Maryane Martins, especial para o Nonada Jornalismo*
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Caruaru (PE) — Em 1973, um caminhão de som atravessou a estrada entre Caruaru e Vitória de Santo Antão, municípios do Agreste de Pernambuco, para garantir o São João daquele ano. A festa era feita nas ruas pelos vizinhos: o caminhão era palco móvel para o forró tocar, haviam palhoças improvisadas e muitas bandeirinhas no varal. As cores e texturas do São João vinham de dentro das casas, costuradas por mãos familiares. Patrocínio, naquele tempo, era gesto de apoio, uma ajuda para que a festa acontecesse. Antes, o apoio viabilizava a festa. Agora, o apoio a determina.
Cinquenta anos depois, os contratos mudaram e mudaram também os critérios. O “Maior São João do Mundo” passou a funcionar como vitrine de marcas multinacionais, com estruturas cercadas, palcos gigantes e uma lógica voltada ao show business. O aconchego do palhoção deu lugar à barreira do camarote. A festa, que nasceu do povo e para o povo, hoje circula entre marcas e contratos. Artistas ouvidos pelo Nonada dizem que, na conta dessa transformação, apesar de sustentarem o espírito da festa, recebem cachês que mal cobrem o transporte até o palco. Hoje, quem carrega a tradição nas costas dança fora do palco principal.
Em 2025, Caruaru comprometeu mais de R$ 18 milhões com contratações artísticas para o São João, que começou em abril e encerrou neste sábado (28). Desse total, cerca de R$ 15,3 milhões — o equivalente a 83% do montante — estão concentrados em apenas 30 atrações, segundo dados do Painel de Transparência dos Festejos Juninos, do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). O painel lista, até o momento, 72 atrações contratadas pela Prefeitura de Caruaru. Os outros 17% do valor total (pouco mais de R$ 2,7 milhões) são divididos entre 42 artistas, muitos deles nomes importantes do forró tradicional, como Santana, Jorge de Altinho, Forró Cavalo de Pau, Batista Lima e Josildo Sá. Enquanto um único show de um artista de renome nacional custará R$ 1,1 milhão, bandas de pífano, com cinco ou mais integrantes, seguem recebendo apenas R$ 1.375 por apresentação.

“As grandes bandas, as milionárias, merecem seus cachês, mas temos mestres que contribuíram tanto para a cultura e morreram na miséria”, pondera o pifeiro e artista multicultural Wesklei Mardone (40). Ele é mentor da Banda de Pífano da Inclusão, apenas com cadeirantes, e a banda Arrasta Pife. Segundo Mardone, embora tenha havido alguma melhora nos últimos anos, os valores seguem desiguais. “Tantos São Joões só existem porque os mestres e a cultura popular sempre estiveram presentes.”

Essa disparidade se intensifica quando se observa a rotina de quem sustenta o espírito da festa. “Temos uma carga de trabalho grande o mês todo, mas o valor pago é irrisório”, afirma o sanfoneiro Vinícius Leite, de 25 anos, que se apresenta nos polos considerados alternativos ao principal, o Pátio de Eventos Luiz Lua Gonzaga. “Somos a base da cultura. Mas, às vezes, conseguimos um valor melhor de uma festa privada do que da própria Fundação de Cultura, que tem muito mais recursos.” Para ele, a lógica de mercado não pode justificar o abandono. “As pessoas de fora conhecem Caruaru como o Maior São João do Mundo. Mas por trás dessa vitrine, quem faz a festa acontecer é precarizado.”
Mas quem são essas pessoas que fazem a festa acontecer? Onde elas estão? Em Caruaru, o ciclo junino começa ainda em abril, com o São João na Roça. São nas Zonas Rurais da cidade, que os primeiros festejos tomam forma. Em maio, a festa chega à cidade e se espalha por 27 polos, dos bairros com as tradicionais Comidas Gigantes ao Alto do Moura, bairro considerado pela Unesco como o Maior Centro de Artes Figurativas das Américas, além dos palcos que ficam próximos à antiga Estação Ferroviária. É nessa multiplicidade que reside a força do São João.
Mas apesar da capilaridade, a distribuição de recursos permanece desigual. “O São João de Caruaru passou por três fases”, explica o historiador Daniel Silva. “A primeira era rural, ligada às tradições do campo. A segunda foi marcada pela urbanização e pelo domínio das ruas. Já a terceira, que vivemos hoje, é institucionalizada e mercantilizada, com forte presença do poder público e da lógica de mercado.” Nesse percurso, nem todos brilham da mesma forma.
Entre todos os polos que compõem atualmente o São João de Caruaru, a Estação Ferroviária ocupa um lugar simbólico. Foi nos entornos da linha do trem, no Pátio de Eventos, que funcionou por muitos anos um espaço cenográfico que recriava, uma cidade do interior, a Vila do Forró: tinha a igrejinha, a casa da rezadeira, o mercado público, a bodega e o coreto onde tocava o tradicional forró pé de serra. Era ponto de chegada do Trem do Forró, que vinha de Recife trazendo turistas ao som da sanfona, do triângulo e da zabumba. “Ela representava o espírito junino da cidade”, afirma o pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco Amílcar Bezerra. “Era onde tradição, memória e identidade se encontravam.”

