A Unesco lançou nesta segunda (29) a publicação “O ODS Ausente: Relatório Global da Unesco sobre Políticas Culturais”, um estudo que levanta dados sobre a contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. O momento aconteceu durante a programação do Mondiacult 2025, Conferência Mundial sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável. O evento, promovido pela Unesco e pelo Governo da Espanha, tem como foco o papel da cultura no desenvolvimento econômico, e conta com a participação de líderes, gestores, ativistas culturais e organizações da sociedade civil internacional.
A publicação histórica é inédita ao abranger todas as regiões e domínios culturais, oferecendo a análise global mais abrangente das políticas culturais já realizada e fornecendo uma base de evidências para orientar novas agendas relacionadas ao tema. O Relatório Global baseia-se em 1.200 relatórios nacionais e locais e 200 estudos de caso apresentados entre 2019 e 2024. Ele destaca as principais tendências regionais e globais, enfatiza a importância da cultura para o desenvolvimento sustentável, a paz e a segurança, e defende um objetivo independente para a cultura na agenda global pós-2030. O livro está disponível online em Inglês, Espanhol e Francês. O Nonada traduziu para o português trechos de destaque da publicação.
Entre os principais dados apontados, está o impacto econômico que as indústrias culturais e criativas têm no mundo. Segundo o relatório, os trabalhos do setor criativo correspondem a 3,39% do PIB global e 3,55% do emprego total. Já o turismo cultural em 250 cidades, de todos os continentes, gerou 741,3 bilhões de dólares em 2023.
A desigualdade histórica de investimento à cultura, porém, segue uma marca presente. Apesar desses avanços persistem as grandes disparidades em relação ao sul global. O gasto público com cultura é, em média, de US$ 418,56 per capita na Europa e América do Norte — quase treze vezes mais do que no restante do mundo combinado. Na América Latina, a média de investimento anual é de US$ 10 per capita.
Segundo a Unesco, “os resultados ressaltam a necessidade urgente de políticas inclusivas e baseadas em evidências que enfrentam as desigualdades enquanto aproveitam a inovação tecnológica. Ao reduzir lacunas em investimento, equidade de gênero e acesso digital, a cultura pode se tornar uma poderosa força para a diversidade, a criatividade e a resiliência nos próximos anos.”
Entre os dados reunidos, o relatório mostrou o crescente papel da cultura em seus planos nacionais de desenvolvimento. Atualmente, 93% dos Estados-Membros incluem a cultura como elemento central em seus planos nacionais de desenvolvimento sustentável — um aumento significativo em relação aos 88% em 2021.
A falta de investimento é particularmente acentuada na Ásia Central e Meridional e na África Subsaariana, onde esse valor chega a apenas US$ 3,09 e US$ 1,10 per capita, respectivamente. A disparidade é gritante em relação aos países europeus, que investe anualmente em média US$ 418 per capita em cultura. Para a diretora geral da Unesco, Audrey Azoulay, os dados indicam que “sem uma abordagem multilateral e baseada em evidências, é difícil desenvolver modelos de financiamento claros e convincentes para a cultura.”
O setor cultural global é repleto de desigualdades. Enquanto as mulheres representam 38% da força de trabalho cultural global, elas recebem apenas 20% do financiamento público para a cultura e ocupam menos de 30% dos cargos de liderança em organizações culturais. Esse desequilíbrio é agravado pela persistente disparidade salarial de gênero nos setores culturais e criativos. Outra informação relevante é a de investimento específico voltado ao acesso à cultura para grupos minoritários.
A Unesco aponta que, ainda que haja uma lacuna nestas informações, eles conseguiram mensurar que 19% das medidas públicas dos países visam o engajamento de jovens, 15% minorias culturais e 14% artistas com deficiência, enquanto povos indígenas (8%) e refugiados/migrantes (10%) recebem apoio notavelmente menor.
O relatório também destaca a necessidade de adaptação às transformações tecnológicas em curso. Por exemplo, o mercado de conteúdo audiovisual gerado por IA, avaliado em € 6 bilhões em 2023, deve disparar para € 48 bilhões até 2028. Os especialistas alertam para a necessidade de pesquisa e avaliação dos riscos associados ao desenvolvimento tecnológico, desde a perda de receita para os artistas e produtores culturais, até as preocupações com propriedade intelectual e o potencial de homogeneização cultural.
