seja uma visibilidade fugaz, mas que tenha permanência e continuidade de um processo histórico de reconhecimento desses saberes, o que considero o maior desafio. Devemos lembrar as que vieram antes de nós e que tiveram que usar pseudônimos ou que mesmo possuindo alta qualidade de produção literária foram apagadas da historiografia.
As preocupações aumentam quando vemos a nossa escrita literária sendo ameaçada pela IA (Inteligência Artificial), que não tem nada de inteligência, visto que a verdadeira se baseia no que nos afeta, constituindo-se em plágio. Já não basta ganharmos muito pouco em direitos autorais, ainda seremos utilizados “para o bem da humanidade” sem nenhum tipo de retorno financeiro, a IA debocha da Arte e de todos (as) que a produzem.
Nos últimos prêmios literários nacionais importantes, tivemos mulheres em destaque, escritoras que fazem parte de editoras médias ou de grande porte e que possuem um trabalho de divulgação e penetração significativos. Ainda temos muito a caminhar, os desafios são constantes e o trabalho é árduo, pois a escrita realizada por mulheres tem um percentual inferior a 30% do mercado editorial. É ainda menor quando nos referimos à produção de autoria negra ou indígena. A luta de Maria Firmina dos Reis ou de Carolina Maria de Jesus é praticamente a mesma de Conceição Evaristo ou Eva Potiguara, o tempo passou, mas o reconhecimento e prestígio não vieram a galope, são desafios históricos a serem conquistados a cada dia.

Lilian Rocha
Lilian Rocha é natural de Porto Alegre (RS). Analista Clínica (UFRGS), Musicista (Liceu Palestrina), nasceu poeta e tem seis livros autorais: “A Vida Pulsa – Poesias e Reflexões” (Alternativa, 2013), “Negra Soul” (Alternativa, 2016), “Menina de Tranças” (Taverna, 2018), “Agò” (Instituto Estadual do Livro, 2022), “Rochedos também choram” (Bestiário, 2023) e “Oju Dudu” (Taverna, 2023). Coautora do livro “Leli da Silva- Memórias: A Importância da História Oral” (Alternativa, 2018). Membro da Coordenação do Sarau Sopapo Poético – Ponto Negro da Poesia, Vice- Presidente da Academia de Letras do Brasil- Seccional RS, Vice- Presidente Social da Associação Gaúcha de Escritores (2023/2024), Conselheira Fiscal da Sociedade Partenon Literário e membro de inúmeras agremiações literárias nacionais e internacionais. Patrona da Feira do Livro de Canoas/RS em 2021.