Hoje, o cenário mudou: grandes marcas substituíram a cenografia afetiva por tendas padronizadas, ativações de patrocinadores e estruturas comerciais. Em 2024, foram 21 ativações distribuídas pelos polos centrais do festejo. Para Amílcar, a mudança preocupa. “Essa substituição pode comprometer os sentidos da festa a médio e longo prazo. A prefeitura terceiriza a administração e a curadoria da festa para esses grandes patrocinadores e são eles que determinam qual será o formato da festa. O de grandes palcos e espetáculos é o mais atrativo para a publicidade. É como se o São João, aos poucos, deixasse de pertencer à cidade para ser apenas uma vitrine”, critica.
“Se tirar o trio de forró, a banda de pífano, os bois, a quadrilha, o que resta do São João?” A pergunta é da caruaruense Vitória Maryellen, conhecida como Vitória do Pife (24), que este ano se apresentou apenas duas vezes com sua banda de pífano Caru Camaleão e uma vez em com seu show solo. Cada apresentação da banda rende pouco mais de 1.300 reais, valor dividido entre seis integrantes. “É mísero. Além de ser pouco, ainda temos que pensar roupa nova para a banda, consertar instrumentos… É uma realidade dura.”
Segundo ela, o número de apresentações também caiu, já que no ano passado, a Caru Camaleão chegou a tocar oito vezes. “É como se nos colocassem porque têm que colocar. Não é porque gostam da cultura popular”, lamenta o sanfoneiro Vinícius Leite, para quem a precarização vai além dos cachês. “O grupo que lidero, o Rivotrio, decidiu não se apresentar esse ano. Tocávamos em lugares sucateados, sem o mínimo de estrutura. A gente até recebeu convite, mesmo sem estar inscrito, sem ter passado no edital (o que eu acho um absurdo). Mas recusamos. Não vale a pena se submeter a esse tipo de situação.” Ele lembra que, enquanto artistas de renome recebem valores na faixa de centenas de milhares, trios de forró seguem ganhando pouco mais de mil reais por apresentação.
Não se trata de comparar, mas de reconhecer a desigualdade. Somos a linha de frente do São João, a galera que tá no chão, na entrada, sustentando essa festa. Mas o que a gente vê é o São João sendo sucateado em troca de vitrine.” Em 2025, a Prefeitura de Caruaru estimou que o São João movimentaria mais de R$ 600 milhões na economia.

A vitrine brilha, mas por trás dela, os rostos da cultura esperam, às vezes por meses, o pagamento por manterem acesa a chama da tradição. Marlene do Forró (58), homenageada do São João em 2019, ainda aguarda pagamentos do ano passado, que se acumularam com os deste ano. “Sempre faço por onde ganhar o meu, mas essa gestão tá demorando muito”, diz. Para ela, a festa perdeu o vínculo com o povo. “Antigamente, o São João era movido pelos bairros. Hoje, o povo ficou dependente da prefeitura, do pátio, e assim a tradição vai se apagando.”
O músico Valdemar Neto (25), que vive exclusivamente da arte, conta que precisa se planejar financeiramente com meses de antecedência para não depender dos pagamentos atrasados. “Você toca em junho e começa a receber em agosto — quando paga rápido. Já teve vez de receber em dezembro”, afirma. Ele costuma guardar parte do que ganha no Carnaval para bancar o São João. “As contas de julho e agosto não esperam a prefeitura pagar.”
Para Valdemar, o problema não é apenas orçamentário, é estrutural: “Falta uma política pública, uma lei que corrija os cachês dos artistas locais. Todo ano a gente tem que brigar, escrever projeto, colocar valor X, e eles ligam oferecendo menos. Se você não topar, outro topa. E assim seguimos, sem direito a planejamento, sem valorização, sem garantias. ”Sem previsibilidade, o que sobra ao artista é fazer do improviso um modo de sobrevivência.
Mas a precariedade não se limita ao bolso, atinge também a manutenção e construção das memórias. Para Valdemar, a lógica da festa precisa ir além do mercado. “Sou a favor do patrocínio, a festa também é para movimentar dinheiro, é a festa da colheita. Mas essas marcas precisam respeitar o nosso povo, patrocinar artistas locais, pensar em como podem se integrar ao nosso São João sem tirar nossas características.” A crítica vem de quem vivencia os bastidores há anos. “O que não pode é a Estação Ferroviária virar um shopping das grandes marcas. A Vilinha do Forró poderia voltar justamente numa parceria dessas.” Entre lonas e logomarcas, sobra pouco espaço para os símbolos. E para quem os carrega.
A mudança não atinge só o palco, mas também os bastidores. O sanfoneiro Vinícius Leite lembra a transformação do polo Juarez Santiago, que antes ocupava um espaço estruturado, grande e com boa localização, ao lado do Pátio de Eventos, e hoje está reduzido a um canto improvisado. “Esse ano colocaram o polo num lugar apertado, sem cobertura, com som precário e quase sem retorno. Parece um estande de marca, da Perdigão, pra ser exato, mais do que um palco cultural.” Segundo ele, a estrutura que antes contava com pelo menos três técnicos agora funciona com apenas um. “Fica um técnico só fazendo tudo, e mal tem condição de trabalho. É um processo de sucateamento que atinge todo mundo: artista, equipe, público.”
Nos bastidores, técnicos de palco como Nadine Nunes enfrentam jornadas intensas com pouca estrutura, baixo reconhecimento e quase nenhum suporte. “Em vários momentos faltam coisas básicas, como água que não chega, alimentação inadequada, que demora a ser fornecida ou não chega a ser fornecida, falta de ajuda para deslocamento das equipes até os locais e cachês desvalorizados, que não correspondem à responsabilidade, ao volume do trabalho e à carga horária que realizamos.”
Além do cansaço físico e emocional, Nadine aponta outra ferida: a desigualdade regional que marca a cadeia técnica da festa. “Quem mora no interior muitas vezes precisa se deslocar para a capital para poder trabalhar em eventos maiores, enquanto profissionais da capital conseguem se inserir por todo o estado com mais facilidade. Isso cria uma discrepância que também precisa ser discutida quando se fala de fortalecimento da cultura e da cadeia produtiva do São João.”