Fazer cultura no Sul Global traz desafios próprios
Em regiões com infraestrutura cultural mais consolidada, segundo critérios da Unesco, como partes da Europa Ocidental e América do Norte, as discussões políticas se concentraram na adaptação dos sistemas para enfrentar questões emergentes — que vão da governança ética da inteligência artificial à resiliência climática e à desinformação. Preocupações com remuneração justa para profissionais da cultura, disparidade salarial de gênero e estruturas de governança inclusivas também se destacaram.
Por outro lado, regiões que enfrentam instabilidade geopolítica ou infraestrutura desigual — como Europa Oriental, África e partes da Ásia-Pacífico — enfatizaram a necessidade urgente de proteger direitos e patrimônios culturais, especialmente em tempos de crise ou deslocamento. Embora a digitalização esteja ampliando o acesso à cultura, persistem disparidades significativas em infraestrutura, financiamento e alfabetização digital, especialmente para comunidades rurais, minorias e povos indígenas. Nessas regiões, há forte foco em aprimorar a preparação para emergências, apoiar artistas deslocados e promover reconciliação e coesão cultural.
Temas como justiça cultural, equidade social, igualdade de gênero e empoderamento de povos indígenas e comunidades afrodescendentes foram particularmente destacados na América Latina e no Caribe. O setor cultural é visto como um recurso fundamental para reduzir desigualdades e fortalecer ecossistemas comunitários, embora desafios como informalidade, subfinanciamento e exclusão digital persistam.
Da mesma forma, os Estados Árabes e partes da região da Ásia-Pacífico enfatizaram a importância de integrar a cultura em estratégias mais amplas de desenvolvimento, incluindo educação, adaptação climática e políticas migratórias. Reformas legislativas, investimentos em educação cultural e sistemas mais robustos de dados culturais foram identificados como essenciais para construir ecossistemas mais inclusivos e resilientes.

Apesar do reconhecimento da economia criativa como motor de transformação econômica, há limitações observadas, como baixo investimento público, informalidade e infraestrutura frágil. Segundo o relatório, essas barreiras configuram um risco para o desenvolvimento cultural justo e equitativo. O documento também alerta para o risco de que se coloque mais ênfase no crescimento econômico do que no valor social e intrínseco da cultura, comprometendo seu pleno reconhecimento como bem público global.
“Essas perspectivas destacam uma necessidade geral de políticas culturais que sejam ao mesmo tempo sensíveis ao contexto e alinhadas globalmente. Em todas as regiões, há forte convergência em torno da demanda por governança inclusiva, maior mobilidade para artistas, sistemas de dados confiáveis e desagregados (incluindo dados desagregados por gênero) e uma integração intersetorial mais sólida da cultura em áreas como educação, desenvolvimento econômico, ação climática e transformação digital”, aponta o estudo.
Outra diferença observada foi a proteção aos biomas e patrimônios naturais. Dados apresentados pelos Estados-Membros mostraram que 95% dos países da África Subsaariana implementaram políticas de proteção para esses direitos, em comparação com 74% na Europa e na América do Norte.
Artistas como trabalhadores com direitos
Os capítulos do relatório abordam temáticas importantes para o setor nas últimas décadas, entre elas os impactos da pandemia de Covid-19 no panorama cultural, o impacto da crise climática no patrimônio cultural, a salvaguarda e repatriação de objetos tradicionais e originários e a diversidade linguística como direito. O reconhecimento dos artistas como trabalhadores é um ponto de destaque.
Segundo a Unesco, os direitos dos artistas estão amparados em cinco dimensões: reconhecimento jurídico e regulatório do status dos artistas, direitos socioeconômicos, oportunidades de desenvolvimento profissional e mobilidade, e proteção da liberdade artística. Com relação a salário mínimo garantido para os trabalhadores do setor, por exemplo, 60% dos países têm leis aplicáveis, ainda que na prática, essa aplicação seja escassa, já que as ONGs entrevistadas pelo estudo revelam outra realidade: apenas 22% confirmaram a existência de um salário mínimo para a cultura em seus respectivos países.

A informalidade do setor também foi mensurada a publicação. “Com base em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que entre 40% e 60% dos trabalhadores da indústria cultural e criativa no Sul Global sejam autônomos, em comparação com 30% e 50% na Europa. ausência de vínculos formais de trabalho expõe os artistas à vulnerabilidade econômica e agrava a precariedade de seu trabalho”, diz a Unesco. Ainda com relação à proteção trabalhista, 76% do norte global promovem programas de proteção social aos artistas, em comparação aos 25% de países do sul global.
