De todos os discursos proferidos no Fórum Social Temático na última semana, que comemorou os 15 anos do primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre, talvez o mais emocionante tenha sido o da kaingang Iracema Nascimento. “Estamos cada vez mais sofrendo discriminação! Respeitem nossa cultura!”, bradava, com o tom de voz inflamado de quem luta pela resistência de sua identidade, enquanto câmeras amadoras e profissionais a cercavam.
Era o meio da tarde de quarta-feira, e o público lotava a tenda 400 sob o forte calor da Redenção para acompanhar a mesa de convergência Direitos Humanos, Diversidade e Pluralidade. Foi impossível para muitos não se emocionar ao ouvir aquela mulher relembrar o assassinato do bebê Vitor, em Santa Catarina, e o massacre que a cultura indígena vem sofrendo há séculos. Aquele foi um dos muitos momentos de catarse coletiva do Fórum, em que os participantes compartilharam a oportunidade de ouvir quem tem a voz silenciada pela mídia e pelas alas conservadoras da sociedade.
A fala que se seguiu, da ativista trans Keila Simpson, de São Paulo, resumiu um outro lado da história. “Depois desse discurso tão forte, quem deveria estar aqui ouvindo não está. Onde estão as pessoas que tomam as decisões?”, disse, protestando contra a violência e a criminalização da população LGBT em todo o país. O discurso de Keila me fez pensar que toda a catarse do Fórum foi, de certa forma, contraditória. Como podemos comemorar a diversidade em um bloco de carnaval no mesmo dia e local em que Paulo Sérgio Medeiros Barbosa, ativista negro, foi abordado e quase preso pela polícia militar sem nenhuma justificativa a não ser o racismo velado? Ou enquanto nós, brancos, somos coniventes com o genocídio e a apropriação cultural das populações negra e indígena?
Democratização da mídia: uma alternativa necessária
Na busca de soluções para a construção de alternativas, o próprio Paulo Sérgio apresentou uma resposta na mesa de convergência Comunicação, Juventude e Direitos Humanos, na qual foi painelista: “Lutando juntos”, disse, agradecendo as dezenas de pessoas que o cercaram para impedir que a BM o levasse preso. A unidade é um dos eixos presentes na Carta do FST 2016, que será divulgada na terça (26).
Uma das formas mais urgentes e eficazes de resistência é a luta através da mídia alternativa, tema principal da mesa de debate que integrou o V Fórum de Mídia Livre, que ocorre oficialmente em Montreal, no Canadá. A democratização da comunicação foi vista como fundamental na continuação da luta . “É o ecossistema de veículos livres que vai fazer a diferença e não um veículo sozinho”, resumiu Felipe Altenfelder, do coletivo Mídia Ninja.
Além disso, é tradição do Fórum lançar veículos alternativos, como ocorreu com o Brasil de Fato e a Revista Fórum, logo na primeira edição. Este ano oportunizou o lançamento do Mborayu – um jornal mbyá guarani, feito na Tekoá Nhundy (Aldeia Estiva). O jornal é um marco para a mídia livre no Rio Grande do Sul e vem para viabilizar o protagonismo dos guaranis, que ainda sofrem com discriminação no Estado.
Arte e empoderamento
Enquanto a desorganização na divulgação das atividades foi um ponto fraco do FST, as dezenas de iniciativas autogestionadas vieram para mostrar que um outro mundo é possível, sim. Temas como educação, economia solidária, movimento antimanicomial e representatividades de gênero e de etnias pautaram as oficinas e palestras organizadas pelos próprios coletivos.
A arte como forma de empoderamento e resistência apareceu em várias frentes: no feminismo, com a Marcha Mundial de Mulheres, coletivo de Caxias de Sul; no hip hop, na presença do fórum permanente de hip hop e de rappers como Eduardo Taddeo e Kika Maida; na poesia marginal de Vinicius Borba; no cinema engajado da reedição da Mostra de Cinema e Direitos Humanos do Mundo, que voltou para Porto Alegre em uma versão compacta.
Um dos destaques foi a exibição de Que Horas Ela Volta? O filme da cineasta Anna Muylaert vem ao encontro de uma das maiores preocupações discutidas no FST: o avanço da onda conservadora de uma parte da sociedade que se recusa a abrir mão de seus privilégios, construídos em cima da desigualdade histórica do país. “Estamos no momento em que a Jéssica caiu na piscina”, afirmou a diretora após a exibição do filme, relembrando a cena em que a patroa da casa não aceita que a hóspede entre na água.
O Territórios Sem Fronteiras foi o eixo de diversas expressões sediadas na casa de Cultura Mário Quintana, como o Varal Autoral, o sarau Fora de Ordem e a festa do projeto Expresso Black, além de rodas de conversa sobre acessibilidade cultural e os Pontos de Cultura do RS. A programação foi organizada pela ong Trocando Ideia, voltado a promover a cena de hip-hop de Porto Alegre.
Para artesãs como Solemar, da Comunidade Jongo Embu das Artes (SP) arte é sobrevivência. Ela é uma das artesãs que veio o Fórum vender sua arte em bancas autônomas. Além das pulseiras e lenços com estampas africanas de Solemar, ainda era possível encontrar bolsas, roupas, livros e ilustrações na Redenção, onde aconteceu a Feira da Economia Solidária.
Nas artes plásticas, temos a oportunidade inesquecível de presenciar a exposição Memória e identidade: uma visão africanista, do pelotense Zé Darci. A mostra, que segue no Memorial do RS até o dia 29 de fevereiro, traz obras que resgatam o protagonismo do povo negro na história e na atualidade. O artista conversou com o Nonada, e a entrevista você acompanha nesta semana.
Galeria de imagens: Feminismo e Arte
A Marcha Mundial de Mulheres de Caxias do Sul promoveu a oficina Feminismo e Arte durante o FST. Fotos: Mari Maciel