Essa lógica atravessa também os símbolos da festa, como o balão, que não brilha mais com as cores habituais devido à ativação de uma marca. “O polo das quadrilhas juninas, que antes ocupava um local central e de fácil acesso, foi deslocado para uma área mais distante, dificultando o acesso dos próprios quadrilheiros, afastando o público local e os turistas, que perguntaram bastante sobre onde estavam as apresentações, inclusive”, completa Nunes. No centro da festa, onde se concentram os maiores fluxos de turistas, não há sequer uma quadrilha se apresentando.
Na memória afetiva da fotógrafa Ythalla Maraysa da Silva, conhecida como Mara (32), a Vila do Forró ainda pulsa como símbolo de pertencimento. Em um post emocionado nas redes sociais, ela resgatou um vídeo de 1995 que mostrava o espaço em plena atividade, com comerciantes, forrozeiros e famílias inteiras circulando entre as casinhas cenográficas.
“Peguei o finalzinho da Vila do Forró. Em 2011, ela foi demolida com a promessa de ser reconstruída, e até hoje… nada.” No lugar onde se dançava forró o ano todo, surgiram estruturas fechadas e padronizadas, criadas para ativação de marcas patrocinadoras e camarotes. “Cadê os pé de serra? E o forró raiz? Estão sendo apagados, deixados de lado, mal pagos e substituídos por bandas que, na essência, não representam a cultura junina”, afirma.
A indignação de Mara vem também do apagamento cotidiano: “Sinto que somos uma cidade com um título tão grandioso, mas infelizmente é só de boca. Durante o ano, procuramos forró e só encontramos um ou dois bares. A Vila do Forró seria o lugar ideal para manter isso vivo.” Para ela, a revitalização do São João precisa começar por onde a raiz ainda resiste: nas palhoças de bairro, nas quadrilhas, nas bandas de mazurca, coco, xaxado, na descentralização dos polos, no incentivo à arte popular e na ampliação dos pontos de cultura.
Ao som de Jacinto Silva, ela conclui: “Pisa no chão, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro”. E deixa o aviso aos “grandões”: cuidado, o povo tá se assanhando. “O São João ainda é feito do que há de melhor dentro de nós, é preciso plantar bem para ter uma colheita farta. E fartura, para ela, é “valorizar o que é nosso, fazer intercâmbios com os vizinhos, alargar a visão de mundo e alimentar a memória com o que é verdadeiro”. Que os rostos por trás do forró, das palhoças e das bandas de pífano não sejam mais pano de fundo, mas protagonistas de uma festa que nasceu deles. E, por eles, ainda resiste.
O Nonada enviou perguntas à prefeitura de Caruaru, que prometeu responder até a última sexta (26). A reportagem segue aberta para publicar as respostas.

Maryane Martins
Repórter freelancer, redatora publicitária e também produtora cultural. Filha de Cachoeirinha, Agreste pernambucano — terra do couro, do aço e de muitos artistas e artesãos que transformam matéria bruta em beleza e sustento. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Piauí, Revista Continente, Marco Zero Conteúdo. Também pesquisadora nas áreas de arte e comunicação, com investigações voltadas à cultura popular, à presença das mulheres na arte e à potência dos territórios. Escreve e fotografa com afeto, intuição e curiosidade — três jeitos de olhar o mundo.