O direito à liberdade artística foi evidenciado pelo relatório como um direito que deve ser protegido. No seu relatório anual sobre o Estado da Liberdade Artística, publicado desde 2019, a ONG Freemuse monitora casos de artistas que são sancionados, presos ou até mesmo assassinados. Em 2021, por exemplo, mais de 1.200 violações da liberdade artística foram documentadas, incluindo o assassinato de 39 artistas. Em relação a medidas que garantam a liberdade artística, 87% dos países da Europa e da América do Norte aplicam medidas, enquanto 50% dos países da Ásia Central responderam realizar ações para este fim, Na América Latina, o índice é de 92%.
Segundo a Unesco, artistas mulheres frequentemente enfrentam riscos maiores do que os homens no que diz respeito à liberdade artística. Um relatório da Freemuse de 2018, Creativity Wronged: How Women’s Right to Artistic Freedom is Denied and Marginalized, documentou mais de 90 casos de violações contra artistas mulheres em todo o mundo. O relatório destacou padrões recorrentes de desigualdade, exclusão e assédio enfrentados por artistas mulheres, ressaltando a necessidade de proteções mais robustas.
O capítulo também destaca o papel de Organizações do Terceiro Setor na garantia e proteção da liberdade artística. Na Ásia, a organização apoiou a organização da sociedade civil indonésia Koalisi Seni (Coalizão das Artes), que criou um sistema de monitoramento da liberdade artística em 2023. Na Europa, Malta aprovou, em 2023, a Lei de Fortalecimento da Liberdade de Expressão Artística. Em 2024, publicou uma Carta sobre o Estatuto do Artista, que reforçou ainda mais a liberdade artística. Na África, a Iniciativa de Liberdade Artística Ikirenga, lançada em Ruanda em 2024 em colaboração com a Unesco, visa promover um ambiente favorável à liberdade artística.
Mudanças climáticas em foco
O relatório considerou que a atuação conjunta de ministérios é fundamental para a ação climática no setor cultural. Os Estados-Membros relataram esforços crescentes para integrar a cultura nas políticas climáticas, particularmente na proteção do patrimônio cultural contra ameaças relacionadas ao clima. Para isso, uma série de ações têm sido tomadas com intuito de preservação de alguns aspectos dos bens culturais em meio a emergências, como a documentação digital e arquivos de ativos culturais, em caso de perda do original.
A formulação de políticas interministeriais para a proteção do patrimônio está se tornando cada vez mais sofisticada. Os Estados-Membros relatam colaboração ativa entre autoridades de patrimônio cultural e outros departamentos governamentais. Os ministérios do meio ambiente desempenham um papel crucial na integração da conservação do patrimônio com o planejamento de resiliência climática; os departamentos de educação incorporam a conscientização sobre o patrimônio nos currículos nacionais; e os ministérios de turismo desenvolveram estruturas que equilibram a acessibilidade dos locais com as necessidades de preservação, embora desafios persistam na gestão dos impactos dos visitantes.
Exemplos bem-sucedidos incluem sistemas de gestão integrados, nos quais os departamentos de planejamento urbano incorporam considerações de patrimônio, histórico e arqueológico nas regulamentações de desenvolvimento, e os ministérios de transporte ajustam projetos de infraestrutura para proteger paisagens culturais.
Cultura como um Objetivo do Desenvolvimento Sustentável
O papel central da cultura para o desenvolvimento sustentável ficou em primeiro plano nos textos das autoridades e agentes que analisam a publicação. Segundo Azoulay, “a cultura não é um setor periférico a ser apoiado, mas uma força central a ser mobilizada — e o movimento está crescendo em todo o mundo.” Dividido em seis capítulos, o relatório de 389 páginas apresenta reflexões sobre diversidade cultural, preservação do patrimônio e liberdade artísticas, a partir de figuras de destaque, como a artista e intelectual brasileira Daiara Tukano. Embora a proposta seja de um panorama global, o relatório mostrou as especificidades de cada território em relação às políticas culturais.
A partir de consultas com Estados-Membros, sociedade civil, artistas, jovens e outras partes interessadas em um amplo diálogo sobre o papel na evolução das políticas culturais, foi possível perceber que há temas comuns que ressoam em todas as regiões — como a demanda por transformação digital inclusiva, igualdade de gênero, ação climática por meio da cultura e maior investimento na economia criativa. Só que cada região apresentou prioridades e desafios distintos, moldados por seus contextos sociais, políticos, econômicos e ambientais específicos, afirma o relatório.