Crocodilos em Porto Alegre: Arrigo Barnabé e banda abrem o Unimúsica

Unimúsica - Show Arrigo Barnabé Crédito de Vinicius Fontana (4)

Texto e Foto Vinicius Fontana

Ei, você aí, sentado no bar, girando um copo de gin tônica, lendo um tabloide popular, fagando pãezinhos temperados com losna em uma curtição orgásmica intelectual, gemendo de leve pela tesão pós-existente – e todos os gerúndios praticáveis durante uma noite solitária. Pois saiba que Clara Crocodilo, a maior ameaça do século XXI, esteve pela cidade, assombrando os que ouviram seus gritos pelo Salão de Atos da UFRGS, distribuindo dentadas de carinho, paixão e doença a todos os lá presentes, corpórea na forma de sete músicos, orquestrados por Arrigo Barnabé, expoente do movimento conhecido como “Vanguarda Paulista”.

No espetáculo apresentado, parte do projeto Unimúsica, série irreverentes, Arrigo e banda – composta por Maria Beraldo Bastos (clarinete), Ana Karina Sebastião (contrabaixo), Joana Queiroz (saxofone), Mariá Portugal (bateria), Paulo Braga, (piano) e Mário Manga (guitarra) – revisitaram o álbum Clara Crocodilo, lançado em 1980. A obra, uma das mais originais da música brasileira, compõe um cenário de caos, submundo, tecnologia, sexualidade, etc., norteado pela figura de Clara Crocodilo, uma personagem que melhor seria definida como uma entidade musical feminilizada. O grupo trouxe um repertório frenético, atonal, dodecafônico, que é impossível explicar com palavras que não soem frenéticas, atonais e dodecafônicas.

A abertura foi um dueto de teclado/piano entre Arrigo e Paulo Braga. O aquecimento preparou terreno para a incorporação dos demais instrumentos na música “Sabor de Veneno”. As estonteantes vozes de Maria Bastos e Joana Queiroz, mantendo um permanente diálogo com a personagem de Arrigo, foram instrumentos de destaque dentro do espetáculo, com uma afinação impressionante, ressonando perfeitamente com os demais instrumentos, todos magnificamente executados. Opinião pessoal: jamais havia ouvido uma banda tão entrosada e capaz de executar o desejado dentro de uma estrutura musical tão complexa, realmente sensacional. Compassos eram esmagados e remodelados incessantemente. Não havia estrutura que não fosse passível de decomposição e reinvenção. O próprio Arrigo disse, após terminar a música “Acapulco Drive-in”: “essas canções não são canções, exceto ‘Orgasmo Total’”.

Algumas pessoas acharam estranha a afirmação, porém percebe-se que o conceito de canção de Arrigo é uma melodia encaixada em moldes convencionais, “cantáveis”, enquanto as demais músicas portam uma qualidade diferente. A obra é para ser ouvida sim – ela não é uma negação da musicalidade – porém não dentro de uma zona de conforto. Isso é o que aproxima o som de Arrigo com o de Frank Zappa: a estranheza que gera, através da influência do jazz, da música clássica e do rock psicodélico, nos ouvidos acostumados a padrões sonoros consagrados.

A banda optou também por apresentar “Dedo de Deus”, uma interessante peça, a qual, confesso, desconhecia. Achei interessante o temário da música – além de ser um dos sons mais “fáceis” executados no espetáculo -, um questionamento bem humorado de Deus, que faria algumas pessoas contorcerem-se de angústia: “Será que ele (Deus) faz a unha pro dedo ficar bonito? Será que é homem? Será que é mulher?”. Novamente a tecnologia encontra-se presente nas metáforas do compositor: o Deus não cria ou destrói o mundo com um toque: ele aperta um botão.

O momento alto do show foi a performance estonteante de “Diversões Eletrônicas”, com quase 15 minutos. A música fala sobre as tecnologias de diversão surgidas na época (como o autorama, o fliperama, etc.) em concomitância com o sexo, a bebida e até mesmo a violência, em um contexto quase “ballardiano”. Arrigo interagia com a plateia dentro das próprias músicas que, como destacadas pelo próprio Arrigo, não são cantadas e sim faladas, gritadas. É a música em estado de catarse, inevitável manifestação perante a potência da técnica que condiciona o seu próprio existir.

No fim, o homem, personagem de Arrigo, transfigura-se em um monstro, meio homem meio réptil em uma involução, o retorno do ser “avançado” ao estado primitivo – devorado pela ciência experimental, consumido pela tecnologia, reduzido a sexo e massa orgânica. O clímax já passou, e o que resta é um silêncio vazio após uma frenética passagem musical. Finalmente, os aplausos dominam, esvaziando a angústia do ouvinte, jogando-a no ar em retumbantes ondas sonoras que fazem os sete integrantes da banda sorrirem, pois sabem que o show de hoje jamais será esquecido.

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