Descolonização cultural: refletindo sobre transformações sociais a partir da cultura

Marcelo Yuka foi um dos convidados do seminário (Foto: divulgação Feira do Livro)
Marcelo Yuka foi um dos convidados do seminário (Foto: divulgação Feira do Livro)

O Teatro Carlos Urbim, da 61ª Feira do Livro de Porto Alegre, recebeu no dia 14 de novembro o Seminário “Descolonização Cultural”, do programa Cultura e Pensamento, promovido pelo MinC. Além de compor a programação da Feira, o evento integrou a agenda da 10ª Bienal do Mercosul e do 6º Festival El Mapa de Todos, uma sincronia feliz entre o debate teórico e a prática da cultura. Sincronia que o MinC pretende alimentar através deste relançamento do Cultura e Pensamento, cujo primeiro ciclo, iniciado em 2005 e descontinuado em 2012, teve um enfoque bastante acadêmico.

Nessa nova edição, reestruturada a partir da iniciativa do Ministro Juca Ferreira, a ideia é criar oportunidades de interlocução entre diferentes pontos de vista sobre o campo da cultura. Além da contribuição de pesquisadores e especialistas acadêmicos, o Ministério quer contar com a presença de toda a rede que faz a vida cultural do país acontecer, de modo que os debates e reflexões não gerem apenas novas sínteses teóricas, mas favoreçam a criação de iniciativas institucionais e políticas públicas, pautadas pela experiência de quem está na linha de frente da área cultural, como produtores, artistas, coletivos, articuladores locais e líderes comunitários.

O seminário em Porto Alegre foi o terceiro da série que iniciou em outubro, no Rio de Janeiro, e segue em Serra Talhada, Pernambuco, no próximo dia 27, cumprindo com a perspectiva de descentralização, uma das diretrizes do Plano Nacional de Cultura. A primeira mesa, intitulada “Colonização cultural como dispositivio de poder e as estratégias de emancipação”, contou com a participação da arquiteta Helena Cavalheiro e do historiador Orson Soares, com mediação de Pedro Vasconcellos, representante da Secretaria de Políticas Culturais do MinC. O primeiro a falar foi Soares, que, entre críticas e ironias à colonização do pensamento brasileiro pelo eurocentrismo, acabou deixando em aberto ideias potentes, tal como a proposta de uma reforma educacional pautada pelas cosmovisões de raiz indígena e africana – ambas coincidentes na valorização da coletividade e do afeto.

Intervenção artística do movimento Cais Mauá de Todos (Foto: divulgação)
Intervenção artística do movimento Cais Mauá de Todos (Foto: divulgação)

Helena Cavalheiro contou um pouco da trajetória do coletivo Cais Mauá de Todos, do qual é uma das fundadoras. Foi bastante aplaudida ao lembrar que iniciativas como a do seu coletivo, que pretende estimular o debate popular sobre que destino deve ser dado à área comum da orla do Guaíba, são tradicionais em Porto Alegre, tendo sido as responsáveis, por exemplo, pela preservação de áreas como a Usina do Gasômetro e o Mercado Público. A arquiteta concluiu sua fala com uma série de questionamentos sobre planejamento urbano e ocupação do espaço público, deixando claro que o destino das cidades é um dos temas contemporâneos cuja complexidade desafia a gestão pública e demanda a participação ativa da sociedade civil, a fim de que sejam ouvidas e debatidas todas as dimensões – políticas, econômicas, culturais, afetivas – que estão implicadas no uso de cada espaço urbano.

A segunda mesa, “Resistência cultural e estética da descolonização”, contou com a presença de Tânia Farias, atriz do da Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz; de Gaudêncio Fidelis, Curador-chefe da 10ª Bienal do Mercosul; e do músico, compositor e ativista Marcelo Yuka. Fidelis abriu a mesa apresentando algumas linhas de força de sua trajetória na pesquisa e na curadoria de arte, entre as quais a necessidade de se pensar uma concepção não-patriarcal e não-heteronormativa de museus e exposições. Ressaltou que a seleção das obras e sua organização no espaço expositivo são escolhas políticas cabendo, portanto, ao curador, ter em mente o que pretende comunicar ao realizar uma mostra. Nesse sentido, a 10ª Bienal foi pensada para expandir o conhecimento do público sobre a arte da América Latina (e não latino-americana, como fez questão de ressaltar Fidelis), numa linha curatorial que pretende abarcar a maior diversidade possível de artistas, salientando, porém, pontos comuns, que conformam o imaginário continental, sobretudo no tocante à consolidação de uma história da arte diferente da que conhecemos nos manuais importados da Europa.

Numa intervenção bastante estimulante, Tânia Farias contou um pouco da história da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, destacando as raízes políticas do grupo, surgido durante a ditadura militar, no início da década de 70. As primeiras atuações da Tribo aconteceram em manifestações políticas, experiência que acabou gerando a ideia do teatro de rua como Teatro de Vivência, isto é, como radicalização do encontro entre atores e público.

Tribo de atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Foto:  divulgação)
Tribo de atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Foto: divulgação)

Tânia explicou que o grupo se autodenomina “tribo”, porque está baseado num sistema horizontal de autogestão e rodízio de tarefas inspirado na organização indígena; já o substantivo “atuadores” revela a compreensão de que cada ator é também um ativista social. Além da autogestão administrativa do grupo, o seu processo criativo também questiona a natureza hierárquica das organizações, trabalhando com a ideia de direção coletiva e colocando em cena atores veteranos com alunos recém-integrados. Quanto a isso, Tânia lembrou que o Ói Nóis tem também um eixo pedagógico, que oferece gratuitamente uma oficina de formação de atores com duração de um ano e meio. Para concluir, insistiu sobre a necessidade de descolonização dos corpos e não apenas dos discursos, defendendo o teatro como ferramenta para o exercício da liberdade e o aprendizado do prazer.

Marcelo Yuka foi o último a falar e estremeceu a plateia com suas colocações ácidas e, ainda assim, bem humoradas. Colocou em cheque alguns dos conceitos-chave do seminário, inclusive o de descolonização, atentando para a necessidade de não cairmos numa postura de vitimização. Fez questão de sublinhar sua condição de deficiente físico como o elemento inesperado e indesejado que lhe expandiu, porém, os horizontes artísticos: “se sou uma carne que não anda, eu sou um coração que voa”, declarou. Contra conceitos pré-definidos e limitadores, Yuka insistiu sobre o valor da arte como espaço de liberdade e de exercício constante da dúvida – sobretudo de si mesmo.

*

Além do ciclo de seminários, o programa Cultura e Pensamento também conta com verba do Fundo Nacional de Cultura para apoiar iniciativas da sociedade civil e com uma série de publicações, que reúne textos nacionais e estrangeiros sobre políticas públicas na área cultural. O relançamento de um projeto desse porte é uma tentativa de evitar o enfraquecimento de um setor que é, historicamente, o primeiro a receber cortes em períodos de instabilidade. Pedro Vasconcellos, ao abrir o seminário em Porto Alegre, foi categórico ao dizer que uma das intenções do MinC é criar espaços de encontro e debate que promovam contrapontos à maré conservadora que tem ganhado força no cenário político nacional. Diante disso, os rumos do Cultura e Pensamento, em particular, e do Ministério da Cultura, em geral, podem servir como um relevante termômetro político. Ainda mais se lembrarmos que antes da indicação de Juca Ferreira, em dezembro de 2014, o Ministério da Cultura passou por um período de crise institucional, com três trocas de Ministra em cerca de três anos.

Cada vez mais – e isso é um movimento que abarca desde as discussões locais até os fóruns multilaterais – a dimensão cultural é trazida ao centro dos debates políticos, não apenas por sua tradução em bens e recursos econômicos, mas como contexto e cenário a ser considerado nas deliberações democráticas. A liberdade cultural também começa a aparecer como finalidade de um processo de desenvolvimento mais abrangente, que não leve em conta apenas critérios de renda e consumo, mas de bem-estar, autonomia e dignidade de cada cidadão. Por assim dizer, ainda que as ações e os rumos do Ministério da Cultura ganhem pouco destaque na mídia tradicional, trata-se de uma das instituições para a qual deve olhar quem se interessa por compreender as transformações na sociedade contemporânea que vêm se acentuando pelo menos desde a década de 1980 e trazendo as temáticas culturais para o centro dos interesses e dos conflitos políticos, sejam eles locais, nacionais ou internacionais.

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